O Direito Achado na Rua: nossa conquista é do tamanho da nossa luta

quarta-feira, 31 de janeiro de 2018

O julgamento como nos tempos da Modernidade nos tempos da pós-globalização: A compreensão positivista do direito contra a "do direito achado na rua"

"Continuo me compadecendo do povo brasileiro. De todos e todas aquelas que morrem antes de nascer, que morrem um pouco a cada dia e dos que "morrem de morte matada" antes dos trinta. É esse povo que conheço tão bem, que vive nos alagados do Recife e os que vêm e voltam do trabalho, diariamente, homens e mulheres viajando de pé, em ônibus abarrotados, em média 4 horas, em todas as grande cidades do país. Ganhando salários aviltantes, sem "carteira assinada", submetidos à lei do vale tudo implantado, recentemente, pelo atual governo golpista, que vem destruindo nossas riquezas materiais e enxovalhando os trabalhadores/as, em geral, de nossa Pátria", escreve Ana Maria Araújo Freire, conhecida como Nita Freire*, biógrafa e sucessora legal dos direitos de Paulo Freire, viúva do grande educador, sendo com ele coautora em diversos trabalhos. Mestra e doutora em Educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP).

 *Ana Maria Araújo Freire (Nita Freire) também é autora de Analfabetismo no Brasil: da ideologia da interdição do corpo à ideologia nacionalista, ou de como deixar sem ler e escrever desde as Catarinas (Paraguaçu), Filipas, Madalenas, Anas, Genebras, Apolônias e Grácias até os Severinos (3ª ed. São Paulo: Cortez, 2001) e Centenário do nascimento: Aluízio Pessoa de Araújo(Olinda: Edições Novo Estilo, 1998).Publicou ainda, em SOUSA JUNIOR, José Geraldo de, et al. (org). O Direito Achado na Rua, vol. 8: Introdução Critica ao Direito à Comunicação e à Informação. Brasília: Editora FACLivros, 2017, o artigo Acesso à Justiça e a pedagogia dos vulneráveis O pensamento de Paulo Freire e sua relação com o Direito como prática para a libertaçãoPaulo Freire: uma história de vida, Indaiatuba: 2006. Prêmio Jabuti, Biografia, 2o. Lugar, 2007; e Nós dois, Paulo Freire e Nita Freire. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 2013; além de várias participações em livros editados no Brasil e no exterior.

 

Eis o artigo.


A poucos anos atrás fui convidada para falar sobre a pedagogia de meu marido Paulo Freire, na Escola de Serviço de Justiça, especialização em Magistraturas, da República argentina. Pensei, então, que falar apenas sobre a teoria do conhecimento de meu marido, talvez não atraísse a minha ilustre plateia.

Procurei, então o meu amigo José Geraldo de Sousa Junior, jurista de renome, professor e ex-reitor da UnB, para que me indicasse alguma literatura que pudesse me despertar ideias novas sobre uma possível relação entre a concepção da pedagogia do oprimido de Freire com alguma formulação do direito, no mesmo sentido e teor da mais importante obra de Paulo: cuidar e humanizar a quem o Estado indica, aponta como criminoso, como fora da lei. Entendido isso como a impossibilidade de qualquer agente judiciário não o/a poder destratar ou maltratar , pois tais sujeitos se encontram sob sua tutela do Estado.

Imediatamente o professor de Brasília me falou, indicou livros e me remeteu uma Tese e uma Dissertação de alunos seus que trabalharam com uma "velha" teoria, embora poucos a conheçam, do grande jurista Roberto Lyra Filho. Teoria “molhada” na compaixão e no cuidado para com as pessoas menos aquinhoadas, de nossa sociedade. Para com os oprimidos e oprimidas, diria Paulo FreireLyra chamou com sua humildade e comedimento a sua teoria de "O direito achado na rua", que nos envolve e comove pelo próprio nome. Que traduz a referencia de vida política, filosófica, antropológica de um dos nossos maiores juristas. De seu cuidado e amor pelos "desvalidos da sorte"[1].

Os "donos das leis e do poder", até hoje, entendem e condenam àqueles à condição de objetos desencarnados e sem voz, nascidos para a submissão e a serventia – Nita Freire

A ciência jurídica estudada nas faculdades de direito e praticada no Brasil tem sua origem no Direito Romano. Veio através dos anos, da evolução de nossa sociedade, mudando a orientação tanto nos estudos desta ciência quanto na prática jurídica. Interpretações das leituras da Modernidade ___ que entendem o Direito quase que restrito à submissão às normas jurídicas vigentes, à letra da Lei ___ elaboradas pelos "doutos" da elite social e econômica, que, priorizavam os seus pares, a elite, abandonando os homens e as mulheres de "segunda categoria" Os vulneráveis (órfãs e viúvas), os esfarrapados, os excluídos, os oprimidos à própria sorte e desgraça. Os "donos das leis e do poder", até hoje, entendem e condenam àqueles à condição de objetos desencarnados e sem voz, nascidos para a submissão e a serventia, que, felizmente pela luta política no Brasil vem sendo substituída, mesmo que em pequeno grau, pela compreensão da abordagem dialética do Direito Social. Esta, de natureza progressista, humanista, tem como objetivo, portanto a igualdade de todos e todas perante uma justiça equânime como fator que abre a possibilidade de harmonia da vida social numa relação dialógica e dialética entre contexto (a realidade), texto (a legislação) e os conflitos sociais. Tarefa gigantesca numa sociedade de classes, como a brasileira marcada por fortes traços escravagistas, interditores, elitistas e discriminatórios[2].

Por que estas coisas me vieram à cabeça? Porque assisti, não na íntegra, mas muitas partes do julgamento, em 2a. Instância, no TR-4, em Porto Alegre, do recurso contra a condenação do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, imposto pelo juiz de 1a. Instância, da "república de Curitiba". O nome completo do sujeito, do réu, que o processo julgava era lido constantemente, pois não cabe em ritual formal de toga, "modernista", com ranços medievais, anotados todos os detalhes de ler, ouvir e ouvir, e de ler e ouvir por horas a fio, sem a presença do réu, o processo meticulosamente escrito na solidão da procura de algo que imputasse crime ao ex-presidente da República, por cada um dos três desembargadores, de per si ,(mas, ...pensei eu com meus botões, talvez maldosamente, com o acerto antecipado de que o réu fosse condenado). Não julgavam na verdade, como disseram, uma determinada pessoa pensando nela, na vida dela: no que fez de bom, sua importância na história brasileira; o bem-querer por ele por amis de 40% da população etc, pois estavam fazendo um julgamento técnico, visavam analisar unicamente o delito praticado pelo réu. Assim, tudo deveria ser racional, obedecendo as Leis com extremo rigor. Pensei, tudo pré-concebido pois tratava-se de um processo regido pela neutralidade. Me surpreendi pois estudei bastante, nos tempos de faculdade, sobre o mito da neutralidade científica..... a prática do dia era visivelmente, positivista, portanto neutra, assexuada, não importando a quem julga, como asseveraram durante o processo, sem nenhuma divergência ou contraditório. Tudo muito calmo e manso como nos rituais da religião e da filosofia positivista, sob o lema da "Ordem e Progresso". O nome do réu, um sujeito pernambucano, que o povo inteiro do Brasil o conhece, se chama Lula, seu nome "achado na rua", não importava muito aos doutos da lei.

Me compadeci[3] de tudo: dos homens jovens, acredito que, das mesmas idades de meus três filhos, bonitos, bem postos, convencidos, equivocadamente, de que estavam prestando um grande serviço à Nação, esmiuçando intenções, suposições e hipóteses, desde que não tinham provas cabais, seguindo as determinações, as regras do "direito romano" /medieval/moderno, com a mesma dureza com a qual o Juiz Sérgio Moro havia outorgado a condenação de Lula, meses antes.

Me compadeci de nosso ex-Presidente, que vem suportando dores imensas nos últimos tempos: a perda de Marisa Letícia, muito certamente morte causada pelo imbróglio criado por diversos segmentos das forças do direito do Brasil. Estivemos juntos no comício de São Paulo, na semana passada, e seu semblante era de homem cansado, mas, que, acima de tudo demonstrava sua ousadia e coragem no enfrentamento das lutas que a ele veem sendo "dadas", maldosa e injustamente. De homem que do solo seco nasceu preparado para vencer as animosidades e vicissitudes da vida para restaurar a esperança, sempre ameaçada, perdida, agora, totalmente, pelo povo brasileiro.

Continuo me compadecendo do povo brasileiro. De todos e todas aquelas que morrem antes de nascer, que morrem um pouco a cada dia e dos que "morrem de morte matada" antes dos trinta. É esse povo que conheço tão bem, que vive nos alagados do Recife e os que vêm e voltam do trabalho, diariamente, homens e mulheres viajando de pé, em ônibus abarrotados, em média 4 horas, em todas as grande cidades do país. Ganhando salários aviltantes, sem "carteira assinada", submetidos à lei do vale tudo implantado, recentemente, pelo atual governo golpista, que vem destruindo nossas riquezas materiais e enxovalhando os trabalhadores/as, em geral, de nossa Pátria. Seu índice de aprovação de 3% diz tudo. Diz do quanto nossa população evoluiu em termos de crítica política, mas o processo, que, intencionalmente, quer banir Lula da política brasileira, não percebe ou não quer perceber isso. Se atém ao direito tradicional, à letra da Lei, que interpretam, como todos os juristas do país, pela subjetividade de sua leitura de mundo.

A empatia e o carisma de Lula impregnam e mobilizam a todos e todas que sabem amar, que não tem raiva dele apenas por que ter ele uma liderança inconteste, reconhecida em todo o mundo. - Nita Freire


Somos estes brasileiros que mais perdemos com a eliminação de Lula da corrida eleitoral. Em quem mais podemos acreditar? Quem mais, atualmente em nosso país pode se doar com alegria e eficiência para fazer, sobretudo o povão, como carinhosamente chamamos as camadas populares, felizes e participantes? A empatia e o carisma de Lula impregnam e mobilizam a todos e todas que sabem amar, que não tem raiva dele apenas por que ter ele uma liderança inconteste, reconhecida em todo o mundo. Ou porquê ele foi um menino pobre, muito pobre que sequer fez escola média ou faculdade? Ou porque seu único Diploma de antes do de Presidente da República foi somente o de torneiro mecânico?

Tenho certeza de quem não reconhece as grandezas de Lula está imerso no mundo dos preconceitos e dos que têm dificuldade de amar. Dos que não sabem amar.

"Direito e Justiça caminham enlaçados; lei e Direito é que se divorciam com frequência. Onde está a Justiça no mundo?, pergunta-se. Que Justiça é esta, proclamada por um bando de filósofos idealistas, que depois a entregam a um grupo de "juristas", deixando que estes devorem o povo? A Justiça não é, evidentemente, esta coisa degradada. Isto é negação da Justiça, uma negação que lhe rende, apesar de tudo, a homenagem de usar seu nome, pois nenhum legislador prepotente, administrador ditatorial ou juiz formalista jamais pensou em dizer que o "direito" deles não está cuidando de ser justo. Porém, onde fica a Justiça verdadeira? Evidentemente, não é cá, nem lá, não é nas leis (embora às vezes nelas se misture, em maior ou menor grau); nem é nos princípios ideais, abstratos (embora às vezes também algo dela ali se transmita, de forma imprecisa): a Justiça real está no processo histórico, de que é resultante, no sentido de que é nele que se realiza progressivamente", palavras de Lyra Filho.
Para entenderem mais um pouco da teoria "O direito achado na rua" de Roberto Lyra Filho, cito-o novamente:

"Justiça é Justiça Social, antes de tudo: é atualização dos princípios condutores, emergindo nas lutas sociais, para levar à criação duma sociedade em que cessem a exploração e opressão do homem pelo homem; e o Direito não é mais, nem menos, do que a expressão daqueles princípios supremos, enquanto modelo avançado de legítima organização social da liberdade. Mas até a injustiça como também o Antidireito (isto é, a constituição de normas ilegítimas e sua imposição em sociedades mal organizadas) fazem parte do processo, pois nem a sociedade justa, nem a Justiça corretamente vista, nem o Direito mesmo, o legítimo, nascem dum berço metafísico ou são presente generoso dos deuses: eles brotam nas oposições, no conflito, no caminho penoso do progresso, com avanços e recuos, momentos solares e terríveis eclipses."

Volto à questão de meus sentimentos de comiseração e da comunicação entre o poder judiciário e a grande maioria da população brasileira, perguntando-me e perguntando a quem me lê: os três desembargadores em questão e o juiz de Curitiba conhecem a cultura popular e o povo nordestino desprezando o "direito achado na rua" (ou será que não o conhecem?) e imbuídos da supremacia da elite branca e bem posta na vida social, distante das necessidades dos não ricos, impuseram sem debates e sem diálogo as regras autoritárias do positivismo?

Não sou e nunca fui a favor da falta de ética, do despudoradamento de qualquer pessoa que seja. Do apoderamento ilícito da coisa publica. Sou visceralmente contra a corrupção. Aprendi isso com meus pais desde os meus tenros anos de idade.

Assim, é bom ficar claro, que não estou propondo um julgamento no qual nos ponhamos cegos diante dos fatos, mas que lançar mais de metade da população brasileira ao desespero é uma questão de saúde pública, de amor próprio destruído, de dignidade arrasada, da esperança maculada etc., é uma questão vital a ser pensada!

Somos todos Filhos da Pátria brasileira, apenas na letra da Lei. O povo não pode respeitar ou admirar um poder judiciário desse tipo. - Nita Freire

Coloco como questão para a reflexão de todos/as nós: se o poder judiciáriobrasileiro tivesse caminhado ao lado da população e não a impor regras jurídicas elaboradas nos gabinetes dos doutos das leis, o resultado de ontem teria sido o que foi? Não teria sido ontem a grande hora do judiciário dizer a quem não acredita nele, que superem e dissipem a ideia de este poder só serve para colocar seus filhos e marido em prisão sem nenhum decoro, que tantas vezes devolvem seus entes queridos em pedaços de gente retalhada a facões; que colocam nas sórdidas prisões filhos que roubaram algum confeito ou pedaço de queijo no supermercado enquanto assistem na TV juristas dizerem que o criminoso que roubou uma mala com 500 mil reais dentro, que tal fato não é uma prova suficiente para condená-lo. Somos todos Filhos da Pátria brasileira, apenas na letra da Lei. O povo não pode respeitar ou admirar um poder judiciário desse tipo.

Repito, ontem teria sido a hora da conciliação desejada e necessária, mas infelizmente o caminho tomado foi outro! Os homens probos de Porto Alegre caminharam com o rigor da letra da lei, muitas vezes elaboradas em tempos passados quando as ideologias e os comportamento eram outros. Isso me diz com grandiloquência que, ontem, fomos jogados brutalmente no lamaçal imundo da desesperança que só aniquila e mata os espíritos. Às vezes o próprio corpo também.

Enfim, termino estas considerações, com duplo de páginas que pretendia escrever, proclamando, mais uma vez, que me compadeço, que me apiedo radicalmente de que as autoridades da Justiça do Brasil não tenham entendido que o réu não era, unicamente, Lula. Mas, Lula com os sonhos de milhões de brasileiros e brasileiras abandonados a própria sorte, sem mais o direito de terem esperanças. Eles endossaram e aumentaram a divisão da nossa sociedade baseada na questão ideológica ou partidária a que aderem ou pertencem esta ou aquela pessoa, fato, que, infelizmente têm gerado ódios. Secularmente conhecíamos o ódio entre as classes sociais. Agora acrescentemos, lamentavelmente, a determinada pelos que seguem os ditames políticos da direita contra os que seguem as postulações da esquerda.

Notas:

[1] Consultem minha conferência publicada na revista O Direito achado na Rua, n.8, Introdução , Critica ao Direito e à Comunicação e a Informação. Brasília: FAC Livros, 2017.
[2] Cito esta parte da minha conferência mencionada, baseada nas ideias de Lyra Filho.
[3] Por uma questão de beleza e elegância da linguagem coloco sempre o pronome antes do verbo.


Fonte: Revista IHU On-line, 30 de janeiro de 2018. Disponível em: http://www.ihu.unisinos.br/575650-o-julgamento-como-nos-tempos-da-modernidade-nos-tempos-da-pos-globalizacao-a-compreensao-positivista-do-direito-contra-a-do-direito-achado-na-rua

terça-feira, 30 de janeiro de 2018

Entrevista concedida por José Geraldo de Sousa Junior – Professor da Faculdade de Direito e ex-Reitor da Universidade de Brasília. Coordenador do Projeto “O Direito Achado na Rua”

Fórum DPU – Escola Superior da Defensoria Pública da União
Por Giovanna Frisso

1. Quais os principais desafios institucionais, econômicos e sociais de acesso à justiça?

Tenho trabalhado fortemente na consideração desse tema e sobre ele registrei algumas re&exões que estão contidas em trabalhos em que participei da organização (Experiências Compartilhadas de Acesso à Justiça: Re&exões Teóricas e Práticas, Essere nel Mondo, edição E-Book, Santa Cruz do Sul/RS, 2016), A Cultura de Litígio e o Ensino Jurídico no Brasil, publicado na Revista Diálogos sobre Justiça, n. 3, 2014, Ministério da Justiça/Secretaria de Reforma do Judiciário, e Justiça e Direitos Humanos: Perspectivas para a Democratização da Justiça, Terra de Direitos/ Articulação Justiça e Direitos Humanos, Curitiba, 2015), sempre pensando um modo alargado de concepção do tema que leve em conta exatamente confrontar e superar esses obstáculos.
O pressuposto para tal é apostar na democratização da sociedade e da justiça, abrindo-as à crescente participação da cidadania de modo a reduzir as barreiras econômicas, institucionais e sociais por meio de reconhecimento de sujeitos coletivos e de protagonismos que desindividualizem as demandas, pela afirmação das dimensões políticas que ordenam os conflitos mais agudos em nossa sociedade. Esse é um modo para deslocar a questão dos entraves burocráticos que pedem medidas modernizadoras - novos códigos, mais agentes, novos procedimentos - quando a questão é o questionamento da Justiça a que se tem acesso e o modo democrático de ampliar esse acesso.

2. Em sua opinião, qual o impacto de critérios como celeridade e eficiência na noção de acesso à justiça? As conciliações extrajudiciais apresentam algum risco para o acesso à justiça do público alvo da DPU? Quais cuidados devem ser adotados pelo Defensor para mitigar possíveis riscos?

Em decorrência do que disse acima, a celeridade em si como uma resposta burocrática e modernizadora (Emenda 45) pode agravar a frustração em face das expectativas e das promessas de realização de justiça. Reduz o espaço de negociação, abrevia as possibilidades de ampla defesa e favorece os mais bem posicionados econômica e culturalmente.  Boaventura de Sousa Santos mostrou isso em seu ensaio sobre A Sociologia da Administração da Justiça demonstrando o quanto a redução de alçada favoreceu o uso do aparato para abreviar demandas de senhorios e de credores que já não precisaram construir mediações mais confortáveis para os seus devedores. A celeridade reduz o campo da escuta profunda que leva os defensores mais engajados na utopia da Justiça a perceber que o fundo de muitas petições materiais pode revelar causas com demandas de sentido subjetivamente urgente: oculta numa petição de divórcio pode estar uma situação de violência doméstica; por trás de um pedido de internação compulsória pode existir uma pretensão usurpadora de uma pensão ou de um benefício previdenciário; além do despejo forçado pode vislumbrar-se uma questão social ligada à demanda política pela moradia; um pedido liminar de reintegração de posse pode ser um limite ao embate constitucional sobre direito à educação. O defensor precisa estar atento a isso e considerar que o formalismo da cultura legalista de sua formação jurídica pode ser um obstáculo à realização de direitos fundamentais e, em última análise, de direitos humanos.
Aliás, foi o que afirmou o juiz Cançado Trindade (presidente da Corte Interamericana de Direitos Humanos) ao examinar procedimento em sede de direito convencional, constatando que o positivismo jurídico é o principal obstáculo à internalização de tratados e convenções nos estatutos jurídicos nacionais. Abordei essa questão, juntamente com meu colega co-autor Antonio Escrivão Filho no livro Para um Debate Teórico Conceitual e Político sobre os Direitos Humanos (Editora D’Plácido, Belo Horizonte, 2015).

3. Qual o potencial do processo de coletivização judicial para a garantia do acesso à justiça? Quais riscos este processo pode apresentar?

Já não se trata de potencial, mas de constatação de seu valor para a ampliação de acessos à Justiça se considerarmos as formas coletivas de abreviar esse acesso e de coletivizar as pretensões. Pense-se nas estratégias ampliadas de subjetivação ativa das ações de inconstitucionalidade, na formação de juízos de convencimento a partir da dinâmica de audiências públicas, de admissibilidade de terceiros não diretamente parte em causas (amicus curiae), nas gestões para construção de ajustes de conduta e outras modalidades de pactuação para constituir obrigações e responsabilidades mediadas pela estrutura administrativo-judicial. O risco é o da judicialização da política e do ativismo decisionista, não confundidos com a competência alargada de aplicação construtiva de soluções judiciais, situações que têm revelado uma indevida substituição de razões do mediador (juízes, cortes judiciais, órgãos do sistema de justiça e do ministério público) em lugar das disposições legítimas de entendimentos razoáveis construídos pela participação ativa de coletividades e sujeitos coletivos (mecanismos de consulta prévia e informada, expertises sociais etc).

4. Qual o potencial da DPU como instituição voltada para a garantia do acesso à justiça? Quais são os principais desafios a serem enfrentados pela DPU para a concretização deste potencial?

Não é por acaso que, nas mobilizações para a institucionalização de defensorias, o social organizado tenha sido um fator determinante para a sua criação. Pense-se, por exemplo, o caso da Defensoria de São Paulo para cuja institucionalização muito contribuiu a mobilização da sociedade civil. Por isso mesmo, em sua estrutura, é muito pertinente a atividade de sua Ouvidoria Externa, eleita, que traduz de alguma maneira o sentido de participação que nesse sistema o princípio democrático alcançou. Veja-se a esse respeito, a belíssima tese de doutoramento de Élida Lauris dos Santos, defendida em Coimbra, sob orientação de Boaventura de Sousa Santos (tive o privilégio de aprendizado ao participar da banca): “Acesso para quem precisa, justiça para quem luta, direito para quem conhece: dinâmicas de colonialidade e narra(alterna-)tivas do acesso à justiça no Brasil e em Portugal. Coimbra: [s.n.], 2013”.

5. Em que medida a atuação junto a instituições internacionais pela DPU são relevantes para a garantia do acesso à justiça?

Num tempo de globalização e de internacionalização das lutas sociais e dos direitos humanos, não é apenas uma exigência de natureza interlocutora ou de intercâmbio, para trocas de conhecimentos e de experiências, é um requisito de desempenho porque a salvaguarda dos direitos segue o princípio do jus cogens e caminha para a consolidação do reconhecimento da jurisdição universal relativamente a direitos da humanidade. A DPU precisa se instalar no âmbito dessa jurisdição porque nesse campo é inevitável prosseguir a defesa de direitos nas cortes internacionais. Por isso, o desafio político de estar sempre reavaliando a sua função social e política e ao mesmo tempo atualizando criticamente os pressupostos de sua cultura epistemológica de formação jurídica, algo que não se esgota com a diplomação acadêmico-universitária.

6. Como, em sua visão, se relacionam o processo de judicialização das relações sociais e a garantia do acesso à justiça?

Prosseguindo com o raciocínio iniciado na resposta à questão anterior, eu diria ser necessário aprofundar a exigência dupla de contínua revisão crítica da função político-social do operador judicial (em seus programas de reciclagem, congressos, seminários, enfim, nos lugares em que a reflexão sobre essa condição possa ser escrutinada em debates e definições temporárias); e de revisão dos paradigmas da cultura jurídica. Um exemplo para ilustrar: em seu discurso de posse na Presidência do STF (2015), chamou a minha atenção a parte em que o Ministro Lewandovski apontava como uma ação de seu mandato qualificar o magistrado em tema candente no qual constatava grande fragilidade. Disse ele: “...preciso, também que os nossos magistrados tenham uma interlocução maior com os organismos internacionais, como a ONU e a OEA, por exemplo, especialmente com os tribunais supranacionais quanto à aplicação dos tratados de proteção dos direitos fundamentais, inclusive com a observância da jurisprudência dessas cortes”. A constatação do Ministro não se restringe à limitação que é intelectual e funcional dos magistrados. Ela é generalizável entre os operadores do sistema de justiça. E ela revela uma lacuna de qualidade na atuação desses operadores. Uma lacuna que é um tremendo obstáculo à própria realização da Justiça.
De fato, uma pesquisa conduzida pelas ONGs Terra de Direitos e Dignitatis Assessoria Técnica Popular (2012), coordenada pelo professor José Antonio P. Gediel, da UFPR, revela que “40% dos juízes (entrevistados pela pesquisa) nunca estudaram direitos humanos, e apenas 16% sabem como funcionam os sistemas de proteção internacional dos direitos humanos da ONU e OEA [...]”.

7. Em sua opinião, como deveria se dar a atuação da DPU junto aos carentes organizacionais (hipossuficientes jurídicos)? Algum grupo mereceria especial destaque?

Penso ter antecipado nas respostas precedentes indicações que dão conta de responder à questão aqui posta. Complemento tendo como base algumas das considerações que fiz, juntamente com meus colegas de pesquisa da UnB e da UFRJ, para o projeto desenvolvido por encomenda (Edital 15/2009 - Projeto Pensando o Direito) da Secretaria de Assuntos Legislativos, do Ministério da Justiça: “Observar a Justiça: Pressupostos para a Criação de um Observatório da Justiça Brasileira”. Trata-se de incluir “a dimensão societal na análise e no acompanhamento da Justiça (o que) implica dialogar com atores que muitas vezes não são reconhecidos em suas identidades (ainda não constituídos plenamente como seres humanos e cidadãos) e que buscam construir a sua cidadania por meio de um protagonismo que procura o direito no social, em um processo que antecede e sucede o procedimento legislativo e no qual, o Direito, que não se contêm apenas no espaço estatal e dos códigos, é efetivamente achado na rua”. A DPU tem que se organizar para esse diálogo, numa posição de alteridade, sem hierarquias, desvestindo-se dos símbolos de autoridade localizada, no Estado ou em seus cargos, mas que seja compartilhada enquanto construção de sentido, em consideração a uma Justiça que se abra às expectativas solidárias e emancipatórias vivenciadas legitimamente no social.


Fonte: Publicação da Escola Superior da Defensoria Pública da União V. 3 No 11, 2017. 

segunda-feira, 29 de janeiro de 2018

Apreensão de passaporte de Lula tangencia o autoritarismo, afirma jurista

Juiz federal do DF determinou apreensão de passaporte do ex-presidente, proibindo-o de sair do país
Cristiane Sampaio
Brasil de Fato | Brasília (DF)
,
26 de Janeiro de 2018 às 11:42
Em entrevista ao Brasil de Fato, o advogado Antonio Escrivão Filho, professor da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UnB), criticou a decisão da 10a Vara da Justiça Federal do Distrito Federal (DF), que determina a apreensão do passaporte do ex-presidente Lula e o proíbe de viajar ao exterior.

O professor aponta como um dos problemas o fato de o juiz Ricardo Leite, autor da decisão, ter baseado sua decisão no caso triplex para justificar a liminar. O caso não é objeto de apreciação de Leite, o que o impossibilitaria de tomar tal atitude.
"O juiz deu uma decisão fundamentada em argumentos que não foram franqueados pela defesa para que ela se defendesse. A defesa não chega num processo judicial e se defende de tudo o que acontece no mundo. Ela se defende do que foi acusada", argumenta Escrivão Filho.
Leite cuida do processo que está no âmbito da 10a Vara Federal do DF, em que Lula responde por suposto tráfico de influência na compra de aviões militares suecos por parte da Força Aérea Brasilia (FAB), entre 2013 e 2015, durante o governo de Dilma Rousseff (PT).
Diante disso, o professor, que também é membro da Frente Brasil de Juristas pela Democracia, avalia que a liminar teria um caráter "autoritário".
"O processo judicial volta dois séculos e passa a ser um processo inquisitorial, em que a acusação tem à sua disposição qualquer argumento retórico para, então, forjar aí uma narrativa de acusação. Não importa o que a defesa tenha a dizer. É a acusação que interessa. Essa é a forma da Inquisição", acrescenta.
Escrivão Filho também aponta que a liminar retrocede em relação aos avanços conquistados pela sociedade contemporânea.
Por fim, o jurista avalia que a decisão extrapola os limites do poder dos magistrados.
"A função de um juiz em um Estado Democrático de Direito é uma função política, mas ele não pode julgar com parâmetros políticos. A função dele tem que ser pautada no processo, nas regras processuais. Essa decisão tangencia o autoritarismo", classifica.
Viagem
Lula tinha uma viagem agendada para a madrugada desta sexta-feira (26) para a Etiópia, na África, onde iria participar de uma reunião da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO). Ele não embarcou para o país. Cristiano Zanin Martins entregou nas manhã desta sexta-feira (26), à Polícia Federal, em São Paulo, o passaporte de Lula.
Nota
Na nota divulgada à imprensa, Zanin se disse "estarrecido" com a decisão. Ele criticou duramente a liminar e disse que o TRF-4 havia sido informado sobre a viagem do petista à Etiópia e não impôs restrição.
"O ex-presidente Lula tem assegurado pela Constituição Federal o direito de ir e vir (CF, art. 5º, XV), o qual somente pode ser restringido na hipótese de decisão condenatória transitada em julgado, da qual não caiba qualquer recurso, o que não existe e acreditamos que não existirá porque ele não praticou qualquer crime", completou.

Edição: Luiz Felipe Albuquerque

sábado, 27 de janeiro de 2018

Entrevista com Luanna Marley, advogada popular, para a Campanha ANA - Associação Nacional de Adolescentes Conectados em Defesa dos Direitos de Crianças e Adolescentes LGBTI

(Boletim da ANA - Edição 66 - Jan 2018)


Campanha Ana: Você faz parte da RENAP, o que faz essa rede e como as pessoas e organizações podem acionar?

Luana Marley: A Rede Nacional de Advogadas e Advogados Populares – RENAP, é uma rede que articula advogadas e advogados de direitos humanos que atuam para e com os movimentos sociais, grupos e comunidades que vivenciam as violações sistemáticas de direitos humanos. Nossa atuação se baseia no que chamamos de Assessoria Jurídica Popular, que consiste no trabalho desenvolvido por advogadas/os populares, estudantes, educadores/as, militantes dos direitos humanos em geral, entre outros/as. Assim, temos o objetivo de viabilizar um diálogo sobre os principais problemas enfrentados pela população para a realização de direitos fundamentais para uma vida com dignidade, seja por meio dos mecanismos oficiais, institucionais, jurídicos, e x t r a j u r í d i c o s , p o l í t i c o s e d a conscientização. É uma prática jurídica insurgente desenvolvida principalmente no Brasil, nas décadas de 1960 até hoje. A RENAP já existe há 22 anos, iniciando na atuação por direito à terra e território, no seio das lutas por reforma agrária e hoje em dia tem ampliado a sua atuação com temas estruturantes como o enfrentamento ao racismo, ao machismo, à LGBTfobia e ao capitalismo.

C. Ana: O Brasil é signatário da declaração dos Direitos Humanos, nesse sentido o poder judiciário brasileiro considera esses direitos para as causas que julga, ou ainda é preciso lembrar juízes e promotores do que o brasil é signatário?

L. M.: Infelizmente, a todo tempo, precisamos lembrar ao sistema de justiça sobre a declaração dos Direitos Humanos e inclusive sobre a própria Constituição. Enfrentamos ainda, inúmeras decisões, e atuações do Ministério Público, que desconsideram a dignidade humana, os direitos fundamentais, mas não só isso, se utilizam das normas para uma aplicação da lei de acordo com as suas conveniências, interesses e olhares moralistas, conservadores, LGBTfóbicos, machistas e racistas. O que é de extrema gravidade! Não à toa que inúmeras famílias- comunidades, juntamente com crianças, idosos e mulheres grávidas- são removidas e despejadas de suas casas, vivenciando a violência do Estado. Não é à toa que o Brasil está entre os três países que mais encarceram no mundo, onde a maioria é composta por pessoas negras e pobres. As mulheres são severamente e duplamente punidas pela sistema de justiça, quando cometem alguma infração penal ou crime. E quando são vítimas, por exemplo em casos de estupros, também são colocadas como culpadas por terem vivenciado este crime contra a sua dignidade sexual.

C. Ana: Por que tantas defensoras e defensores que lutam junto com os trabalhadores, o povo pobre, preto das periferias, com a mulheres e LGBTS, são alvos da repressão e assassinatos?

L. M.: O conhecimento e a emancipação tem na expressão das consciências e nas vozes que denunciam os instrumentos de luta contra aqueles que detém o poder econômico e político à custa do massacre da população negra, pobre, LGBT, das mulheres, jovens, crianças, adolescentes. Por isso que, como temos os argumentos de justiça e as resistências, e SIM, denunciamos, com o objetivo de transformação social, a forma medíocre e violenta para manutenção do poder deles – que querem manter o machismo, o racismo, a LGBTfobia, a propriedade privada e o lucro – é a perseguição, a criminalização dos movimentos sociais e populares, até o assassinato de defensoras e defensores de direitos humanos, afim de calar suas vozes que denunciam...suas lutas. É assim que agem os ruralistas, os senhores do agronegócio, parte do aparato policial, os especuladores imobiliarios. Estes anos de 2016 e 2017 bateram recordes de assassinatos de defensores e d e f e n s o r a s d e d i r e i t o s h u m a n o s . Assassinatos, torturas e perseguições, como os que tem ocorrido com indígenas, quilombolas, feministas, ativistas pelos direitos de crianças e adolescentes, ativistas LGBT, bem como p e s q u i s a d o r e s e p e s q u i s a d o r a s d e Universidade Públicas. Aqueles e aquelas defensores e defensoras que perderam suas vidas estão mais presentes do que nunca nas nossas lutas, seja onde for!

C. Ana: Como podemos avançar nas lutas sociais sem necessariamente entrar no terreno do judicialização?

L. M.: Na realidade, tenho dito que temos que avançar por caminhos para além das institucionalidades, uma vez que vivemos momentos e contornos políticos que se assemelham a ditadura civil-militar de 1964, não só pelos discursos, mas pelas legislações autoritárias que mascaradas pelas ideologias facistas, promovem formas políticas e materiais de manutenção do poder que tem como consequência mortes físicas, psicológicas e simbólicas daqueles/as que para eles são corpos inferiores (que não importam). Falo de um projeto neoliberal e conservador! O executivo, legislativo e com o aval do judiciário contribuem e promovem estes contornos. Interessa a eles - falo “eles” porque sua maioria é de homens a serviço de e para homens brancos, ricos e 'cristãos'- a manutenção deste sistema político que coloniza, que é racista e machista, que ataca a Democracia, os direitos sociais, como os trabalhistas e, agora, a previdência. Ora, não é á toa que são estes que defendem a escravidão, o recolhimento da mulher ao âmbito privado (politica da bela, recatada e do lar), não é à toa que eles (sobretudo, os fundamentalistas religiosos) inventam um termo chamado “ideologia de gênero”, como forma de confundir a população para que não se avancem as discussões de gênero e de diversidade sexual. O que isso quer dizer? É que estes fanáticos, através de mitos e mentiras, tem promovido o ódio as mulheres e LGBT, tentando barrar temas importantes como o combate à violência contra as mulheres e a garantia dos direitos sexuais e direitos reprodutivos. Por isso que as RUAS ainda são os nossos espaços, é a nossa arena pública e de luta na busca por justiça e igualdade.

sexta-feira, 26 de janeiro de 2018

Mensagem aos democratas brasileiros (por Boaventura de Sousa Santos)

 Boaventura de Sousa Santos
Dirijo-me aos democratas brasileiros porque só eles podem estar interessados no teor desta mensagem. Vivemos um tempo de emoções fortes. Para alguém, como eu e tantos outros que nestes anos acompanhamos as lutas e iniciativas de todos os brasileiros no sentido de consolidar e aprofundar a democracia brasileira e contribuir para uma sociedade mais justa e menos racista e menos preconceituosa, este não é um momento de júbilo. Para alguém, como eu e tantos outros que nas últimas décadas se dedicaram a estudar o sistema judicial brasileiro e a promover uma cultura de independência democrática e de responsabilidade social entre os magistrados e os jovens estudantes de direito, este é um momento de grande frustração. Para alguém, como eu e tantos outros que estiveram atentos aos objetivos das forças reacionárias brasileiras e do imperialismo norte-americano no sentido de voltarem a controlar os destinos do país, como sempre fizeram mas pensaram que desta vez as forças populares e democratas tinham prevalecido sobre eles, este é um momento de algum desalento.
As emoções fortes são preciosas se forem parte da razão quente que nos impele a continuar, se a indignação, longe de nos fazer desistir, reforçar o inconformismo e municiar a resistência, se a raiva ante sonhos injustamente destroçados não liquidar a vontade de sonhar. É com estes pressupostos que me dirijo a vós. Uma palavra de análise e outra de princípios da ação.
Porque estamos aqui? Este não é lugar nem o momento para analisar os últimos quinze anos da história do Brasil. Concentro-me nos últimos tempos. A grande maioria dos brasileiros saudou o surgimento da operação Lava Jato como um instrumento que contribuiria para fortalecer a democracia brasileira pela via da luta contra a corrupção. No entanto, em face das chocantes irregularidades processuais e da grosseira seletividade das investigações, cedo nos demos conta de que não se tratava disso mas antes de liquidar, pela via judicial, não só as conquistas sociais da última década como também as forças políticas que as tornaram possíveis. Acontece que as classes dominantes perdem frequentemente em lucidez o que ganham em arrogância.
A destituição de Dilma Rousseff, a Presidente que foi talvez o Presidente mais honesto da história do Brasil, foi o sinal que a arrogância era o outro lado da quase desesperada impaciência em liquidar o passado recente. Foi tudo tão grotescamente óbvio que os brasileiros conseguiram afastar momentaneamente a cortina de fumo do monopólio mediático. O sinal mais visível da sua reacção foi o modo como se entusiasmaram com a campanha pelo direito do ex-Presidente Lula da Silva a ser candidato às eleições de 2018, um entusiasmo que contagiou mesmo aqueles que não votariam nele, caso ele fosse candidato. Tratou-se pois de um exercício de democracia de alta intensidade.
Temos, no entanto, de convir que, da perspectiva das forças conservadoras e do imperialismo norte-americano, a vitória deste movimento popular era algo inaceitável. Dada a popularidade de Lula da Silva, era bem possível que ganhasse as eleições, caso fosse candidato. Isso significaria que o processo de contra-reforma que tinha sido iniciado com a destituição de Dilma Rousseff e a condução política da Lava Jato tinha sido em vão. Todo o investimento político, financeiro e mediático teria sido desperdiçado, todos os ganhos econômicos já obtidos postos em perigo ou perdidos. Do ponto de vista destas forças, Lula da Silva não poderia voltar ao poder. Se o Judiciário não tivesse cumprido a sua função, talvez Lula da Silva viesse a ser vítima de um acidente de aviação, ou algo semelhante. Mas o investimento imperial no Judiciário (muito maior do que se pode imaginar) permitiu que não se chegasse a tais extremos.
Que fazer? A democracia brasileira está em perigo, e só as forças políticas de esquerda e de centro-esquerda a podem salvar. Para muitos, talvez seja triste constatar que neste momento não é possível confiar nas forças de direita para colaborar na defesa da democracia. Mas esta é a verdade. Não excluo que haja grupos de direita que apenas se revejam nos modos democráticos de lutar pelo poder. Apesar disso, não estão dispostos a colaborar genuinamente com as forças de esquerda. Por quê? Porque se vêem como parte de uma elite que sempre governou o país e que ainda não se curou da ferida caótica que os governos lulistas lhe infligiram, uma ferida profunda que advém do facto de um grupo social estranho à elite ter ousado governar o país, e ainda por cima ter cometido o grave erro (e foi realmente grave) de querer governar como se fosse elite.
Neste momento, a sobrevivência da democracia brasileira está nas mãos da esquerda e do centro-esquerda. Só podem ter êxito nesta exigente tarefa se se unirem. São diversas as forças de esquerda e a diversidade deve ser saudada. Acresce que uma delas, o PT, sofre do desgaste da governação, um desgaste que foi omitido durante a campanha pelo direito de Lula a ser candidato. Mas à medida que entrarmos no período pós-Lula (por mais que custe a muitos), o desgaste cobrará o seu preço e a melhor forma de o estabelecer democraticamente é através de um regresso às bases e de uma discussão interna que leve a mudanças de fundo. Continuar a evitar essa discussão sob o pretexto do apoio unitário a um outro candidato é um convite ao desastre. O patrimônio simbólico e histórico de Lula saiu intacto das mãos dos justiceiros de Curitiba & Co. É um patrimônio a preservar para o futuro. Seria um erro desperdiçá-lo, instrumentalizando-o para indicar novos candidatos. Uma coisa é o candidato Lula, outra, muito diferente, são os candidatos de Lula. Lula equivocou-se muitas vezes, e as nomeações para o Supremo Tribunal Federal aí estão a mostrá-lo.
A unidade das forças de esquerda deve ser pragmática, mas feita com princípios e compromissos detalhados. Pragmática, porque o que está em causa é algo básico: a sobrevivência da democracia. Mas com princípios e compromissos, pois o tempo dos cheques em branco causou muito mal ao país em todos estes anos. Sei que, para algumas forças, a política de classe deve ser privilegiada, enquanto para outras, as políticas de inclusão devem ser mais amplas e diversas. A verdade é que a sociedade brasileira é uma sociedade capitalista, racista e sexista. E é extremamente desigual e violenta. Entre 2012 e 2016 foram assassinadas mais pessoas no Brasil do que na Síria (279.000/256.000), apesar de este último país estar em guerra e o Brasil estar em “paz”. A esquerda que pensar que só existe política de classe está equivocada, a que pensar que não há política de classe está desarmada.

quinta-feira, 25 de janeiro de 2018

O julgamento e os impactos políticos da condenação do ex-presidente Lula. Algumas leituras

Fonte: http://www.ihu.unisinos.br/575547-analistas-repercutem-o-julgamento-e-os-impactos-politicos-da-condenacao-do-ex-presidente-lula

    Por: Ricardo Machado | 25 Janeiro 2018
    Depois de ter sido condenado pelo juiz Sergio Moro em primeira instância, em julho de 2017, o ex-presidente Lula sofreu novo revés nos tribunais. Desta vez em segunda instância pela caneta dos desembargadores João Pedro Gebran NetoLeandro Paulsen e Victor Laus do Tribunal Regional Federal da 4ª Região – TRF4, em Porto Alegre, na quarta-feira, 24-01-2018. Na prática, com a decisão, Lula se torna, em tese, inelegível no pleito presidencial por se enquadrar na chamada Lei da Ficha Limpa, uma vez condenado em segunda instância, mesmo sem o trânsito em julgado. Ainda assim Lula pode registrar sua candidatura, já que a inelegibilidade só se torna efetiva, do ponto de vista burocrático e legal, a partir da impugnação do candidato pelo Tribunal Superior Eleitoral – TSE.
    O resultado, contudo, não causa surpresa. Os desembargadores aumentaram a pena de nove anos e seis meses dada anteriormente para 12 anos e um mês. Se os impactos políticos da decisão ainda serão sentidos ao longo dos próximos meses, no plano da economia de mercado os primeiros sinais foram dados. Na tarde de ontem, o índice geral da Bolsa de Valores de São Paulo - Ibovespa subiu 3,35%Lula mostra que é capaz de animar o sistema financeiro mundial quando está em alta e quando está em baixa. Não deixa de ser irônico que o ex-presidente, em 2002, com a Carta ao povo brasileiro, fez crescer a confiança do mercado internacional no país ao garantir Henrique Meirelles no Ministério da Fazenda, cargo que ocupa novamente, e agora volte a ser motivo de alta na bolsa, não pela ascensão, senão por sua queda.
    Pesa sobre Lula a condenação por ter recebido da Construtora OAS um apartamento triplex em Guarujá, no litoral paulista, como propina para favorecer a empresa em contratos de obras da Petrobras. Os advogados do ex-presidente basearam a defesa no TRF4 com a argumentação de que o apartamento não é de sua propriedade e que não há provas contra ele. Nas ruas e nas redes sociais, a queda de braço entre os brasis que se dividem em polos opostos parece estar longe de um fim. Em meio à complexidade do atual cenário político do Brasil há algo absolutamente claro: 24 de janeiro de 2018 já se tornou um dia histórico.
    Diante de tal contexto, o Instituto Humanitas Unisinos – IHU convidou uma série de analistas para, no calor dos acontecimentos, darem suas primeiras impressões sobre o significado e os impactos políticos do julgamento desta quarta-feira. Fizemos três breves perguntas aos entrevistados e as reproduzimos a seguir. Contribuíram com o debate Roberto RomanoJosé Geraldo de Sousa JúniorAdriano PilattiRudá RicciBruno CavaBruno Lima Rocha e Giuseppe Cocco.
    Confira as entrevistas.

    Roberto Romano em evento no IHU
    Foto: Ricardo Machado | Acervo IHU
    Roberto Romano é professor de Ética e Filosofia na Universidade Estadual de Campinas - Unicamp. Cursou doutorado na École des Hautes Études en Sciences Sociales - EHESS, França. Escreveu, entre outros livros, Igreja contra Estado. Crítica ao populismo católico (São Paulo: Kairós, 1979), Conservadorismo romântico (São Paulo: Ed. UNESP, 1997), Moral e Ciência. A monstruosidade no século XVIII (São Paulo: SENAC, 2002), O desafio do Islã e outros desafios (São Paulo: Perspectiva, 2004) e Os nomes do ódio (São Paulo: Perspectiva, 2009).
    IHU On-Line – Como o senhor avalia o julgamento de Lula no TRF4? De que forma podemos compreender a atuação do judiciário no caso?
    Roberto Romano – O Judiciário brasileiro, no dia 24-01-2018 deu um passo importante na trilha de instaurar o Estado de Exceção. Nas duas ditaduras do século XX, a de Vargas e a civil-militar de 1964, apesar das torturas, assassinatos de presos por agentes estatais, exílios, cassações, não seguiram a rota do Estado de Exceção de modo tão desastroso. Explico: apesar de existirem tribunais militares para julgar os supostos crimes contra a Segurança Nacional, o rito seguido, pelo menos formalmente, seguia a lógica comum dos tribunais consolidados: acusação, defesa, juízo independente. Em casos raros quem ocupava o cargo de magistrado seguia o rumo de reforçar a acusação, em detrimento de defesa. Vemos, com melancolia, que os togados civis, que deveriam evidenciar a mais estrita observância dos papéis, hoje acusam, perseguem, denunciam, ganham prêmios de empresários (os mesmos empresários que no pretérito e no presente maquinam golpes contra a população que congrega os "negativamente privilegiados" (o termo é de Max Weber). A corporação jurídica, abastecida por privilégios sem conta, está cada vez mais distante da população que, com seus impostos, garante todas as instituições estatais.
    A decisão de 24-01-2018, foi mais um tapa na face da cidadania pobre brasileira. O triunfo de Torquemada, lembremos no entanto, é precário. Os juízes que se acautelem, porque os poderosos do Legislativo e do Executivo (que não são conduzidos por pessoas como Luiz Inácio Lula da Silva, mas por práticas autoritárias da direita) logo replicarão, com leis (como a de Abuso de Autoridade) que levará à magistratura ao papel a ela designado pelo Chanceler Francis Bacon: ao papel de "leões sob o trono".
    IHU On-Line – Quais os impactos do resultado do julgamento de Lula no cenário político brasileiro e eleitoral de 2018?
    Roberto Romano – Os impactos podem ser resumidos no seguinte vocábulo: imprevisibilidade política, econômica e jurídica. O mesmo mercado que hoje comemora a condenação do ex-presidente Lula, logo perceberá que a vitória foi de Pirro. Não sobrou nenhuma candidatura sólida à presidência da república, fora Lula, mesmo dentro do Partido dos Trabalhadores - PT. O que significa: ausência quase total de lideranças e legitimidade política nos que pretendem dirigir um país com mais de 200 milhões de habitantes e com problemas monstruosos.

    IHU On-Line – Como fica a esquerda diante do atual contexto? Quais os desafios?
    Roberto Romano – Se a esquerda não fizer um exercício de pensamento e imaginação enorme, se ela continuar com a desastrosa política de alianças à direita, que levou aoimpeachment de Dilma Rousseff (Michel Temer era aliado do PT, não se olvide) ela pode ouvir os sinos das suas exéquias. É preciso que ela se reinvente à esquerda, o que pode parecer óbvio mas não é. ■
    ***

    José Geraldo
    Foto: Agência Brasil/EBC
    José Geraldo de Sousa Júnior possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal - AEUDF, mestrado e doutorado em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Brasília – UnB. É também jurista, pesquisador de temas relacionados aos direitos humanos e à cidadania, sendo reconhecido como um dos autores do projeto O Direito Achado na Rua, grupo de pesquisa com mais de 45 pesquisadores envolvidos. Professor da UnB desde 1985, ocupou postos importantes dentro e fora da Universidade.
    Foi chefe de gabinete e procurador jurídico na gestão do professor Cristovam Buarque; dirigiu o Departamento de Política do Ensino Superior no Ministério da Educação; é membro do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil - OAB, onde acumula três décadas de atuação na defesa dos direitos civis e de mediação de conflitos sociais. Em 2008, foi escolhido reitor, em eleição realizada com voto paritário de professores, estudantes e funcionários da UnB.
    IHU On-Line – Como o senhor avalia o julgamento de Lula no TRF4? De que forma podemos compreender a atuação do judiciário no caso?
    José Geraldo de Sousa Júnior – Não quero entrar no mérito funcional e técnico que cerca a decisão. Nessa matéria, de resto, constata-se o maior acúmulo de análises que vêm sendo construídas já desde a sentença de primeiro grau. E, nesse aspecto, em comentários domésticos e internacionais, que percorrem desde o campo lógico-semântico ao filosófico, passando é claro, pelo jurídico, nenhum tema recebeu tanto esquadrinhamento. Ouso dizer que talvez somente o Caso Dreifus, no final no século XIX, na França, conduzido sob a base de uma fraude documental e por um disfarce político que a acobertou. Como agora, a dimensão política do processo foi objeto de intenso debate ao qual acorreram intelectuais de todo o mundo, Zola e Rui Barbosa, entre eles.
    No julgamento de hoje (ontem) no TRF-4 encontram-se esses mesmos ingredientes, com a captura ainda mais veemente do jurídico pelo político, em um procedimento acalentado pelo corporativismo judicial. Como eu disse, as fragilidades do devido processo legal expostas por tantos meios e modos, não livraram o ex-presidente Lula do libelo cujo fim último é retirá-lo da disputa eleitoral uma vez formado o juízo ilustrado de que o projeto que ele representa não serve aos interesses e motivações que organizam as forças sociais que se organizaram para fazer emergente seu próprio projeto de poder e de sociedade.
    Diferentemente do Caso Dreifus, entretanto, a capacidade social de manter viva a concertação que se iniciou com o movimento de impedimento da liderança que representava o projeto popular, manterá esse procedimento sob contínuo esquadrinhamento para exibir toda a sua astuciosidade. Sem se referir diretamente ao Caso Dreifus, mas como arguto interprete da cena social numa Europa na rota do aburguesamento, pode-se dizer agora o que Balzac escreveu em O Coronel Chabert(São Paulo: Companhia das Letras, 2006), seguido de Um Caso Tenebroso: "quando um homem cai nas mãos da Justiça, deixa de ser um ser moral, mas apenas uma questão de direito ou de fato, como aos olhos dos estatísticos se transforma um número", pior ainda quando "os infelizes não disponham de qualquer meio legal para combater este estado de coisas", referindo-se ao estado a que submetia as pessoas o Código de Brumário ano IV (o código do golpe de Luís Bonaparte, o 18 Brumário). O código do estado de exceção.
    IHU On-Line – Quais os impactos do resultado do julgamento de Lula no cenário político brasileiro e eleitoral de 2018?
    José Geraldo de Sousa Júnior – Ora, o julgamento de Lula na conjuntura é o Mar Vermelho do processo eleitoral de 2018. Penso que Lula pode ainda atravessar a abertura que a sua legitimidade política produz nesse mar encapelado da política porque o julgamento, tanto quanto todos os procedimentos de incriminação que contra ele estão sendo levantados, ao invés de reduzir sua legitimidade a amplifica, como mostram todos os indicadores. E assim, nesse ambiente de alternativas que a História já registrou como reversões notáveis (GetúlioMandelaJuscelino), as posições não venham a se modificar e possamos assistir o ditador virar pai da pátria ou o preso político tornar-se presidente de seu pais. E pelo impulso da consciência possível do social insurgente (lembremos que o povo que cuspia na tumba do czar, no dia anterior beijava o chão que ele pisava).
    E para voltar à metáfora que abre essa resposta, lembremos que o Mar Vermelhofechou-se exatamente sobre as hostes que perseguiam o líder libertador do povo que com ele retomou o seu projeto de sociedade e de História. A própria sequência de procedimentos judiciais, sobretudo no âmbito criminal (que admite imunidades sob condição de resultado eleitoral) e no plano do direito eleitoral, com nuances que certamente o caso sem precedentes afetará, manterá o cenário totalmente imprevisível ao impulso da capacidade mobilizadora de seus principais atores.

    IHU On-Line – Como fica a esquerda diante do atual contexto? Quais os desafios?
    José Geraldo de Sousa Júnior – A esquerda tem que se dar conta de que é esquerda, que enquanto tal, procede e persegue um projeto de sociedade, cujo horizonte histórico está materialmente desenhado e atualizado pelos movimentos sociais, com balizamento ideológico orientado pelas classes subalternas – trabalhadores do campo e das cidades que neles se instalam – e que se revela no seu protagonismo reivindicatório de exercício da política e também distributivista, cuja realização – eu salientei no livro Estado Democrático da Direita, in Roberto Bueno (org). Democracia: da Crise à Ruptura (São Paulo: Edições Max Limonad, 2017) – se faz na disputa sem quartel com a direita, para que a burocratização por esta engendrada não esvazie o seu próprio conteúdo ideológico, despolitizando e subtraindo o caráter democrático que deve dar substância à participação no poder, no funcionamento do sistema de justiça e na distribuição e gestão democrática dos meios de comunicação. ■
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    Adriano Pilatti
    Foto: Luísa Boéssio - Acervo IHU
    Adriano Pilatti é graduado pela Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, mestre em Ciências Jurídicas pela PUC-Rio e doutor em Ciência Política pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro - Iuperj, com pós-doutorado em Direito Público Romano pela Universidade de Roma I - La Sapienza. Foi assessor parlamentar da Câmara dos Deputados junto à Assembleia Nacional Constituinte de 1988. É autor do livro A Constituinte de 1987-1988 - Progressistas, Conservadores, Ordem Econômica e Regras do Jogo (Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008). Pilatti também traduziu o livro Poder Constituinte - Ensaio sobre as Alternativas da Modernidade, de Antonio Negri (Rio de Janeiro: Editora Lamparina, 2015).
    IHU On-Line – Como o senhor avalia o julgamento de Lula no TRF4? De que forma podemos compreender a atuação do judiciário no caso?
    Adriano Pilatti – A turma do TRF-4 seguiu a linha que vem adotando no julgamento de outros recursos da Lava Jato. E o relator seguiu sua tendência de agravar as penas cominadas por Moro. A unanimidade e as falas de legitimação da atuação do judiciário, e especialmente da atuação do juiz de Curitiba, parecem indicar uma espécie de reação corporativa aos questionamentos que a “Operação”, o MPF e a própria Justiça Federalvêm sofrendo. No mérito dos votos proferidos, percebe-se a continuidade de uma tendência mais geral do judiciário e do Ministério Público “como um todo”, que um amigo magistrado chama de “novo paradigma”, novo e triste: o paradigma do punitivismo e do “direito penal do inimigo”; o paradigma da “relativização” das garantias constitucionais, da supervalorização dos indícios e das narrativas construídas a partir deles; o paradigma da “modulação” da presunção de inocência, com o teratológico “in dubio pro societatis” substituindo o milenar “in dubio pro reo”. Não é à toa que opaís tem a quantidade monstruosa de presos, condenados ou não, que tem hoje. E tudo isso vem sendo legitimado a partir de uma série de “cavalos de pau”, no sentido do punitivismo, que uma exígua e obtusa maioria do Supremo Tribunal Federal - STFvem de dar na jurisprudência garantista daquela que deveria, por missão constitucional, atuar como corte das garantias.
    IHU On-Line – Quais os impactos do resultado do julgamento de Lula no cenário político brasileiro e eleitoral de 2018?
    Adriano Pilatti – Enormes. Mas com exceção da óbvia elevação da tensão e da polarização políticas, ainda é prematuro afirmar em quais outras direções, a pedra acabou de cair no lago. No curto prazo, as eleições de outubro entram no signo do imponderável, o efeito é nesse sentido “desestabilizador” de expectativas e estratégias. E a incerteza eleitoral pode se prolongar segundo o ritmo e os rumos do processo judicial, criando uma situação agônica e exasperante. TRF4, Superior Tribunal de Justiça – STJTribunal Superior Eleitoral - TSE e Supremo Tribunal Federal - STFseguirão sendo a arena togada em que se realizará uma espécie de prévia para a definição das candidaturas presidenciais. O tabuleiro político-eleitoral desdobra-se em tabuleiro político-judicial-eleitoral, exigindo uma sincronização de tempos entre a ação dos líderes partidários e a das autoridades judiciais. Se confirmada a exclusão de Lula, a própria legitimidade do pleito poderá ser contestada.
    IHU On-Line – Como fica a esquerda diante do atual contexto? Quais os desafios?
    Adriano Pilatti – Em termos eleitorais, na medida em que no campo de esquerda partidária, até aqui, não construiu uma alternativa competitiva ao lulismo e desafiadora da hegemonia petista, vai depender de como fica o Partido dos Trabalhadores - PT. E teremos um expressivo indicador de como fica o PT já entre março e abril, quando se abre a chamada “janela partidária”, que permite desfiliação e migração de legenda. De todo modo, tudo indica que, eleitoralmente, a esquerda continuará refém do lulismo – pobre do campo político que depende eleitoralmente de um único homem.
    Em termos políticos mais amplos, o campo de esquerda precisaria se refundar, numa espécie de estados gerais das esquerdas, em que se discutisse o mundo tal como é hoje, e não nos tempos do Palácio de Inverno. E se construísse a partir daí uma agenda comum que não se sobrepusesse às agendas específicas de cada movimento social ou organização política, mas que se deixasse atravessar por essa diversidade, crescendo e se renovando com ela. Só que isso é simplesmente impossível neste momento. E um dos entraves, independente de sua vontade, talvez seja o espaço tutelar e providencial ainda ocupado por Lula – pois sua liderança jamais será a mesma no campo da esquerda depois da hostilidade aos levantes de 2013-14 e do estelionato de 2015-16, com a reviravolta na política econômica e a lei “antiterrorismo”. Não deixará de haver quem venha a pensar na necessidade, senão a curto, pelo menos a médio prazo, de uma espécie de parricídio simbólico. ■
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    Rudá Ricci
    Foto: Carolina Lima - Acervo IHU
    Rudá Ricci é graduado em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUCSP, mestre em Ciência Política pela Universidade Estadual de Campinas – Unicamp e doutor em Ciências Sociais pela mesma instituição. É diretor geral do Instituto Cultiva, professor do curso de mestrado em Direito e Desenvolvimento Sustentável da Escola Superior Dom Helder Câmara e colunista Político da Band News. É autor deTerra de Ninguém (Ed. Unicamp, 1999), Dicionário da Gestão Democrática (Ed. Autêntica, 2007), Lulismo (Fundação Astrojildo Pereira/Contraponto, 2010), coautor de A Participação em São Paulo (Ed. Unesp, 2004), entre outros.
    IHU On-Line – Como o senhor avalia o julgamento de Lula no TRF4? De que forma podemos compreender a atuação do judiciário no caso?
    Rudá Ricci – O julgamento de hoje está envolto em uma forte politização, em parte, em virtude do estilo militante – e não estou me referindo à militância profissional, mas política – do juiz Sergio Moro e dos promotores envolvidos na Operação Lava Jato. A permanente exposição pública e até mesmo conclamação pública de engajamento nesta operação e no processo de “caça aos corruptos” (quase nunca, aos corruptores que foram eleitos como peças de delação) transformou este caso num emblema que dividiu o país. Na verdade, do último ano para cá, esta divisão parece menos poderosa entre os apoiadores da Lava Jato.
    Em outras palavras, este processo de tentativa de criminalização de Lula deu ao ex-presidente um álibi extraordinário: o de vítima, perseguido de maneira seletiva por quem não teria provas contra ele. Lula está se tornando o líder político mais popular da história do país em função deste álibi. Álibi que o exime de apresentar um programa de governo sólido e bem amarrado. Seu discurso vem sendo superficial e procura transformar seu caso num caso de defesa da democracia do país. Quantos réus têm à sua disposição tal situação para transformar seu julgamento num julgamento sobre o futuro de toda uma nação? Assim, o julgamento de hoje (ontem) é apenas uma peça deste imenso quebra-cabeças que não termina neste dia 24 de janeiro. Talvez, por este motivo, se Lula fosse absolvido, seria o cenário mais anticlímax da campanha desenhada por Lula há mais de um ano.
    IHU On-Line – Quais os impactos do resultado do julgamento de Lula no cenário político brasileiro e eleitoral de 2018?
    Rudá Ricci – O mais importante é a da campanha antecipada de Lula à presidência da república. O próprio processo o coloca sob os holofotes permanentemente. Se fosse absolvido, pelos dados de pesquisas de intenção de votos, teria uma real chance de se eleger em primeiro turno. Se condenado, não terá sua candidatura inviabilizada. Este é um ponto importante que é desconhecido pela maioria da população. Mesmo sendo “ficha suja”, Lula pode registrar sua candidatura. O que pode impedi-lo é a impugnação do registro pelo TSE. Seria um ato de ousadia que alimentaria ainda mais o conflito político no país, transformando esta eleição numa das mais dramáticas de nossa república. Caso não seja impugnada pelo TSE, a candidatura de Lula pode caminhar até as urnas. Ocorre que será uma candidatura sub judice, ou seja, ainda em julgamento.
    Se, ao final, a condenação for confirmada na instância máxima do poder judiciário – no caso, o STF – os votos de Lula serão invalidados e nova eleição será convocada. O drama político ganhará contornos de crise permanenteLula, contudo, pode alterar este script. Poderá, no dia 15 de setembro, desistir da candidatura e alterar a chapa registrada (esta seria a data limite para mudança da chapa apresentada por um partido). Neste caso, faria o restante da campanha como cabo-eleitoral do seu sucessor. Lembremos que 30% dos eleitores brasileiros afirmam, segundo o Datafolha, que votariam em quem Lula indicar. Outros 20% (um pouco mais que este índice) refletiriam se seguiriam a indicação do ex-presidente. Enfim, Lula presidirá as eleições deste ano, com seu nome na urna ou não.
    IHU On-Line – Como fica a esquerda diante do atual contexto? Quais os desafios?
    Rudá Ricci – A esquerda brasileira parece amadurecida. E me parece que o fiel da balança passou a ser o PSOL. Com a declaração de seu presidente, Juliano Medeiros, de Marcelo Freixo e de Guilherme Boulos – virtual candidato à presidência da república por este partido – em defesa da candidatura de Lula, houve alinhamento das posições do PCdoB, com PT e PSOL. De certa maneira, obrigou as outras legendas deste campo ideológico ou que já foram deste campo (caso do PSB) a assumirem uma posição mais nítida.
    Frente Favela Brasil, partido em formação que envolve lideranças de favelas e regiões periféricas de grandes centros urbanos, lançou uma nota de apoio à candidatura de Lula. Neste caso, o julgamento de Lula gerou um adiamento das discussões programáticas, o que nomeei de álibi. Porque o julgamento se tornou um ato político, um divisor de águas. Este é o motivo da Rede, partido de Marina Silva, ser obrigado a lançar uma nota vaga e temerosa sobre o julgamento de Lula. Não desejava, imagino, ter que se posicionar, mas foi vencida pelos acontecimentos.
    Imagino que se Lula fosse absolvido, seu álibi seria extinto e, neste momento, o embate de projetos no interior da esquerda emergiria. O mesmo deve ocorrer se Lula desistir da candidatura e apresentar um outro nome para substituí-lo nesta campanha. Nenhum nome petista tem de perto a grandeza e a aura de mitologia política que Lula ganhou. Não será, qualquer que seja o nome – além de Jaques Wagner, o nome do ex-prefeito Fernando Haddad é muito citado – unanimidade nem mesmo no interior do PT. A disputa estará aberta. ■
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    Bruno Cava
    Foto: João Vitor Santos - Acervo IHU
    Bruno Cava é pesquisador associado à Universidade Nômade, autor de A multidão foi ao deserto (São Paulo: Editora Annablume, 2013), sobre as manifestações de junho de 2013, e coorganizador de A terra treme: leituras do Brasil de 2013 a 2016(São Paulo: Editora Annablume, 2016).
    IHU On-Line – Como o senhor avalia o julgamento de Lula no TRF4? De que forma podemos compreender a atuação do judiciário no caso?
    Bruno Cava – Lula não foi condenado por suas virtudes, seja como político, seja como líder popular. Não dá pra explicar a confirmação colegiada da sentença de Moro sem reconduzirmos a análise à Junho de 2013. Porque foi aquele movimento que pôs fim ao ciclo lulista, o momento em que os seus principais arranjos começaram a se esfacelar: o projeto grandiloquente do neodesenvolvimentismo, os pactos peemedebistas de governabilidade, os propinodutos bilionários do Petrolão e outros saques diretos da riqueza social. Tudo isso, naquele momento, virou uma cena de dissenso que mudou a percepção em relação ao projeto do Brasil do futuro, do Brasil Maior, do Novo Rio etc.
    Sem o tremor de Junho, não haveria correlação de forças para que uma investigação desse porte e profundidade pudesse chegar aonde chegou, alcançando indistintamente banqueiros, grandes empresários, políticos de calibre, ex-senadores, ex-governadores, ex-presidente da Câmara condenados e presos. O Brasil não foi o único lugar em que, varrido pelo ciclo mundial de lutas deflagrado pelas primaveras árabes, vimos consensos de governo até então tidos por sólidos como rocha se despedaçarem.
    Claro que as várias ramificações da operação Lava Jato nos últimos anos não são uma expressão direta do levante junhista, como se houvesse uma relação mecânica de causa e consequência, mas lhe aproveitaram as brechas abertas, colheram aquele impulso originário e deram a ele uma resposta palpável, para além da retórica.
    Junho se derramou como uma mancha de óleo que foi avançando onde encontrava o relevo mais favorável: barrado enquanto mobilização de radicalização democrática, encontrou um caminho para desaguar a insatisfação massiva em jovens juízes e promotores da primeira instância do Judiciário. A Lava Jato, que agora finalmente chega a Lula pra valer, foi o vetor real de poder que colheu a legitimidade social do sentimento antipolítico e anticorrupção, e que coalesceu num sincrético e amplo apoio no juiz Moro, nas ações da "República de Curitiba", e na via justicialista mais em geral.
    IHU On-Line – Quais os impactos do resultado do julgamento de Lula no cenário político brasileiro e eleitoral de 2018?
    Bruno Cava – A sociedade brasileira está intensamente mobilizada. O que cabe perguntar é porque essa mobilização, que tanta repercussão nas ruas e redes teve nos últimos cinco anos, não cristaliza num apoio orgânico a este ou aquele candidato, a este ou aquele partido político, mesmo que novo. No Brasil e no mundo, a hora é a dos outsiders, daqueles que consigam se apresentar como expressão antissistêmica, que consigam formular uma resposta positiva à crise da representatividade, uma "saída por dentro", quer dizer, mergulhando nos impasses e problemas. Por isso, a condenação de Lula não tem os efeitos escatológicos que a retórica inflamada dos lulistas e antilulistas poderia sugerir, nesse embate de narrativas cuja soma final é zero.
    Compare-se a mobilização do 24 de janeiro com a intensa polarização que vivenciamos em 2016, durante o processo de impeachment, para se ver como está se esgotando esse momento maniqueu que pretende elaborar o antagonismo da política brasileira numa vulgar dicotomia entre bons e ruins, fascistas e totalitários, coxinhas e petralhas.
    O dado que fica, paradoxalmente, é de uma apatia generalizada em relação aos políticos. Mesmo a intenção de voto que as pesquisas de opinião captam ao redor da candidatura de Lula, que terminou seu governo com uma popularidade enorme, ao ser colocada na lupa, parece ser antes um apoio relutante, quase aborrecido, baseado numa lembrança de uma época recente de que já se está sentindo nostalgia (os felizes anos 2000) do que um apoio orgânico, vivo, disposto a ir às últimas consequências. É como o apoio vago que qualquer pesquisa de opinião identificaria no Brasil pela volta da ditadura, inclusive entre os mais pobres, o que no fundo não passa uma nostalgia frágil: não significa que essas pessoas efetivamente se mobilizem para tal, que queiram tanques nas ruas ou tribunais de exceção.
    A bem dizer, talvez o maior prejudicado pela provável inabilitação do petista seja Bolsonaro, cuja vitalidade da candidatura vem em boa parte de sua encarnação do Anti-Lula. Sem ele na disputa, contudo, Bolsonaro fica obrigado a apresentar uma candidatura substantiva, com propostas e posicionamentos sujeitos ao escrutínio, além de ter de falar mais de si próprio e sua trajetória, o que serão pontos fracos e podem derretê-lo mais cedo do que se imagina.
    IHU On-Line – Como fica a esquerda diante do atual contexto? Quais os desafios?
    Bruno Cava – A maior parte da esquerda brasileira virou uma caricatura de si mesma, feita sob medida para personificar um dos lados das 'guerras culturais', contra uma igualmente caricata direita. A negação da potência transformadora de Junho de 2013 a colocou num círculo vicioso de autoalienação: para continuar reproduzindo os próprios públicos, precisa reafirmar a todo momento a consistência de uma narrativa que já deu tantas voltas sobre si (o golpe dentro do golpe dentro do golpe...) que ficou tonta. É como a teoria ptolomaica que, diante das evidências heliocêntricas, recusava-se em cair na real, adicionando cada vez mais um novo epiciclo para salvar o próprio sistema.
    Para a esquerda que, em 2016, saiu do governo, Lula era a grande chance de retornar. Para a esquerda não-governista, a volta de Lula era a chance de recompor uma zona de conforto, a de poder pousar nos ombros do PT no poder como um grilo falante.
    A liquidação jurídica de Lula, contudo, não significa o seu fim político. Nesse sentido, mesmo a possível prisão não fecha a fatura. Não há, nem no PT nem na esquerda em geral, qualquer outro líder com o mesmo cacife nas urnas. Mesmo alijado da cédula, Lula será o trunfo usado para mobilizar militâncias, excitar os instintos de esquerda, e tentar transferir os votos a outras candidaturas, no âmbito nacional ou local.
    No segundo turno, Lula produziria com muita facilidade a unidade das esquerdas, sob o guarda-chuva do voto crítico contra o "mal maior", que o PT nomearia na ocasião. Sem Lula na cédula, essa unificação se torna uma quimera, o que pode acelerar uma fragmentação, inclusive dentro do próprio partido.
    Nada disso, entretanto, sugeriria por si só a aparição de uma nova esquerda não-lulista, capaz de incorporar novas bases sociais, numa renovada matriz de organização política e, eventualmente, restituir-nos um movimento real de transformação. Seria preciso, como condição de existência, mais do que superar a figura de Lula e o repisado bordão de unidade contra o avanço do Mal Maior, superar o próprio projeto lulista, sua abordagem da arte de governar e seu modelo de conexão com as lutas contemporâneas. ■
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    Bruno Lima Rocha
    Foto: Nahiene Alves - Acervo IHU
    Bruno Lima Rocha é mestre e doutor em Ciência Política pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS e graduado em Jornalismo pela Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ. Leciona no curso de Relações Internacionais da Unisinos.
    IHU On-Line – Como o senhor avalia o julgamento de Lula no TRF4? De que forma podemos compreender a atuação do judiciário no caso?
    Bruno Lima Rocha – Eu vejo que todo o processo contra Lula e as declarações do juiz Sergio Moro assim como a atuação da Força Tarefa em Curitiba, a começar pela condução coercitiva ainda durante o segundo governo Dilma em 2016, compromete e politiza o conjunto. A base probatória é fraca e a mobilização da opinião pública através de arroubos como a tese àquela do power point – a da "propinocracia" – e a afirmação de julgar conforme a doutrina e referendar-se na própria convicção ("não temos provas, mas temos convicções") compromete de antemão e afirma a possibilidade de ser um julgamento político. Por isso tanta tensão, e com consequências eleitorais gravíssimas.
    Vejo a atuação do judiciário e do MP cada vez portando-se como um estamento, com ganhos acima – muito acima por vezes – do teto constitucional, incorporando técnicas do padrão dos Estados Unidos e com posições típicas de um sistema de crenças supostamente "meritocrático" e de base liberal. Não é o conjunto das carreiras jurídicas que se porta assim, mas notadamente seus expoentes. E isso passa pelo ativismo judiciário, a teoria do domínio do fato já na Ação Penal 470 e depois com o caso Petrobras e os arroubos da Lava Jato.
    IHU On-Line – Quais os impactos do resultado do julgamento de Lula no cenário político brasileiro e eleitoral de 2018?
    Bruno Lima Rocha – O julgamento do ex-presidente no TRF4 tem diversas consequências. O ex-presidente é favorito nas eleições e hoje ganharia até em primeiro turno. Seu preposto, quem ele indicar já estaria em segundo turno e isso apavora os defensores de uma condição sem volta no Estado brasileiro, pois foi a direita e os oligarcas que abandonaram o pacto de classes do lulismo. Podemos ter o próximo presidente eleito ameaçado de perder mandato por julgamento de recurso no STF, e tudo isso repito, com mais jogo de cena do que recursos probatórios sólidos.
    IHU On-Line – Como fica a esquerda diante do atual contexto? Quais os desafios?
    Bruno Lima Rocha – Os desafios da esquerda são os mesmos desde 2013. Na época o momento era de formar um novo corpo social a partir de uma juventude urbana precarizada apesar da melhora das condições materiais de vida. Hoje é isso ainda, somada a piora das condições materiais de vida após o golpe de 2016. A esquerda em 2013 era nítida por estar à esquerda da centro-esquerda que ocupava postos no governo de coalizão de Dilma. Nisso a situação mudou um pouco, pois empurrou os partidos que compunham o lulismo para a "esquerda".
    O golpe prova o que se sabia mas não se leva em conta que o mais importante não é ter densidade eleitoral, mas força social organizada de modo a não ceder conquistas de direitos sociais adquiridos. Logo, é necessário organizar as maiorias neste sentido, processando o avanço como conquista e não dádiva ou arranjo. Ideologicamente estamos com 44 a 62 milhões de brasileiros e brasileiras "flutuando" entre influências diversas e atravessadas por ideias de desempenho, sobrevivência e alguma ascensão. Justo os beneficiados pelos programas do lulismo.
    Eu entendo que a esquerda se reinventa e se reencontra consigo mesma organizando socialmente e fortalecendo estruturas organizativas para além das urnas. Do contrário, com ou sem Lula, é viver de expectativas sobre os intermediários profissionais e a judicialização do mesmo processo. ■
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    Giuseppe Cocco
    Foto: Fernanda Forner - Acervo IHU
    Giuseppe Cocco é graduado em Ciência Política pela Université de Paris VIII e pela Università degli Studi di Padova, mestre em Ciência, Tecnologia e Sociedade pelo Conservatoire National des Arts et Métiers e em História Social pela Université de Paris I (Panthéon-Sorbonne), doutor em História Social pela Université de Paris I (Panthéon-Sorbonne). Atualmente é professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ e editor das revistas Global BrasilLugar Comum e Multitudes. Coordena a coleção A Política no Império (Civilização Brasileira).
    IHU On-Line – Como fica a esquerda diante do atual contexto? Quais os desafios?
    Giuseppe Cocco – Assistimos a "grandes" mobilizações do PT com apoio de um monte de linhas auxiliares nas últimas semanas e hoje (ontem) assistiremos a um desfecho (mesmo que provisório). O que acontece? Está se defendendo alguma conquista? Está se empurrando a esquerda institucional para alguma reforma? Está se combatendo o fascismo (proibição das drogas, proibição do aborto, máfias que controlam os serviços públicos) que governa nossas cidades onde pobres e negros são massacrados pelos transportes, pelo trabalho e pelas balas?
    Nada disso, a grande mobilização (na Casa Grande de uma empresa semi-estatal e falida) é para defender a ideia que o líder máximo, mesmo que tenha virado o mordomo do grande capital e o padrinho de uma presidenta que quebrou o país e nos entregou nas mãos do vice, tem direito de ser patrimonialista e corrupto como os outros. Não é mais a igualdade de condições de vida que a esquerda defende, é a igualdade no acesso... à corrupção. A corrupção é agora "política pública".
    Do mesmo jeito que o voto crítico nos entregou ao caos, a disputa esquerdista pelo cadáver insepulto de um PT que jogou no lixo um pedaço da gloriosa história das lutas populares brasileiras e mundiais leva todo o mundo para o abismo. ■