*Texto apresentado na Mesa Redonda em Homenagem
ao professor Roberto Lyra Filho no II Seminário de Pesquisa em Direitos Humanos
do Programa de Pós-graduação em Direitos Humanos da Universidade de Brasília no
dia 20 de outubro de 2016.
Luciana de Souza Ramos[1]
Figura 1 Foto Pierre Verger
1. Despachando
Exu e saudando a ancestralidade: Homenagem a Professora Cléria Botelho e a
Roberto Lyra Filho
Todos os orixás se prepararam
para o grande momento, a grande audiência com Olodumare. Todos trataram de
preparar suas trouxas, seus carregos, para levar tudo para Olodumare. E cada um
foi com a trouxa de oferendas na cabeça. Só Exu não levava nada, porque estava
usando o ecodidé e com o ecodidé não podia levar nenhuma carga no ori. Sua
cabeça estava descoberta, não tinha gorro, nem coroa, nem chapéu, nem carga.
Oxu levou os orixás até Olodumare. Quando chegaram ao Orum de Olodumare todos
se prostraram. Mas Olodumare não teve que perguntar nada a ninguém, pois tudo o
que ele queria saber, lia nas mentes dos orixás. Disse ele: “Aquele que usa o
ecodidé foi quem trouxe todos a mim. Todos trouxeram oferendas e ele não trouxe
nada. Ele respeitou o tabu e não trouxe nada na cabeça. Ele está certo. Ele
acatou o sinal da submissão. Doravante será meu mensageiro, pois respeitou o euó.
Tudo o que quiserem de mim, que me seja mandado dizer por intermédio de Exu. E
então por isso, por sua missão, que ele seja homenageado antes dos mais velhos,
porque ele é aquele que usou o ecodidé e não levou o carrego na cabeça em sinal
de respeito e submissão.”(PRANDI, 2001, p. 43)
Antes de
iniciar a minha fala importante me situar enquanto mulher negra, candomblecista
que vive a religiosidade africana não apenas pela dimensão espiritual, mas pela
dimensão de vida, o que significa dizer que não falo sozinha e falo sobre minha
vida e de minha família. Minha fala é situada e está plantada no Terreiro.
Desta
forma, entendo que minha fala é fruto de muitos e muitas que viveram neste
mundo, apreendido pelo processo de conhecimento oral e ancestral, portanto,
inicio saudando Exu, orixá da comunicação e da ligação do Orun com Aiyê. Exu é
o Orixá, como na epígrafe, que deve ser saudado antes de qualquer manifestação
nossa. Sem saudar Exu primeiro e sem a
sua benção nada acontece no Candomblé. Laroiê!!!!
Motumbá,
Mucuiu e Kolofé aos meus mais velhos e mais novos presentes!
Saúdo
também toda a ancestralidade que nos forja hoje como lutadoras e lutadores a
partir de todo processo de luta, resistência e fé nos orixás. Saúdo, portanto o
Prof. Roberto Lyra Filho e a Professora Cléria Botelho.
Gostaria
também de homenagear e saudar a professora Cléria Botelho que foi minha
professora na disciplina de História Cultural e que pela nossa compreensão
religiosa é uma ancestral, que nos forjou como sementes da construção coletiva,
do amor, de dedicação e de muito respeito e fé espiritual. Cléria foi um
beija-flor que semeou em cada um nós sementes de girassol que se viram para ela
como esse sol de coragem e vida.
Minha
homenagem a Lyra é a própria fala, inquietante, poética e crítica.
Exu
despachado e ancestralidade saudada, vamos as reflexões que me trouxeram aqui.
2. A justiça de Xangô e a prosperidade de Oxossi: a riqueza das reflexões de Roberto
Lyra Filho na construção da Justiça (social)
No livro “O que é
Direito” Lyra desenha criticamente a hegemonia de uma concepção do direito e
aponta utopias, horizontes para a fundação de uma outra gramática. Inicia no
capítulo um construindo os limites na compreensão do direito como lei e diz:
Se o direito é reduzido a pura
legalidade, já representa a dominação ilegítima por força desta mesma suposta
identidade; e este direito passa, então, das normas estatais, castrado, morto e
embalsamado para o necrotério duma pseudociência que os juristas conservadores,
não a toa, chamam de dogmática. Uma ciência verdadeira, entretanto, não pode
fundar-se em “dogmas”, que divinizam as normas do Estado, transformam essas
práticas pseudocientíficas em tarefa de boys
(girls) do imperialismo e da dominação e degradam a procura do saber numa
ladainha de capangas incoscientes ou espertos. (FILHO, 1999, p. 11)
E
ai gostaria de fazer uma primeira provocação, uma primeira abertura para uma
reflexão crítica, já que estaremos dialogando nos próximos dias sobre pesquisa
em Direitos Humanos na pós-graduação.
Em
que medida nossas práticas, teóricas, acadêmicas e de projeto de vida
desconstroem essa concepção dogmática do direito e dos Direitos Humanos? Em que
medida reforçamos essa divinização das normas dos Direitos Humanos quando não
nos pomos em diálogo com as práticas culturais, de luta e de resistência dos
subalternizados(as) ?
Para
ajudar nesta reflexão, Lyra afirma que “não há verdadeiro estabelecimento dos
Direitos Humanos sem o fim da exploração; não há fim verdadeiro da exploração,
sem o estabelecimento dos Direitos Humanos” (Ibidem , p. 11)
Pensar
na exploração como única categoria na contemporaneidade é suficiente para o
estabelecimento dos Direitos Humanos? A disputa do espaço público por velhos
sujeito para a construção e reconhecimento de velhos (novos) direitos não nos
impele à ampliação de outros olhares compartilhados, como os de gênero, raça,
geracional e étnico?
Como
“nada é num sentido perfeito e acabado, que tudo é sendo” (ibidem, p. 12),
importante contemporanizarmos os frontes, as lutas, estratégias e processos de
resistência, trazidos por Lyra, para manter viva e dinâmica essa memória e suas
reflexões críticas, tão importantes de serem resgatadas em tempos de golpe, de
engavetamento dos corpos legislativos construídos pelo processo de luta social.
Vimos, tecendo a partir de Lyra, uma zumbinização legislativa, retirada dos
necrotérios dogmáticos para o sepultamento de corpos, lutas e direitos
conquistados por meio da luta social.
O
Judiciário de Moro, Dalagnol e outros. Um legislativo de Bolsonaro, Feliciano,
Cunha vem aumentando “os campos de concentração legislativa” e ressuscitando
zumbis adormecidos facistas, coloniais, heteronormativos, machistas e inquisitores
religiosos, construindo “um falso direito” (DALLARI apud FILHO,
p. 24).
3. Dando
ebó e despachando egum: construindo práticas (acadêmicas) decoloniais nos
Direitos Humanos como legítima organização da liberdade
Talvez
um dos pontos mais importantes de contextualização contemporânea com o
pensamento de Lyra, entendendo, claro, seu tempo histórico, social e de luta,
embora muito atual diante dos conflitos que se agudizam na conjuntura política,
seja a descentralização da colonialidade, do eurocentrismo produzido pela
modernidade, principalmente quando se trata dos Direitos Humanos.
Precisamos
pensar e construir uma prática e teoria dos direitos humanos a partir dos
subalternos (as), dos silenciados (as) pelo processo colonial. E para isso
fundamental refundarmos alguns princípios dos Direitos Humanos a partir desses
sujeitos, apontando os limites e contradições do que vem sendo pautado
hegemonicamente como Direitos Humanos.
Lyra
nos convida a sair das “nuvens metafísicas” para não nos perdermos nelas
esquecendo das lutas sociais. Resistências que vem se apropriando da gramática
dos Direitos Humanos, forjando (novas) velhas possibilidades na centralidade e
disputa da concepção destes.
E
como diz Lyra, na Carta Aberta a um jovem criminólogo, em que ele critica o “academicum” que só vê a massa como tema,
as discussões intermináveis que separam os grupos e criam torres de argumentos,
como um refúgio.
Revoltam-me, portanto, as
teorias despistadoras, o distinguo salerte dos intelectuais desfibrados e autocomplacentes,
a pseudocultura derramando-se nas erudições de fachada, os rendilhados ontognósio-epistemológicos
flatulentos, os metadiscursos elcaticos, todas essas coisas pegajosas, sibilinas,
estruturalistas, fenomenológicas, de falsa epoché,
limpando o sangue "que se esparramou nas calçadas e tapando os ouvidos ao
clamor popular. (FILHO, 1982, p.07)
E
completa afirmando que o “teoricismo desbragado” dos intelectuais brasileiros,
corta a manteiga sem chegar ao pão e ao miolo do que é socialmente retrógrado
(Ibidem, p.08).
Terceiro
ponto para trabalhar os Direitos Humanos no Brasil é reconstruí-lo a partir da
América latina. Precisamos como diz Catherine Walsh “sudamericanizar,
andinizar, africanizar” nosso olhar e estudos, gerando uma reflexão crítica sobre
as sociedades em que vivemos. Precisamos pensar na interculturalidade como
projeto social, político, ético e epistêmico.
Talvez
seja uma dimensão distante da leitura crítica de Lyra, contudo, o próprio Lyra
sempre escreveu o direito a partir das lutas como algo “em sendo”, em
movimento, com história, com embates. Desta forma, tenho plena convicção que
Lyra seria um dos entusiastas das leituras pós-colociais, decoloniais que hoje
refletimos.
Assim,
e para não me alongar muito, até porque queria homenagear Lyra ao seu próprio
estilo, inquietante, crítico, e, abrindo caminhos para ampliarmos nossos
olhares sobre as inúmeras possibilidades de (re)significar, (re)construir,
(re)gramaticar os Direitos Humanos.
E
a partir dessas várias possibilidades que sugiro um brain storm que chamarei aqui de Direito Achado na Encruza.
4. Direito
Achado na Encruza: caminhos abertos, múltiplos olhares e possibilidades
utópicas
Importante
pensar na Encruzilhada como possibilidades de caminhos, como início e não como
fim do mesmo, como algo sem saída. A Encruzilhada é o lugar da utopia.
E
assim, precisamos ter coragem epistemológica para:
- (Re)construir e disputar a concepção de Direitos Humanos;
- Ampliar olhares e aprender novas metodologias e diálogos sociais;
- Construir uma prática acadêmica horizontalizada com centralidade no reconhecimento e respeito às sensibilidades múltiplas, inclusive dos discentes;
- Romper a centralidade colonial na produção acadêmica;
- Avançar nos diálogos e construções coletivas Latino americanas e perceber novas formas e olhares do fazer e viver dos Direitos Humanos;
- Refletir e romper, enquanto academia, com práticas coloniais que provocam racismo, sexismo, homofobia, exclusões geracionais dentro da academia;
- Precisamos, para finalizar, romper com o deslocamento e polarização da condição do sujeito em “Mundo acadêmico”, gélido, ahistórico, impessoal, neutro, e, em “Mundo pessoal”, do sensível, do afeto, das cores, dos toques. Porque a cisão desses mundos promove, na verdade, espaços que produzem sofrimento, exclusão e racismo (Mundo acadêmico) e espaço que se vivencia solitariamente a dor, a raiva e a indignação (Mundo pessoal);
- Trazer Lyra para nossas pesquisas, olhares e construções sociais e de luta, principalmente, o seu espírito inquieto, a partir dos nossos processos constantes de humanizarse, mulherizarse, enegrecerse, bichizarse, candomblesizarse, para que possamos, como sugere Profa. Maria Lucia Leal, reconstruir as bases públicas da Universidade tendo como horizonte um projeto emancipatório.
Finalizo,
resgatando o Mundo pessoal de Lyra, como Noel Delamare, que nos convida a
juntar os mundos porque somos um, complexos, multifacetados, mas sujeitos
colocados em múltiplas territorialidades, não podendo, a Universidade ser o
pelourinho que nos açoita nas nossas sensibilidades, mas, ao contrário, que nos
fortalece e acolhe quem somos:
Antigamente,
O
grão-senhor pagava seus amantes,
Agora
inclui no rol das mordomias
O
penico de ouro da libido.
Para
executivo, expense account,
O
funcionário gordo tem burra do Estado.
Não
sou, não fui a bela adormecida,
Não
vi, não há o príncipe encantado,
Somente
quebra-galhos,
Fome
inexorável
De
envelhecer contando amores lindos,
Que
acalmam as angústias renitentes.
Cultivo
abismo em terra de carência,
O
espírito entre as pernas:
Humorismo
de Madre Natureza,
Que
nos põe a cagar nossos tormentos,
Mijar
as águas duma solidão
Pelos
mesmos orifícios
Que
recebem a força penetrante
Ou
desprendem o gozo rapidíssimo,
Sem
paina, sem ternura
E,
apesar de tudo,
Indispensável.
O
racional é frio, encabulado,
O
passional me arde e descontenta;
No
meio, tira férias o desbunde.
Precisamos resgatar a militância para
reconstruir as bases políticas e críticas, refundando assim o afeto, afeto como
político, afeto como humano, afeto como direito.
Bibliografia
FILHO,
Roberto Lyra. Carta Aberta a um jovem Criminólogo:
teoria, práxis e táticas atuais. Rio de Janeiro: Edições Achiamé,
1982. Disponível em : http://danielafeli.dominiotemporario.com/doc/tratado_lyra_filho3.pdf
____.
O que é direito. SP: Editora Brasiliense, Coleção Primeiro Passos, 1982. Disponível em: http://ebooksgratis.com.br/livros-ebooks-gratis/tecnicos-e-cientificos/direito-o-que-e-direito-roberto-lyra-filho-colecao-primeiros-passos/
____. Da cama
ao comício. Poemas bissextos. Brasília: NAIR, 1984.
PRANDI,
Reginaldo. Mitologia dos orixás. São
Paulo: Companhia das letras, 2001.
WALSH,
Catherine. Interculturalidad,
plurinacionalidad y decolonialidad: lãs insurgências político-epistêmicas de
refundar El Estado. Tábula Rasa: Bogotá, 2008.
[1] Doutoranda em Direito pela Universidade de Brasília (UNB). Pesquisadora dos grupos de pesquisa O Direito Achado na Rua, Grupo Candango de Criminologia e do MARÉ da UNB. Advogada popular membro da RENAP-MARIETTA BADERNA.
Lu, muito obrigada por compartilhar conosco essas reflexões valiosíssimas! Além da merecida homenagem a Lyra, referência no pensamento jurídico crítico brasileiro, você nos provoca e nos desafia a irmos além, a descolonizarmos nossas teorias, a universidade e o conhecimento que por ali circula.
ResponderExcluirEm tempos de retrocessos de direitos a passos largos, suas reflexões tornam-se ainda mais necessárias para (re)encontrarmos novos caminhos e alternativas.
Abraço grande e axé, mana!