Por Patrícia Vilanova Becker*
Oviedo, 13 de outubro de 2016
Está chovendo em Oviedo. Agora sim posso escrever. Nas últimas semanas parecia que a cidade estava se negando a chorar. As tardes eram de céu claro com um sol acolhedor. Ontem Oviedo resolveu chover, como dizem que sempre chove por aqui. Ontem era feriado nacional. Não apenas em Oviedo que chove, mas em toda a Espanha. Era o 'Día de la Hispanidad'. Uma festa nacional que se celebra com base na data de 12 de outubro de 1492. Esta mesmo, a chegada de Cristóvão Colombo na América, quando confuso pensava que estava no Japão. Sorte dos japoneses. A terra era outra. O sangue nosso. Para ser marcado e derramado para sempre. Segundo essas coisas que a gente encontra perdidas pela internet, a data do Día de la Hispanidad foi precedida de uma outra comemoração: "Fiesta de la Raza Española". Parece que um sujeito chamado Zacarias de Vizcarra propôs em 1926 que a festa, estabelecida em 1918, mudasse de nome. De “raza” para “hispanidad”. Parece que foi feita a sua vontade. E aqui estamos.
Dizem as fontes difusas que a data também coincide com a coroação canônica de La Virgen de Guadalupe, como Reina de la Hispanidad em 12 de outubro de 1928. Parece que La Virgen del Pilar, patrona das cidades de Aragón e Zaragoza, também tem algo que celebrar em 12 de outubro. Também foi o dia em que, em 1943, a Cidade Universitária de Madrid foi reinaugurada após ser destruída durante a Guerra Civil. Oficialmente, o termo “raza” imperou até 1958, quando a ditadura franquista reconheceu por decreto o nome de Dia de la Hispanidad. Em 1987, outra vez a festa mudou de nome. Passou a ser o Día de la Fiesta Nacional de España através da Ley 18/1987. Parece que houve quem defendesse que se mudasse também o dia, passando a contemplar o 06 de dezembro em comemoração à aprovação da Constituição Espanhola de 1978. Não vingou. Venceu o “descubrimiento”.
Ontem passei o dia em casa. Debaixo das cobertas. Ouvindo a cidade que chovia. Não deu vontade de sair. Parecia que não era a minha festa. Não fui convidada. Mas confesso que pela televisão espiei disfarçadamente a festa dos outros. Tinha bandeiras, militares, marchas. Nada muito diferente de algumas coisas estranhas que fazemos no Brasil quando esquecemos nosso passado de ditadura. Talvez esse pessoal do Día de la Hispanidad tenha escolhido esta data porque leram Enrique Dussel. Sabiam que a Europa se tornou o centro do mundo a partir da criação da sua periferia:
"Se ‘inventó’ el ‘ser-asiático’ de lo encontrado. De todas maneras, la ‘invención’ en América de su momento ‘asiático’ transformó al Mar Océano, al Atlántico, en el ‘centro’ entre Europa y el continente al oeste del Océano" (DUSSEL, 1994, p. 39).
"Era una figura económico-política, América Latina fue la primera colonia de la Europa moderna - sin metáforas, ya que historicamente fue la primera ‘periferia’ antes que Africa y Asia” (Idem, p. 61)
Sim eu sei. Espanha não é Europa. Ou ao menos consta que parte da Europa acha que a Espanha não seria suficientemente europeia. Seria então a afirmação de uma “raza” espanhola uma resistência contra-hegemônica ao histórico desprezo europeu aos povos Ibéricos?
“España, el mundo ibérico, es visto como un pueblo aferrado al pasado sin capacidad e ímpetu para caminar, seguir adelante, cambiando. […] En el siglo XVI, sigue Costa, ‘las naciones europeas se dividieron en dos bandos: a un lado, el porvenir, la edad moderna del mundo representada por Inglaterra, Italia, Alemania, Francia; y al otro el pasado, la resistencia obstinada al progreso y a la vida nueva representada por Espana’”. (ZEA, 1990, p. 98)
“Pero ¿por qué sucedió todo esto en España y no en pueblos que de alguna forma sufrieron los mismos males? ‘Yo me inclino a pensar - sigue Costa - que la causa de nuestra decadencia es étnica y tiene su raiz en los mas hondos estratos de la corteza del cerebro’. Es algo natural al ibero, lo lleva como algo ineludible de su conformación física. Como algo que no puede ser de otra manera, algo propio de su especie. Un problema, al parecer, racial.” (ZEA, 1990, p. 99)
Pensando melhor, creio que não. Não pareciam contra-hegemônicos aqueles espanhóis do tempo dos navios. Naquela época, a “raza” da Espanha contrastava com a “raza” do seu Outro fundamental. O Outro tornado “O mesmo”. Na sua colônia, no seu grande jardim. Parece que a justificativa da data é então uma homenagem a esse “encuentro de dos mundos”. Sobre isso mais uma vez deixo falar Dussel:
"Se trata del eufemismo del ‘encuentro de dos mundos’, de dos culturas - que las clases dominantes criollas o mestizas latinoamericanas hoy son las primeras en proponer - intenta elaborar un mito: el del nuevo mundo como una cultura construída desde la armoniosa unidad de dos mundos y culturas: europeo e indígena. […] Digo que hablar del encuentro es un eufeminismo - ‘Gran Palabra’ diría Rorty - porque oculta la violencia y la destrucción del mundo del Otro, y de la otra cultura. Fue un ‘choque’, y un choque debastador, genocida, absolutamente destruidor del mundo indígena. Nacera, a pesar de todo, una nueva cultura (tema que trataremos en el Epílogo, más adelante), pero dicha cultura sincrética, híbrida, cuyo sujeto será de raza mestiza, lejos de ser el fruto de una alianza o un proceso cultural de síntesis, será el efecto de una dominación o de un trauma originario (que, como expresión de la misma vida, tendrá oportunidad de una ambígua creación). (DUSSEL, 1994, p. 75)
Mas vamos encerrar por aqui, não quero ser repetitiva escrevendo sempre cartas sobre festas que não eram minhas. Mas é que esta não era mesmo. Não era nossa. Aliás, a data também é comemorada na América Latina - assim foi chamado o antigo jardim, aonde os europeus insistem em voltar para roubar as flores que restaram. Na terra de Simón Bolívar, de Che Guevara, de Zumbi e de Dandara, e de outros líderes cujo o povo do norte gosta de dizer que não eram assim tão heróicos, a data ganhou nomes diferentes. Na Venezuela e na Nicarágua, a data passou a ser chamada Día de la Resistencia Indígena. Na Argentina, teve o nome alterado para Día del Respeto a la Diversidad Cultural. Acho que faz sentido. Que a gente mude ao menos o nome, já que a história cambia pouco. Para que aprendamos a viver com ela e apesar dela. Para fechar nossas veias abertas. Ou expô-las ao mundo de tempos em tempos, deixando que todos saibam que elas ainda sangram.
Enquanto isso chove em Oviedo. Cidade doce. Feita de peregrinas e caminhos. De passageiras. De feministas que entendem o valor da solidariedade. De senhoras e senhores gentis com bengalas bonitas, mesmo quando não precisam. Oviedo do Paco e da Blanca, da gentileza e da amizade. Sobre isso dedicarei novos capítulos. Urge agora descobrir o que faz de Oviedo uma cidade tão encantadora. A cidade prometida da aposentadoria de Woody Allen, que sem nenhum pudor disse que “Oviedo es como si no perteneciera a este mundo, como si no existiera... Oviedo es como un cuento de hadas”. Se não fossem essas veias abertas, e a festa a que eu não fui convidada, falaria apenas sobre isso. Sobre Oviedo que decide chover. Ou seria toda a Espanha que chove?
*Patricia Vilanova Becker, integra o Grupo de Pesquisa O Direito Achado na Rua; mestranda em Direito pela UnB, participa atualmente do Programa Erasmus Mundus Master´s Degree in Women's and Gender Studies na Universidade de Bolonha e Universidade de Oviedo. Co-fundadora de Freeda: espaços de diversidade.
Referências:
DUSSEL, Enrique. 1492. El encubrimiento del otro. Hacia el origen del mito de la modernidad. Quito: Abya Ayala, 1994.
ZEA, Leopoldo. Discurso desde la Marginalización y la Barbarie. Ed. Fondo de cultura económica, Mexico, DF, 1990.
Muito legal seu relato, Patrícia! Sobre essa vivência contraditória em terras europeias que acaba por nos fazer sentir a nossa identidade latina!
ResponderExcluirEi Patrícia, eu não tinha lido sua carta, ainda. Que arrependimento! Sempre que leio, me sinto provocadíssima pelas suas reflexões. Tem sido um processo de contínua aprendizagem participar desses seus momentos de compartilhamento. É como se você permitisse que um pouquinho de sua vivência fosse, também, nossa.
ResponderExcluirE se não fossem essas veias abertas, as cartas certamente seriam outras.
Vi suas referências a Dussel e Zea no texto, daí fiquei intrigada em te perguntar uma coisa: em sua percepção, como é a utilização (ou não) dessas obras aí na Europa?
"Europa" é muito, né rs... nas duas realidades que você tem pósgraduado, como é a inserção da teoria e teórica/os latinoamericano/as?