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O golpe parlamentar-judicial que ocorreu no Brasil vai ter repercussões na vida social e política do país difíceis de prever, ainda que, na versão oficial e na dos EUA, tudo tenha corrido dentro da normalidade democrática. Mas são também de prever repercussões internacionais, não só porque o Brasil é a sétima economia do mundo e assumiu nos últimos anos uma política internacional relativamente autônoma, tanto no plano regional como no plano mundial, através da participação na construção do bloco dos BRICS, mas também porque o modelo de desenvolvimento que adotou nos últimos treze anos pareciam indicar que são possíveis alternativas parciais ao neoliberalismo puro e duro, desde que não se toque na sua guarda avançada, o capital financeiro global (é certo que os BRICS pretendiam a prazo tocar-lhe – banco de desenvolvimento, transações nas moedas próprias – e por isso tornou-se urgente neutralizá-los).
Para especular informadamente sobre possíveis repercussões é preciso determinar a natureza política e constitucional do regime político pós-golpe. Houve golpe porque não foi provado o crime de responsabilidade, o único facto que num regime presidencial podia justificar o impedimento. Assim sendo, é fácil concluir que houve uma interrupção constitucional, mas a sua natureza é difícil de tipificar. Não houve declaração de guerra, não foi declarado o estado de sítio ou o estado de emergência. Foi uma interrupção anômala que resultou do inchamento excessivo de um dos órgãos de soberania, o poder legislativo, com o consentimento e até a colaboração ativa do único órgão de soberania que podia travar a interrupção constitucional, o poder judicial. Visto à luz dos influentes debates dos anos vinte do século passado, o que se passou no Brasil foi o triunfo de Carl Schmitt (primazia do soberano) sobre Hans Kelsen (controle judicial da Constituição). E o curioso é que essa vitória foi assegurada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) ao consentir, por ação ou omissão, nas anomalias constitucionais e interpretações bizarras que se foram acumulando ao longo do processo. Houve pois rendição de um dos órgãos de soberania ao poder soberano. Por isso, rigorosamente, o golpe foi parlamentar-judicial e não apenas parlamentar.
Qual foi no caso o poder soberano? Não foi certamente o povo brasileiro que ainda pouco tempo antes tinha elegido a presidente. Foi um soberano de várias cabeças constituído pela maioria parlamentar, os grandes meios de comunicação, o capital financeiro e as elites capitalistas a ele ligadas, e os EUA, cuja intervenção está por agora pouco documentada mas que se manifestou por várias formas, as mais evidentes das quais foram, por um lado, a visita de John Kerry ao Brasil e a declaração à imprensa junto com José Serra (que na altura nem sequer era um ministro com plenos poderes por o impeachment estar ainda em curso) para salientar as boas condições que se abriam ao fortalecimento das relações entre os dois países. O seguinte trecho das palavras de John Kerry na reunião de 5 de agosto com José Serra são chocantemente elucidativas: “Penso que é uma afirmação honesta dizer que nos últimos anos as discussões políticas no Brasil não permitiram o pleno florescimento do potencial da nossa relação” (http://www.state.gov/secretary/remarks/2016/08/260893.htm). Por outro lado, igualmente esclarecedora é a ida a Washington do senador Aloysio Nunes, no dia seguinte à aprovação do impeachment na Câmara dos Deputados, para conversações com o número três do Departamento de Estado e antigo embaixador no Brasil, Thomas Shannon, a figura mais influente na definição da política norte-americana para o continente.
Neste contexto é importante responder a três perguntas. Qual a natureza do regime político do Brasil depois do golpe parlamentar-judicial? Qual o significado do ato de rendição judicial? Quais os desafios para as forças democráticas? Neste texto respondo às duas primeiras.
Natureza do regime político. É um regime que se define mais facilmente pela negativa do que pela positiva. Não é uma ditadura como a que existiu até 1985; tão pouco é uma democracia como a que existiu até ao golpe; não é uma ditabranda ou democradura, designações em voga para caracterizar os regimes de transição da ditadura para a democracia. Trata-se de um regime nitidamente transicional anômalo sem direção definida para onde irá transitar. Em termos de teoria de sistemas, é um sistema político altamente desequilibrado, numa situação de bifurcação: a mais pequena alteração pode causar grandes mudanças sem que o sentido destas seja previsível. Pode resultar em mais democracia ou em menos democracia mas, em qualquer caso, é de prever que ocorra com alguma turbulência social e política. O desequilíbrio resultou da rutura institucional forçada pelo sector maioritário das elites económicas e políticas, que sentiu ameaçado o regime de acumulação capitalista, e a lógica social do senhor/escravo (no Brasil, a lógica da separação entre a casa grande e a senzala), que legitima muitas das hierarquias sociais das sociedades capitalistas com forte componente oligárquica de raiz colonial. Foi uma ruptura que não visou alterar o sistema político (este mostrou-se, aliás, muito funcional), mas apenas alterar um resultado eleitoral e repor o estado de coisas que vigorava antes da intrusão petista (do PT, Partidos dos Trabalhadores).
As elites agora no governo tudo farão para remendar essa ruptura o mais rapidamente possível. Não podem fazê-lo por via do governo e com medidas que agradem às maiorias, uma vez que a restauração capitalista-oligárquica exige medidas antipopulares. Aliás, é de prever que a destruição das políticas sociais e instituições do período anterior seja realizada rapidamente e sem disfarces de reconciliação social. É de prever uma outra versão da doutrina de choque semelhante à da austeridade imposta pelo FMI e UE aos países do Sul da Europa ou à que está a aplicar o presidente Macri na Argentina, com a ressalva de que Macri ganhou as eleições. Remendar a ruptura por via eleitoral também não é viável porque não é certo que ganhem as eleições. Resta-lhes, pois, usar de novo o judiciário, agora para repor quanto antes a ideia da normalidade institucional. Isso será possível através de algumas decisões judiciais compensatórias que criem a ideia, talvez ilusória mas credível, que as instituições não perderam totalmente a capacidade de limitar a arbitrariedade do poder político e a arrogância do poder social e econômico. A probabilidade de que tal ocorra depende das fraturas que possam surgir no interior do judiciário, como aconteceu em períodos recentes. E se ocorrer, será isso suficiente para reconstituir a normalidade institucional sem a qual a governação será muito difícil? Ninguém pode prever. Acresce que o contexto do golpe parlamentar-judicial faz com que este não se tenha podido concluir com o afastamento da presidente Dilma Rousseff. Tem de continuar até as elites terem a certeza de que a democracia não representa nenhum risco para elas. E para o golpe continuar vai ser necessária ainda muita intervenção do judiciário.
O sistema judiciário: dois pesos duas medidas. O papel central do sistema judiciário nos equilíbrios e desequilíbrios do período pós-1985 deve ser analisado com detalhe, pois isso nos pode ajudar a compreender comportamentos futuros. A operação lava-jato apresenta grandes ambivalências. Se, por um lado, fez com que grandes empresários, políticos e empreiteiros fossem processados criminalmente, rompendo, de alguma maneira com o sentimento de impunidade, por outro, a sua grande base de sustentação é o envolvimento de personagens da esquerda brasileira, em especial do PT. Ou seja, o grande apoio social e midiático que a lava-jato possui é por estar perseguindo a esquerda. Isso fica evidente quando comparamos a operação lava-jato com a operação Satiagraha, que investigava a corrupção e o branqueamento de capitais, envolvendo, principalmente, o banqueiro Daniel Dantas com as privatizações do Governo Fernando Henrique Cardoso. Foi comandada pelo Juiz Federal Fausto de Sanctis e pelo Delegado da Polícia Federal Protógenes Queiroz. Foi grande a reação do STF a essa operação e bem diferente da atual: o Delegado Protógenes Queiroz foi condenado criminalmente, e expulso da Polícia Federal; o Juiz Federal Fausto de Sanctis sofreu perseguição do então presidente do STF, Ministro Gilmar Mendes, quem oficiou o Conselho Nacional de Justiça, CNJ (do qual também era Presidente) para apurar a conduta do juiz. Foi um grande embate da Justiça Federal de primeira instância com o STF. Por seu turno, a prisão do banqueiro Daniel Dantas, que chegou a ser algemado, foi, no fundo, a real origem da Súmula Vinculante 11 do STF, assim ementada: “Só é lícito o uso de algemas em casos de resistência e de fundado receio de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia, por parte do preso ou de terceiros, justificada a excepcionalidade por escrito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade e de nulidade da prisão ou do ato processual a que se refere, sem prejuízo da responsabilidade civil do Estado”.
Talvez isto baste para concluir que no Brasil (e certamente não é caso único) o êxito da justiça criminal contra ricos e poderosos parece estar fortemente relacionado com a orientação político-partidária dos investigados. Mas há mais. A nomeação do ex-presidente Lula como Ministro levou o Juiz Sérgio Moro a cometer um dos atos mais flagrantemente ilegais da justiça brasileira contemporânea: permitir a divulgação do áudio entre a Presidente Dilma e o ex-presidente Lula quando já sabia que ele já não era competente para o processamento. O ministro do STF, Teori Zavascki, escreveu no seu despacho: “Foi também precoce e, pelo menos parcialmente, equivocada a decisão que adiantou juízo de validade das interceptações, colhidas, em parte importante, sem abrigo judicial, quando já havia determinação de interrupção das escutas”. Essa divulgação deu um novo impulso ao movimento a favor do impeachment da presidente Dilma. A propósito, o fato de a Presidente Dilma ter nomeado Lula da Silva como Ministro, ainda que tivesse por motivação exclusiva a alteração de foro competente para julgamento, não constitui por si só uma obstrução da justiça. Com efeito, na época em que era Presidente, Fernando Henrique Cardoso (FHC) atribuiu o status de Ministro ao então Advogado Geral da União (AGU), Gilmar Mendes, com um objetivo semelhante.
De fato, no final da década de 90 do século passado e início do século XX, por conta das privatizações e elevação da carga tributária, vários juízes federais começaram a proferir decisões liminares (que interrompem ações em curso) e a intervir no programa econômico do governo FHC. O Ministro Gilmar Mendes era então Advogado Geral da União e criticava fortemente a postura dos juízes federais. Foram várias ações de improbidade e ações populares contra o governo FHC e o próprio Advogado Geral da União, Gilmar Mendes. Perante o perigo de Gilmar Mendes ter de responder a processos em primeira instância (sobretudo ações de improbidade administrativa), foi editada a Medida Provisória n. 2.049-22, de 28 de agosto de 2000, que lhe garantiu o foro privilegiado e assim o preservou. Em seu art. 13 parágrafo único dispôs: “São Ministros de Estado os titulares dos Ministérios, o Chefe da Casa Civil, o Chefe do Gabinete de Segurança Institucional, o Chefe da Secretaria-Geral e o Chefe da Secretaria de Comunicação de Governo da Presidência da República e o Advogado-Geral da União”. E na altura não houve nenhum tipo de questionamento, nenhuma alegação de inconstitucionalidade ou “criminalização” do presidente FHC por obstrução da Justiça.
A ideia de que na justiça brasileira há dois pesos e duas medidas parece confirmada e é bem possível que em tempos mais próximos surjam mais provas neste sentido. A titulo de exemplo merecerá a pena observar a discrepância entre o ritmo da operação lava-jato centrada em Curitiba e o ritmo da operação lava-jato centrada no Rio de Janeiro (a que investiga os empresários ligados mais ao PMDB, ao ex-governador Sérgio Cabral e ao PSDB).
Apesar de tudo isto, é preciso não perder de vista dois fatos importantes. Por um lado, o sistema judiciário continua a ter um papel central na institucionalidade democrática brasileira, sobretudo enquanto prevalecer o atual sistema político. Por outro lado, como vimos atrás, têm ocorrido fraturas no interior do sistema judiciário e, dependendo das circunstâncias, elas podem ser um contributo importante para re-credibilizar a democracia brasileira. No momento em que o sistema judiciário parece apostado em criminalizar a todo custo uma personalidade com a estatura nacional e internacional do ex-presidente Lula talvez seja bom lembrar os juízes que na época do governo FHC foram objeto de patrulhamento e perseguição quando intervinham com liminares contra a política econômica neoliberal adotada pelo governo. A política econômica que vem aí não será menos dura e vem possuída de um forte impulso revanchista. Também a direita tem o seu Nunca Mais! A maior incógnita é a de saber se as condições, que no passado construíram a credibilidade do STF e deram alguma verosimilhança à ideia de um sistema judicial relativamente independente do poder político do dia, desapareceram para sempre depois deste lamentável conluio político-judicial. A letargia do Conselho Nacional de Justiça, CNJ, e do Conselho Nacional do Ministério Público, CNMP, são verdadeiramente preocupantes.
Lutas institucionais e extrainstitucionais. Em face do que fica dito atrás, o mais provável é que o ato de ruptura institucional provocado de cima para baixo (das elites contra as classes populares) se tenha de vir a confrontar no futuro com atos de ruptura institucional de baixo para cima, isto é, das classes populares contra as elites. Nesse caso, o sistema político funcionará durante algum tempo com uma mistura instável de ações políticas institucionais e extra-institucionais, dividido entre lutas partidárias e decisões do Congresso ou dos tribunais, por um lado, e ação política direta, protestos nas ruas ou ações ilegais contra a propriedade privada ou pública, por outro. Estas últimas vão ser combatidas com elevados níveis de repressão e a eficácia destas é uma questão em aberto.
Com o golpe parlamentar-judicial o regime político brasileiro passou de ser uma democracia de baixa intensidade (eram bem conhecidos os limites do sistema politico e do sistema eleitoral, em particular, para refletir a vontade das maiorias sem manipulação por parte dos média e do financiamento das campanhas eleitorais) para passar a ser uma democracia de baixíssima intensidade (maior distância entre o sistema político e os cidadãos, maior agressividade dos poderes fáticos, menos confiança na intervenção moderadora dos tribunais). Sendo este o regime político, qual será a melhor estratégia por parte das forças democráticas para levar a cabo as lutas políticas que travem a deriva autoritária e reforcem a democracia? Das forças democráticas de direita não é de esperar uma ação vigorosa. As diferentes forças de direita unem-se mais entre si quando estão no governo do que as forças de esquerda. A razão é esta: quando as forças de direita estão no governo têm o comando do governo e o comando reforçado do poder econômico que sempre têm nas sociedades capitalistas; quando as forças de esquerda estão no governo, têm o comando do governo mas não têm o comando do poder econômico. As forças democráticas de direita serão importantes mas tenderão a ser relativamente passivas na defesa da democracia ainda existente. Por esta razão, quer se goste quer não, é nas forças democráticas de esquerda que reside a defesa ativa da democracia e a luta pelo seu reforço.
As forças de esquerda na encruzilhada. As forças de esquerda do Brasil estão num dilema que se pode definir assim: tudo o que têm de fazer a médio e longo prazo para fortalecer a democracia está em contradição com o que têm de fazer a curto prazo para disputar o poder. Como sabemos, este não é um dilema específico da esquerda brasileira mas assume aqui e agora uma acuidade muito especial. Se a política fosse um ramo da lógica, este dilema não teria solução, mas como não é, tudo é possível. Analisarei as possibilidades em próximo artigo.
Boaventura de Sousa Santos é Professor Catedrático Jubilado da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra e Distinguished Legal Scholar da Faculdade de Direito da Universidade de Wisconsin-Madison e Global Legal Scholar da Universidade de Warwick. É igualmente Diretor do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra; Coordenador Científico do Observatório Permanente da Justiça Portuguesa.
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