O Direito Achado na Rua: nossa conquista é do tamanho da nossa luta

domingo, 15 de maio de 2016

Estado Democrático da Direita?



                                  Estado Democrático da Direita?*

                                              José Geraldo de Sousa Junior
                                              Professor da Faculdade de Direito e Ex-Reitor da UnB
                                              Coordena o Projeto “O Direito Achado na Rua”

            Uma observação do sociólogo português Boaventura de Sousa Santos se presta bem para abrir este texto. Na sua posição de enfrentamento ao modelo capitalista de constituição da sociedade, ele afirma que não combate o capitalismo porque ele é democrático.  Para ele o capitalismo até logra cumprir as promessas democráticas que faz. Instituir, por exemplo, um estado de direito, com arcabouço legislativo, incluindo a sua principal expressão, qual seja, a de institucionalizar uma Constituição e nela, estabelecer o sistema de separação de poderes e a proteção aos direitos humanos (conforme a designação contida na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, “não será constituição a que não assegure a separação dos poderes e a proteção aos direitos do homem”).
Para Boaventura, entretanto, o capitalismo não pode ser plenamente democrático, porque a sua promessa carrega um vazio de possibilidade, consequente ao seu princípio ativo, a acumulação egoísta tendente a uma distribuição excludente e a sua representação ideológica, expressa no formalismo jurídico, que tudo promete formalmente, mas que pouco concretiza no plano material.
Para lembrar Ferdinand de Lassale (o antigo correligionário de Marx, depois bandeado para a articulação organizada por Bismark, para constituir o estado burguês alemão) e seu conceito de Constituição, se essa não realiza a expressão material dos “fatores de poder” que são a sua essência material, ela será não mais que uma forma jurídica e, em última análise, uma “mera folha de papel”.
Basta lembrar, no Brasil, o alcance desse sentido retórico da institucionalização pelo jurídico, pondo em relevo o fato de que todas as experiências autoritárias de nossa formação social, tomaram forma jurídica. Todo o regime de 1964, com a ditadura que se instalou no País, se representou com forma jurídica, inclusive constitucional, mantendo a Constituição de 1946, promulgando a sua própria de 1967 e afeiçoando-a ao seu recrudescimento autoritário com a emenda plena de 1969 (que muitos denominam de Constituição), todas circunscritas a um sistema normativo sobredeterminante, denominado Ato Institucional (como expressão “constituinte” do poder “revolucionário”, com todas as aspas possíveis).
Anote-se o quanto, nessa medida, o “sistema” incorporou a expressão  formal do Direito, com a linguagem atualizada das garantias fundamentais, indicando em seu texto a vigência do habeas corpus e da salvaguarda de exame judicial dos atos administrativos, enquanto no cotidiano de governança, se censurava, se torturava e se praticavam assassinatos políticos, sob a reserva de resguardo à “segurança nacional”, a partir de ações interditadas ao alcance de habeas corpus ou à apreciação de sua própria legalidade pelo Poder Judiciário.
É nesse passo que o Estado de Direito Democrático se converte em Estado Democrático de Direita. Esse passo se dá na medida em que a convergência entre os interesses de poder e de acumulação capitalista, já não assimila sequer o discurso democrático, mesmo retórico, como por exemplo, o que se prestou a legitimar a sua emergência hegemônica para se afirmar como expressão dominante (a burguesia patrimonialista francesa afirmando os direitos do homem para arrebatar à aristocracia seus bens dominiais e seu poder político). Ou, no golpe de Luiz Bonaparte (18 Brumário), escancarando situações em que a sua própria legalidade se torna um estorvo: “A legalidade nos sufoca”, proclamava Odilon Barrot, o chefe de governo contra a legalidade “dele”, para por em prática a política reacionária de restrição às liberdades de imprensa e de reunião e de dissolução dos “clubes” e outras formas de organização da oposição política à nova ordem instalada com o golpe.
Ou ainda, o que assistimos agora em nosso próprio País, com a Constituição argüida contra a própria Constituição, para dela extrair-se, com o uso meramente formal de um enunciado, vale dizer, a previsão de aplicação de procedimento de afastamento do Presidente ou da Presidenta da República, uma retórica mobilizadora de engajamentos (sociais, políticos, jurídicos), delirantes de seu necessário fundamento material, a precisa tipificação de conduta que assim possa ser configurada como crime que justifique o afastamento (impeachment). Por isso, a configuração desse processo como um golpe, sem armas, sem quartelada, mas uma ruptura com a base de legitimidade do sistema constitucional-jurídico, um atentado à democracia, uma forma de traduzir, sem nenhuma sutileza, o Estado Democrático da Direita, que se vale da lei para esvaziá-la de suas melhores promessas.
Aqui entra em causa um outro modo, esse mais sutil, de identificar o Estado Democrático da Direita. Refiro-me à sua disponibilidade para usurpar, apropriar-se e investir-se das representações e das narrativas simbólicas das conquistas históricas e jurídicas conferidas nas lutas travadas pelos sujeitos individuais e coletivos por reconhecimento da dignidade humana, da cidadania e dos direitos.
Valho-me de um registro de experiência pessoal para ilustrar esse deslocamento sutil. Em 1987, durante o processo constituinte que desaguou na Constituição de 1988, a chamada “Constituição Cidadã” por contraposição à Constituição do pós-colonialismo de 1824, censitária, patrimonialista, patriarcalista, racista, por isso mesmo apelidada de “Constituição da Mandioca”. Naquela ocasião, representando a Comissão Brasileira de Justiça e Paz (CNBB), pude prestar depoimento na Subcomissão de Cidadania e Direitos, na modelagem participativa que o Regimento da Assembleia havia instalado para dialogar e receber indicações para o processo. Falei sobre os novos direitos, sobre as experiências instituintes de participação já catalogáveis nos processos sociais emancipatórios de poder local (experiências de gestão compartilhada e participativa de várias prefeituras brasileiras), podendo constatar o espanto e a surpresa da maioria dos parlamentares integrantes da Comissão, muitos se deparando com aqueles conceitos e registros, pela primeira vez, aturdidos com a contraposição, entre os enunciados do modelo de representação com os quais estavam acostumados e com o sentido diferido de um sistema retórico de nominação de direitos, formalmente inscritos nas constituições, todavia, nunca realizados porque diferidos à concretização futura, “na forma da lei” ou “como a lei venha  a estabelecer”, não mais que promessa porém, promessa vazia. Todavia, ao final do processo, já se encontravam esses constituintes investidos da nova linguagem democrática, de cidadania e de direitos, de tal modo que a Constituição afinal promulgada o foi sob a caracterização inédita de inaugurar no constitucionalismo latino-americano o modelo de democracia direta e participativa, com instrumentos para a iniciativa, a gestão e o controle social por meio dos novos sujeitos constitucionais.
É certo que o embate constituinte, instaurado numa conjuntura de transição política entre a ditadura instalada em 1964 e o movimento para resgatar a gestão civil orientada para um processo de restabelecimento da democracia, se expressou como uma mediação possível, precedida da luta pela anistia e preparatória da reivindicação da memória e da verdade, enquanto medidas éticas para realizar o que se denomina Justiça de Transição (que admite, sim, reconciliação, mas implica necessariamente processar os perpetradores dos crimes, revelar a verdade sobre esses crimes, conceder reparações às vítimas e reformar, redemocratizando, as instituições responsáveis pelos abusos).
Nessas condições, acabou por incorporar no projeto de sociedade que se reconstituía, o horizonte democrático materialmente desenhado pelos movimentos sociais, com um balizamento ideológico orientado pelas classes subalternas – trabalhadores do campo e das cidades – reivindicado protagonismo ativo para o exercício do poder político e também distributivo, um projeto, em suma, contra os interesses da direita brasileira elitista, oligárquica e hierárquica, privatisticamente possessiva.
Enquadrada sob a direção de um programa de governo de base popular, democrática e inclusiva (Lula/Dilma, sustentada pelos dois principais partidos de esquerda), a direita brasileira foi aos poucos engendrando uma estratégia de desconstitucionalização, valendo-se do disfarce do discurso democrático-liberal e de reconfiguração do desenho do direito formal, legal-positivo, política e epistemologicamente caro ao seu posicionamento docemente assimilável pela racionalidade jurídico-burocrática do status quo inscrito na classe que ainda detêm os meios de produção e opera sua regulação.
Essa disputa, travada em cada frente de antagonismo que os dois projetos de sociedade e de país provocam, revela, a cada embate, o modelo de Estado Democrático da Direita. Antes de tudo, livrar-se da legalidade que a sufoca, com táticas que vão desde a elaboração de um discurso hermenêutico de retirada de direitos (a Constituição incorporou direitos demais, como se os direitos fossem quantidades e não relações, contínuas e ilimitadas), até a institucionalização do Golpe, com aparência de institucionalidade (legislativo), como procedimentalidade formal (judiciário) e com suporte ideológico (mídia oligárquica).
Tudo já configurável quase que num “manual de uso”, com metodologia e passo a passo totalmente previsíveis. Primeiro passo, investir-se da linguagem democrática e dos direitos, para confundir a interlocução. Para lembrar a advertência crítica de Merleau-Ponty, valer-se de expressões iguais (liberdade, justiça, direito), para ocultar a realidade a que elas remetem e os projetos que mobilizam os diferentes engajamentos. Depois, operar os sucessivos esvaziamentos: esvaziamento do conteúdo ideológico dos projetos em disputa (poder político e distribuição da riqueza socialmente produzida) e em seguida, esvaziamento do alcance democrático dos projetos em disputa: despolitização e burocratização da participação.
O convite para redigir este artigo partia de uma afirmação. Preferi figurá-lo com uma interrogação. Um Estado Democrático da Direita é, como situei aqui, parafraseando Boaventura de Sousa Santos em relação ao capitalismo, a “utopia” (o fim da História) da direita, uma contradição em termos. Para a direita, a cidadania é consumo, a participação é tutelada e a democracia deve voltar ao leito moderno da representação e da circulação das elites.

* Publicado na Revista Esquerda Petista n. 5, maio de 2016 (Editora Página 13, São Paulo (Publicação da Articulação de Esquerda – Tendência do PT; editor Walter Pomar), págs. 56-58)


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