O Direito Achado na Rua: nossa conquista é do tamanho da nossa luta

quarta-feira, 13 de abril de 2016

"Os fins justificam os meios no Estado Democrático de Direito?" [1]

Por Sara Côrtes, professora da Faculdade de Direito da UFBA
O filósofo alemão Friedrich Hegel nos ensina que o Direito é algo que se sabe (e nós tratamos aqui deste saber jurídico), mas também é algo que se quer (e por isso há sempre escolhas no emaranhado de saberes).
Assim, Hegel afirma que o Direito é acima de tudo aquilo que se reconhece, retirando o Direito do campo do saber, exclusivamente, e do campo da autonomia da vontade, colocando-o num campo do reconhecimento.
A pergunta que orienta esse debate pode ser: o que nós, diante dos nossos diferentes saberes (técnicos e humanísticos), que, necessariamente envolvem uma opção por valores, e diante dos nossos quereres que necessariamente envolvem uma opção sobre interesses vamos reconhecer, socialmente, como Direito neste momento da vida política nacional?
A socióloga Vera Malaguti Batista, em um livro denominado O Medo na Cidade do Rio de Janeiro – em que debate a histórica Revolta dos Malês, que tanto marcou a formação de um espírito na cidade de Salvador – nos ajuda ao dizer que “as formas de saber são sempre e, inevitavelmente, locais, inseparáveis de sua vida concreta, de sua história”. Alma, olho e mão. O que sentimos, o que vemos e o que fazemos, é o que nos faz quem somos. É na ação que sabemos quem efetivamente somos.
Diante do que sinto, vejo e da minha ação até aqui, tomo como pressuposto que não se dará um único passo no conhecimento da vida política e jurídica do nosso tempo sem nos interrogarmos sobre o autoritarismo ainda presente na sociedade brasileira e os métodos autoritários dos regimes ditatoriais que vivemos até aqui no Brasil.
As prerrogativas constitucionais – os meios dados a essas carreiras do modo como estão sendo usados têm como fim um regime de terror que se tornará insuportável para a própria burocracia, cujos efeitos serão sofridos por todos se o princípio da organização política e social não for modificado, se a noção de Direito não for elevada. Quando se amedrontam corpos, se enervam espíritos. É preciso dizer as palavras e colocá-las ao vento: são tempos autoritários, opressivos, arbitrários, seletivos, despóticos.
Vemos vociferações contra o Estado como tal na sua dimensão de Direito social, constitucionalmente garantido – corte de gastos, menos impostos, privatização, contingenciamento... Numa palavra: neoliberalismo.
Fomos acostumados nos últimos tempos com uma política de destruição de direitos civis pela privatização de serviços públicos, com uma economia de monopólio e desemprego estrutural em que se desmantelavam direitos trabalhistas sob o signo da “flexibilização”, e mais uma vez os professores de Direito falam em acabar, reduzir a Justiça do Trabalho.
Vociferam por um Estado policialesco que se reduza à repressão dos movimentos sociais. Vemos vociferações contra a política como tal na sua dimensão de direitos políticos democráticos – inclusive a organização partidária, contra todos os poderes pequenos ou grandes organizados em partido.
Ao mesmo tempo, vemos uma sanha para aumentar o gasto público das carreiras da segurança pública, aumento do encarceramento em geral e do encarceramento preventivo, cautelar, sem julgamento.
Se estamos excitados com tantas prisões e conduções coercitivas, e delações, e grampos, numa ordem quase frenética, onde o clamor popular ora é fundamento de condução coercitiva para evitar clamor público, ora é incitado por nota do juiz via Rede Globo, eu pergunto: onde mora o seu Leviatã?
O que fizemos com o liberalismo de Locke e a democracia de Rousseau? Somente Hobbes fincará a nossa história de tempos em tempos, nesta infantilização da sociedade pela ideia de um Direito do Estado e de um Estado que age, supostamente, nos limites do Direito?
Parte dessas instituições ao mesmo tempo que vocifera contra a política, transforma-se em partidos políticos, com pautas legislativas próprias, articulações com a mídia, com as ruas, com ideólogos ativos, publicitários que criam nomes das fases das operações, a de hoje chama-se “Acarajé”.
E por que é arriscado? Porque superam o sistema representativo, porque aniquilam a soberania popular, porque não são eleitos e não estão submetidos ao crivo da crítica e da avaliação pública como os membros dos partidos, do Executivo e do Legislativo. Porque não construíram modos de participação e controle social destes seus poderes.
Mas, principalmente, neste momento, porque incitam as ruas, como uma “onda”, como multidão, mas não possuem métodos e meios de organização legítima para fazer desaguar as contestações, passando pelo crivo do debate público em propostas concretas, onde valham o melhor argumento. É um incitar a multidão sem dia seguinte, sem esperança.
Forma-se um partido com um juiz como liderança política, com ministro do Supremo definindo governabilidade e quem será o ministério da Presidenta – com forte apelo personalíssimo – sem regras de organização partidárias, cotas para mulheres, congressos, eleições, votações, sem formação de opinião e responsabilidade de escolha pelo voto desta ou daquela proposta. Há um ódio à democracia – não como os generais, pior, pois é o sentimento maquiado sob os traços de direito.
Nada mais importante neste momento do que processar a ingenuidade, revelar o que se esconde sob aparências. Há uma justiça para as ideias como para os indivíduos e ela ignora a generosidade dos sentimentos.
O Estado autoritário não é apenas um Estado em que a arbitrariedade flagela, e nós já vemos isso na atuação deste Estado com os movimentos sociais com um aumento da força militar, usada na transposição do São Francisco, contra os índios e comunidades tradicionais no campo, contra os jovens negros nas favelas e bairros periféricos, nas manifestações da Copa, legalizadas por Decreto de Lei e de ordem e lei antiterrorismo.
O Estado autoritário é um Estado que em seu princípio denega o direito, denega o livre exercício do pensamento, da expressão numa cor, numa estética, (o vermelho), da expressão num autor (Marx) e sua tradição de pensamento revolucionário onde insere o direito na luta de classes.
Quem vai ser o baluarte entre a sociedade pervertida e a boa sociedade? O Poder Judiciário? O nosso empreendimento se apresenta sob o signo da criação do novo, sem explorar mitos, petrificar relações sociais, desarmar os conflitos de uma sociedade patriarcal, ou expulsar tudo que dê sinal de autonomia e criatividade.
Tenho apenas por hipótese, seguindo Jessé Souza na obra A Tolice da Inteligência Brasileira ou como um país se deixa manipular pelas Elites, que nos mantivemos enclausurados, dogmáticos, por não conseguirmos romper com duas anistias – a de senhores de escravos e a dos militares – para seguir garantindo uma sociedade dos 1% de ricos e um Estado gerido para 20%.
Bloquearam-se os efeitos jurídicos dos atos de fim da escravidão e reconhecimento dos negros escravizados como sujeitos de direito. Bloquearam-se os efeitos jurídicos do fim da ditadura – com novo desenho institucional para relação Estado – Sociedade Civil – sem desmilitarização das polícias, sem auditoria da dívida pública contraída na ditadura.
Ao não desbloquear de uma vez por todas os efeitos jurídicos que passam pela distribuição mais justa da terra, produção de riqueza pelo trabalho e do conhecimento e cultura, e apostar numa ampliação do estado policial e direito penal do inimigo, sujeitaremos indivíduos e grupos a não conseguirem nada melhor do que apodrecer os laços de sociabilidade e construir uma imensa rede de coerção.
A democracia carrega dentro dela a potência adversa do Estado autoritário que já opera nas periferias como estado policial. Operou, por exemplo, em junho de 2013 com as prisões políticas, a prisão ilegal de Rafael Braga por ser morador de rua e portar Pinho Sol.
Nos nossos dias os protestos provenientes da rua podem vir a dar sentido à invenção democrática e no mesmo passo podem desaguar em fragilidades, fracassos e contradições de um tipo de Estado que num prazo curto justifique o sufocamento das liberdades.
Enquanto isso é importante saber, conhecer e reconhecer um direito que ajude este país, estes jovens, a livrar-se da imagem de um Leviatã que bloqueará o nosso horizonte para sempre, ou por um longo tempo, livrar-se da imagem de um juiz egocracta que quer superar uma revolução democrática que correu por séculos e faz uma divisão social, na ideia dos direitos, diferenciando pela primeira vez entre Poder, lei e saber, que ficam expostos aos conflitos de classe de grupos e de indivíduos.
Como nos ensina Claude Lefort: A democracia é invenção, pois longe de ser a mera conservação de direitos, ou garantia de lei e ordem, é a criação ininterrupta de novos direitos, a reinstituição permanente do social e do político.
Como criação de direitos como reconhecimento das divisões internas e das diferenças constitutivas do social e do político, a democracia abre para história a alteridade em toda a espessura do social, o reconhecimento do outro, da diferença e assim impedido de se petrificar."
[1] O texto também pode ser conferido na publicação de "Cara Capital", no campo "Democracia", sob o título "Os fins justificam os meios no Estado Democrático de Direito?". A postagem original do texto foi realizada por Maira Kubík Mano, aos 31/003/2016, no site da revista.
Disponível em: <http://www.cartacapital.com.br/sociedade/no-estado-democratico-de-direito-os-fins-justificam-os-meios>. Acesso: 13 abr. 2016.

Nenhum comentário:

Postar um comentário