Sabrina Durigon Marques
Diógenes Rebouças[1] é o nome do renomado arquiteto baiano que concebeu o harmonioso prédio da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal da Bahia - FAU-UFBA, o qual sediou o evento “PDDU: para que e para quem?” em julho deste ano.
Tão
rico quanto sua obra foi o debate promovido pelo IAB-BA, com o apoio de
diversas instituições, do qual tive a honra de participar representando o
Direito Achado na Rua, por indicação do professor José Geraldo de Souza Junior.
A
cidade de Salvador está debatendo seu novo PDDU - Plano Diretor de
Desenvolvimento Urbano. Ou melhor, deveria estar. A nova legislação que vai
regular o planejamento e o desenvolvimento urbano de Salvador pelos próximos
anos está sendo elaborada pelo executivo municipal e, após apenas quatro meses
de debates, estima-se que o projeto seja enviado à Câmara Municipal esse mês,
em setembro.
O
Estatuto da Cidade, lei nº 10.257 de 2001, principal lei que estabelece as
orientações da política urbana no Brasil, traz a gestão democrática das cidades
como uma diretriz da política urbana, que deve ser seguida pelo poder executivo
em sua elaboração:
Art. 2o A política urbana tem por objetivo
ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade
urbana, mediante as seguintes diretrizes gerais:
(...)
II –
gestão democrática por meio da participação da população e de associações
representativas dos vários segmentos da comunidade na formulação, execução e
acompanhamento de planos, programas e projetos de desenvolvimento urbano;
(...)
Mas o Estatuto não se limita a essa
normativa genérica, ele dedica o Capítulo IV para listar os possíveis instrumentos
utilizados para garantia da participação, como debates, audiências e consultas
públicas, instrumentos adequados para o debate que Salvador vem fazendo.
CAPÍTULO IV
DA GESTÃO DEMOCRÁTICA DA CIDADE
Art. 43. Para
garantir a gestão democrática da cidade, deverão ser utilizados, entre outros,
os seguintes instrumentos:
Da mesma forma, o Capítulo III é
dedicado ao Plano Diretor, sendo que o § 4º do artigo 40 estabelece os
requisitos mínimos para seu processo de elaboração.
Art. 40. O
plano diretor, aprovado por lei municipal, é o instrumento básico da política
de desenvolvimento e expansão urbana.
§ 1o O plano diretor é parte integrante do
processo de planejamento municipal, devendo o plano plurianual, as diretrizes
orçamentárias e o orçamento anual incorporar as diretrizes e as prioridades
nele contidas.
§ 4o No processo de elaboração do plano
diretor e na fiscalização de sua implementação, os Poderes Legislativo e
Executivo municipais garantirão:
I – a
promoção de audiências públicas e debates com a participação da população e de
associações representativas dos vários segmentos da comunidade;
Além
disso, a Resolução nº 25 de 2005 do Conselho das Cidades é específica em dizer
como devem ser realizadas as reuniões e audiências públicas para elaboração do
Plano Diretor:
Art. 4º No processo participativo de elaboração do plano
diretor, a publicidade, determinada pelo inciso II, do § 4º do art. 40 do
Estatuto da Cidade, deverá conter os seguintes requisitos:
I – ampla comunicação pública, em linguagem acessível,
através dos meios de comunicação social de massa disponíveis;
II- ciência do cronograma e dos locais das reuniões, da
apresentação dos estudos e propostas sobre o plano diretor com antecedência de
no mínimo 15 dias;
III- publicação e divulgação dos resultados dos debates e
das propostas adotadas nas diversas etapas do processo;
Art.5º A organização do processo participativo deverá
garantir a diversidade, nos seguintes termos:
I – realização dos debates por segmentos sociais, por
temas e por divisões territoriais, tais como bairros, distritos, setores entre
outros;
II -garantia da alternância dos locais de discussão.
(...)
Art.6º O processo participativo de
elaboração do plano diretor deve ser articulado e integrado ao processo
participativo de elaboração do orçamento, bem como levar em conta as
proposições oriundas de processos democráticos tais como conferências,
congressos da cidade, fóruns e conselhos.
Art.7º No processo participativo de
elaboração do plano diretor a promoção das ações de sensibilização, mobilização
e capacitação, devem ser voltadas, preferencialmente, para as lideranças
comunitárias, movimentos sociais, profissionais especializados, entre outros
atores sociais.
Art. 8º As audiências públicas
determinadas pelo art. 40, § 4º, inciso I, do Estatuto da Cidade, no processo
de elaboração de plano diretor, têm por finalidade informar, colher subsídios,
debater, rever e analisar o conteúdo do Plano Diretor Participativo, e deve
atender aos seguintes requisitos:
I – ser convocada por edital, anunciada
pela imprensa local ou, na sua falta, utilizar os meios de comunicação de massa
ao alcance da população local;
II – ocorrer em locais e horários
acessíveis à maioria da população;
III – serem dirigidas pelo Poder Público
Municipal, que após a exposição de todo o conteúdo, abrirá as discussões aos
presentes;
IV – garantir a presença de todos os
cidadãos e cidadãs, independente de comprovação de residência ou qualquer outra
condição, que assinarão lista de presença;
V – serem gravadas e, ao final de cada
uma, lavrada a respectiva ata, cujos conteúdos deverão ser apensados ao Projeto
de Lei, compondo memorial do processo, inclusive na sua tramitação legislativa.
E
são justamente essas previsões legais acima que a população de Salvador alega
que estão sendo violadas. De acordo com os debates ocorridos, o processo de elaboração
do PDDU no Executivo Municipal teria durado apenas quatro meses, e as
audiências públicas que deveriam ter ocorrido nesse período teriam sido
esvaziadas e descaracterizadas, sem permitir a real participação da população.
De
acordo com os relatos, as principais queixas dos cidadãos seriam a falta de
publicidade com relação aos estudos realizados; a falta de divulgação com
antecedência das audiências públicas e de seu cronograma; a organização dos
debates num formato e com uma disposição de tempo que inviabiliza ou prejudica
sobremaneira a participação da sociedade civil; a não publicação dos resultados
dos debates e das atas das reuniões.
O colóquio
teve como resultado a elaboração de uma carta aberta, que foi entregue à Prefeitura,
com as seguintes reivindicações:
a) que não seja enviado o PDDU à Câmara
Municipal sem o efetivo debate;
b) que se completem os estudos
necessários, submetendo-os a um processo verdadeiramente participativo de
análise e discussão pública;
c) que apresentem à discussão pública as alternativas
de Estrutura Territorial a ser proposta no PDDU;
d) que se institua um novo período de
discussão, no qual o Executivo se digne a examinar as críticas já formuladas,
de modo a evitar a adoção intempestiva de processos que comprometam,
irreversivelmente, o futuro de Salvador;
e) que se incorpore ao processo de
elaboração e discussão do PDDU as contribuições críticas sintetizadas nessa
carta;
f) que a minuta do Projeto de Lei seja
apresentado e discutido publicamente, antes do seu envio à Câmara de
Vereadores.
É insuficiente cumprir apenas formalmente, e não materialmente o que diz a lei, especialmente quando se fala em participação popular no direito à cidade num país em que muitos interesses, especialmente os do capital imobiliário, estão representados na estrutura do Estado, imbricados em nosso Parlamento, o que pode facilitar a criação de condições favoráveis para que projetos de lei e políticas públicas que favoreçam seus interesses sejam aprovadas, em detrimento do direito à cidade.
E
sabemos que a resistência do poder público em garantir a gestão democrática
deve-se ao seu custo: a participação desloca a pauta de prioridades, atrapalha
a famigerada celeridade requerida pela Administração e pode ter como resultado
proposta diferente daquela almejada por alguns gestores.
Para
que a participação popular seja efetiva, mais do que garantir os espaços
formais de participação, é fundamental que o estado garanta condições
isonômicas de participação, o que significa fazer com que a população compreenda
os termos técnicos abordados, garantir que as audiências ocorram em dias e
horários variados, permitindo que os trabalhadores conciliem a participação com
o trabalho e considerar as sugestões e críticas apontadas.
Não
é justo que a população debata em desigualdade de condições com técnicos
exclusivamente destacados e remunerados para esse fim, isso fere a isonomia que
deve ser garantida pela lei. É dever do estado criar condições para que a lei
seja efetivada para garantia do Direito à Cidade, e para isso é necessário que
esse debate extrapole os limites do direito formal. Como ressaltou o professor da
faculdade de Direito da UFBA Samuel Vida na abertura do evento: “O direito
precisa ser devolvido à sociedade, o direito é, antes de tudo, organização da
própria sociedade, ordenamento que deve emergir da sociedade, refletindo as
contradições que ela tem, e não fantasiando uma neutralidade e um sujeito
homogêneo, que do ponto de vista da vida real, concreta, não existe, ou existe
apenas como cidadão de papel. Cidadão concreto tem cor, tem sexualidade, tem
classe, mora na periferia, ou no centro, vive tragédias e demandas cotidianas
que não estão escritas nesse tipo ideal do cidadão de papel.”
Com
a efetiva e direta participação da população nos espaços institucionais, por
meio dos instrumentos indicados, é que se poderá dizer que ela atua como
sujeito que constrói a sua história. É necessário, então, que o direito e
achado na rua e forjado pela sociedade seja um passo no caminho da efetivação
da justiça.
Sabrina Durigon Marques é advogada urbanista, mestre em Direito Urbanístico pela PUC-SP. Autora do livro Direito à Moradia, da coleção Para Entender Direito e integrante do coletivo Diálogos Lyrianos da UNB. Professora em cursos de graduação e de pós graduação. Trabalhou com assessoria sociojuridica a movimentos sociais no Escritório Modelo da PUC/SP.
Sabrina Durigon Marques é advogada urbanista, mestre em Direito Urbanístico pela PUC-SP. Autora do livro Direito à Moradia, da coleção Para Entender Direito e integrante do coletivo Diálogos Lyrianos da UNB. Professora em cursos de graduação e de pós graduação. Trabalhou com assessoria sociojuridica a movimentos sociais no Escritório Modelo da PUC/SP.
Sites
relacionados:
[1] http://iab-sc.org.br/2015/08/diogenes-reboucas-cidade-arquitetura-e-patrimonio/,
acesso em 06 de setembro de 2015
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