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quinta-feira, 8 de janeiro de 2015
Política e terror na França contemporânea
Cristiano Paixão & José Otávio Guimarães
O atentado (7/1/2015) em Paris contra o Charlie Hebdo apresenta-se como evento único. Não apenas por sua violência perturbadora, mas sobretudo pelos efeitos que pode produzir.
Algumas reações, logo após o ataque, merecem destaque. Revelam modos de uma sociedade estar no tempo: relações entre tradição e contemporaneidade, entre passado, presente e futuro.
Como era de se esperar, quase toda a classe política francesa, apoiando-se nos valores democráticos da tradição republicana, condenou o morticínio. Uma observação mais atenta desses pronunciamentos revela, contudo, que escondem claros cálculos políticos. Integrantes da oposição, tanto de centro-direita como da direita radical (representada pela Frente Nacional), falam em “guerra total contra o terror”, postulam “medidas de exceção”, pedem que se recrudesça um direito penal leniente ou dizem que o atentado poderá “liberar o discurso” em relação ao “fundamentalismo islâmico”. Elegendo um inimigo ao mesmo tempo visível e indeterminado, esses atores políticos recorrem à batida estratégia de ativação do medo. Nada de novo nessa atitude. Já no século XVII, sob o argumento da generalização do horror causado pelas guerras civis de religião, construiu-se o argumento da necessidade de um Estado absoluto.
Ao mesmo tempo, algo diferente parece ter ocorrido. Em várias cidades francesas, houve manifestações espontâneas de solidariedade e defesa da democracia. Os principais jornais estimam em 100.000 o número de pessoas nas ruas e praças do país. Em Paris, na Praça da República, reuniram-se cerca de 20.000. A dinâmica dessas manifestações revelou-se bem diferente do tradicional modelo de protesto. Não havia lideranças em destaque. Ainda que houvesse muitos estudantes, o público era diversificado, distribuído em várias faixas etárias. Ouviam-se diferentes idiomas, mas nada de microfone, palanque ou carro de som. Os manifestantes se apropriaram da estátua que simboliza a República Francesa, no centro da praça, e nela projetaram mensagens de apoio e homenagem ao Charlie Hebdo, cantando palavras de ordem improvisadas, compartilhadas pelo restante do público. Canetas eram erguidas, velas acesas e pequenos cartazes exibidos: a luz contra a obscuridade. Num desses cartazes, reivindicava-se a nomeação de Cabu, um dos cartunistas mortos, para o Panteão. Nenhum símbolo de partido político foi notado. Fotos eram tiradas e logo compartilhadas nas redes sociais.
Verificam-se, nas reações ao atentado, diferentes atitudes. De um lado, demandas de mais repressão, de medidas punitivas e uma declaração de guerra. De outro, setores da sociedade civil se organizam e ocupam a Praça da República para defender o ideário do que representa aquele território simbólico. Essa dicotomia fica explicitada quando Marine Le Pen, da Frente Nacional, justifica a necessidade de um “debate” sobre o “fundamentalismo islâmico” por força do “medo” que ele instalaria na sociedade francesa. Em perspectiva contrária, uma das palavras de ordem repetida nas manifestações era: “não temos medo”!
A dicotomia, entretanto, parece por vezes se dissolver na convivência plástica de elementos diferentes, uma das características do tempo opaco e incerto da nossa contemporaneidade. Por exemplo, os mesmos conglomerados de mídia que dão voz aos pedidos de “medidas de exceção” exaltam, por meio de fotos e textos, a reação das ruas e praças.
Os fundamentalismos em ascensão das últimas décadas expressam uma mistura de arcaico e moderno. Eles alimentam e justificam sua reinvindicação identitária com a recusa da homogeneização globalizante do Ocidente, que seria responsável por boa parte das mazelas do presente. Entretanto, nesse movimento, não reabrem o futuro fechado pela crise do progresso, voltam-se para tradições inventadas.
Já começam a surgir paralelos entre o atentado ao Charlie Hebdo e aquele do 11 de setembro. Manchetes afirmam que a França nunca mais será a mesma. Também em relação a isso não há consenso: como podemos perceber neste século, nossas democracias podem “normalizar” o terrorismo, adotando seus métodos e criando uma estrutura operacional e institucional para justificar uma guerra contra o terror.
Entre política tradicional e manifestações espontâneas, entre a defesa de valores e a afirmação da liberdade, símbolos entram em disputa. O futuro ainda não se mostra nessas lutas. Se ele não aparece agora, quando virá? E como?
Cristiano Paixão
Professor da Faculdade de Direito da UnB. Está em estágio pós-doutoral na École des Hautes Études en Sciences Sociales (Paris)
José Otávio Guimarães
Professor do Departamento de História da UnB. Doutor em História pela École des Hautes Études en Sciences Sociales (Paris)
Os autores são líderes do grupo de pesquisa “Direito e História: políticas de memória e justiça de transição” (UnB-CNPq)
Este texto foi originalmente publicado no Blog Carta Maior
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