O Direito Achado na Rua: nossa conquista é do tamanho da nossa luta
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quarta-feira, 31 de dezembro de 2014
APOIO AO PAPA FRANCISCO CONTRA SEUS DETRATORES (OU UM EVANGELHO A PARTIR DO SUL)
Apoio ao papa Francisco contra seus detratores
LEONARDO BOFF 31 de Dezembro de 2014 às 06:14
Esperava uma maior inteligência de fé e mais abertura de Vittorio Messori, não obstante seus méritos de católico, fiel a um modelo clássico de Igreja
(originalmente publicado na Carta Maior)
Está se articulando em várias partes do mundo, mas principalmente na Itália entre cardeais e pessoas da Cúria mas tambem entre grupos leigos conservadores uma dura resistência e demolição da figura do Papa Francisco. Escondendo-se atrás de um escritor leigo famoso, convertido, Vittorio Messori, mostram seu mal-estar.
Assim que com tristeza li um artigo de Vittorio Messori, no Corriere della Sera de Milão com o titulo:”As opções de Francisco: dúvidas sobre a virada do Papa Francisco”(24/12-2014). Esperou a véspera do Natal para atingir mais profundamente o Papa. O que lhe critica é especilmente a sua “imprevisibilidade que continua perturbando a tranquilidade do católico médio”. Ele admira a perspectiva linear “do amado Joseph Ratzinger”. E sob palavras piedosas instila insidiosamente muito veneno. E o faz, como confessa, em nome de muitos que não têm coragem de expor-se.
Quero propor um contraponto às dúvidas de Messori. Este não percebe os novos sinais dos tempos trazidos por Francisco de Roma. Ademais demonstra três insuficiências: duas de natureza teológica e uma de interpretação da relevância da Igreja do Terceiro Mundo.
Ele se escandalizou com a “imprevisibilidade” deste Pastor “que continua perturbando a tranquilidade do católico médio”. Há de se perguntar pela qualidade da fé deste “católico médio” que sente dificuldade de entender um pastor que tem “odor de ovelhas” e anuncia “a alegria do evengelho”. São geralmente católicos culturais, habituados à figura faraônica de um Papa com todos os símbolos do poder dos imperadores romanos pagãos. Agora comparece um Papa “franciscano”que confere centralidade aos pobres, não “veste Prada”, critica corajosamente o sistema econômico que produz tantos pobres no mudo, que abre a Igreja a todos os seres humanos sem julgá-los, mas acolhendo-os no espírito que ele chamou de “revolução da ternura”, falando aos bispos latinoamericanos.
Há um notável vazio no pensamento de Messori. Estas são as duas insuficiências teológicas: a quase ausência do Espírito Santo e o cristomonismo. Quer dizer: só Cristo conta. Não há proriamente um lugar para o Espírito Santo. Tudo na Igreja se resolve unicamente com Cristo, coisa que não corresponde ao que ensinou Jesus. Por que digo isso? Porque o que ele deplora na ação pastoral do Papa é a “imprevisibilidade”. Ora, esta é a caracterítisca do Espírito no dizer de São João:”Ele sopra onde quer e lhe ouves voz mas não sabes de onde vem nem para onde vai”(3,8). Sua natureza é a irrupção imprevista.
Messori é refém de uma visão linear, própria de seu “amado Joseph Ratzinger” e de outros Papas anteriores. Ora, importa reconhecer que foi exatamente esta visão linear que transformou a Igreja numa fortaleza, incapaz de comprender a complexidade do mundo moderno, isolada no meio das demais Igrejas e caminhos espirituais, sem dialogar e aprender dos outros, também iluminados pelo Espírito Santo. Seria blasfemar contra o Espírito imaginar que os outros somente pensaram erros. Por isso é sumamente importante uma Igreja aberta, como o quer o Papa Francisco, para perceber as irrupções imprevistas do Espíprito na história. Não sem razão alguns teólogos o chamam a “fantasia de Deus”, em razão de sua criatividade e novidade para a história e a Igreja.
Sem o Espírito Santo a Igreja se tornaria uma instituição pesada, e sem criatividade. No fundo, teria pouco a dizer ao mundo a não ser doutrinas sobre doutrinas, sem levar a um encontro vivo com Cristo e sem suscitar esperança e alegria de viver.
Significa um dom do Espírito o fato de que este Papa tenha vindo fora da velha e cansada cristandade européia. Não se apresenta como refinado teólogo, mas como um zeloso Pastor que realiza o mandato de Jesus a Pedro:”confirma os irmãos e as irmãs na fé”(Lc 22,31). Carrega consigo a esperiência das Igrejas do Terceiro mundo, particularmente, da América Latina.
Esta é outra insuficiência de Messori: o de não ter dimensionado o fato de que hoje por hoje, o Cristianismo é uma religião do Terceiro Mundo, como tantas vezes o tem enfatizado o teólogo alemão J. B. Metz. Na Europa os católicos não chegam a 25%, enquant que no Terceiro Mundo alcançam quase 73% e na América Latina cerca de 49%.
Por que não acolher a novidade que se deriva destas Igrejas já que não são mais Igrejas-espelho das velhas Igrejas européias, mas Igrejas-fonte com seus mártires, confessores e teólogos?
Podemos imaginar que num futuro não muito distante a sede do primado não continue mais em Roma com a Cúria, com todas as contradições recentemente denunciadas com coragem pelo Papa Francisco com palavras somente ouvidas da boca de Lutero e no meu livro Igreja: carisma e poder (1984), que lido na ótica de hoje é antes um livro inocente que crítico. Faria sentido que a sede primacial estivesse lá onde se encontra a maioria dos católicos que está na América Latina, Africa e Ásia. Seguramente seria um sinal inequívoco da verdadeira catolicidade da Igreja dentro da nova fase globalizada da humanidade.
Esperava, sinceramente, uma maior inteligência de fé e mais abertura de Vittorio Messori, não obstante seus méritos de católico, fiel a um modelo clássico de Igreja e de notório escritor. Este Papa trouxe esperança e ar fresco para tantos católicos e a outros cristãos que se orgulham dele.
Não percamos esse dom do Espírito por causa de análises antes negativas que positivas e que não reforçam a “alegria do evangelho” para todos.
(*) Leonardo Boff escreveu Francisco de Assis e Francisco de Roma, Mar de Idéias, Rio, 2014.
quarta-feira, 24 de dezembro de 2014
Boaventura: “A democracia à beira do caos”
Boaventura: “A democracia à beira do caos”
– 23 de dezembro de 2014
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Ao lançar dois livros na Espanha, sociólogo saúda movimento-partido Podemos e afirma: só refundação da esquerda poderá afastar riscos latentes de fascismo
Por Steven Navarrete Cardona, no El Espectador, de Bogotá | Tradução André Langer, no IHU Online
Há alguns dias, Boaventura de Sousa Santos, pesquisador e diretor do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra (Portugal) visitou a Espanha para o lançamento de dois livros chaves para entender a complexidade da realidade social contemporânea no mundo e no continente europeu: “A democracia à beira do caos” (Siglo del Hombre) e “Democracia, direitos humanos e desenvolvimento” (Dejusticia). Nenhum dos dois está em português. El Espectador falou com ele sobre seus trabalhos, a crise europeia e os problemas enfrentados pela América Latina. Eis a entrevista
Fale-nos sobre o seu livro “A democracia à beira do caos”…
É uma tentativa de teorizar a crise da democracia no continente que se auto-denomina como o continente que inventou o ideal da democracia e o concretizou historicamente com mais consistência. A crise resulta em boa medida da contaminação da política democrática pelo neoliberalismo econômico que se traduz na crítica do Estado Social, na perda de direitos sociais e na privatização das políticas de saúde, educação e segurança social. Preocupa-me sobremaneira esta perda dos direitos fundamentais.
Desde as origens da democracia na época moderna houve uma tensão entre os valores democráticos e a lógica de acumulação do capitalismo. Depois da Segunda Guerra Europeia, o determinante foi a disputa entre capitalismo e comunismo. Graças ao temor do avanço do comunismo nos países capitalistas, o poder capitalista fez concessões aos trabalhadores (os direitos trabalhistas e, em geral, os direitos econômicos e sociais) e permitiu a tributação progressiva (taxas de tributação mais altas para os mais ricos).
E o que mudou este cenário?
Com o desaparecimento do grande inimigo comunista no final da década de 1980 desapareceram também as concessões deste capitalismo com rosto humano. E o campo político e a socialização, assim como a participação no mesmo foi muito complexa, sobretudo para os cidadãos, porque neste cenário de desconcerto perderam seu espaço de participação política e de deliberação democrática.
A Europa está saindo da crise com os ajustes estruturais?
Neste momento não vemos uma saída muito clara, além de que temos outras tensões internas. Continuamos dominados por governos conservadores. A União Europeia e a Comissão Europeia seguem dominadas por uma lógica neoliberal. O domínio alemão na política econômica segue sendo hegemônico e de corte neoliberal, por isso segue a austeridade.
Os partidos socialistas que poderiam ser uma alternativa não o são, como o evidencia a renúncia de três ministros na França, motivadas pelas decisões de François Hollande, que quer continuar com os cortes financeiros e a política de austeridade. Há ainda movimentos à esquerda dos partidos socialistas que estão apontando algumas soluções: Syriza na Grécia, Podemos na Espanha, Bloco de Esquerda em Portugal. Mas nenhum deles (exceto o Syriza) pode ter aspirações a ser governo.
Mas não há uma alternativa e esperança política diante deste panorama sombrio?
Uma alternativa surgiu na mobilização política que começou com os Indignados na Espanha. O problema que alguns movimentos sociais enfrentam atualmente é que muitos são bons em protestar, mas encontram dificuldades para a prática política e por isso tiveram uma interrupção. Na Espanha, conseguiram converter-se em um novo partido, o Podemos, e que está tendo sucesso eleitoral e está obrigando o PSOE, um dos partidos que mais foi à direita no passado, a se reformular.
O que está acontecendo com a esquerda europeia e especificamente em um país como Portugal?
Em Portugal, há alguns partidos pequenos que estão tentando entrar em uma nova alternativa de esquerda. É o que descrevo no meu livro no último capítulo intitulado “Onze cartas às esquerdas”. Em geral, penso que as esquerdas têm que se refundar para se libertarem dos dogmatismos originários e das lutas fratricidas ao longo de décadas, que deixaram profundas feridas. A marca do divisionismo e do dogmatismo é profunda.
Pelas notícias que chegam da Europa, sabemos que a Grécia necessita de um resgate social e econômico urgente…
Se a União Europeia fosse uma aliança política e econômica, como estávamos convencidos, não existiria uma dívida “grega”, mas europeia e como tal seria assumida. A dívida grega era muito pequena no conjunto europeu; bastava que a dívida grega fosse assumida como dívida europeia e as taxas de juros teriam sido muitíssimo menores, mas a Alemanha decidiu rechaçar esta proposta para proteger seus bancos. O novo nacionalismo europeu nasceu nesse momento.
O que você assinala é muito grave. Perdeu-se o sentido com o qual se queria formar a União Europeia…
Estamos diante do surgimento de velhos nacionalismos no interior das diversas regiões da Europa, que remontam ao século XV e contrapõem o Norte e o Sul. Deixam à vista como países seguem olhando a outros com preconceitos colonialistas, por exemplo, concebendo que os espanhóis ou os portugueses são preguiçosos, faltos de compromisso, coisas deste tipo. Com a União Europeia já havia mudado um pouco, mas esta comunhão entrou em colapso. Não existem fatos que nos digam o contrário.
Além disso, existe uma grande desconfiança em relação ao fortalecimento do nacionalismo alemão, que já causou duas guerras europeias, embora neste caso não se trata de um poder militar, mas de um poder econômico.
Alguns propõem a eliminação da União Europeia. O que pensa disso?
Sociólogos muito conhecidos como Wolfgang Streeck dizem que a melhor coisa seria eliminar a União Europeia, porque as soluções políticas que se tinha anteriormente para resolver a crise, entre eles a gestão política da moeda ou do Banco Central são inacessíveis dentro dela.
Temos uma crise econômica neoliberal crítica, mas não temos os instrumentos para resolvê-la. É uma situação de Catch-22, sem saída, complexa e depressiva. Há várias propostas, algumas mais radicais que outras: sair do euro sem sair da União Europeia; eliminar os dois.
Todo este cenário se complexifica com a ascensão de partidos nacionalistas e neofascistas. Por que estão surgindo partidos com ideologias que se acreditava não mais existirem no campo ideológico?
Este tema é muito preocupante, sobretudo na França. Como exemplo temos A Frente Nacional, que se constitui em uma narrativa preocupante e permanente que vem de muitas décadas atrás, e se enraizou. O nazismo e o fascismo foram experiências que duraram muitos anos e que ficaram no imaginário social europeu. Na realidade, não desapareceram porque não se fizeram muitas das coisas necessárias para acabar com elas definitivamente.
Como se manifestam estas narrativas não manifestas, mas latentes na vida política da Europa?
Por exemplo, uma das coisas às quais nunca se faz referência é que a Alemanha não pagou a sua dívida à Grécia pela ocupação e destruição na Segunda Guerra Europeia, mas atualmente cobrou a dívida da Grécia, o que constitui uma injustiça histórica tremenda.
Bastava que tivesse pago a sua dívida para que a Grécia pudesse seguir em frente, e dali surge todo esse imaginário social de hostilidade, de “soberanismo” e nacionalismo de direita, recalco, “muito perigoso”, que conduziu a um derramamento de sangue sem precedentes no mundo, convertendo a Europa no continente mais violento do mundo. Nunca morreram tantas pessoas em guerra como na Europa no século XX. Calcula-se que o saldo da Segunda Guerra Europeia (não é mundial) é de 60 milhões a 85 milhões de pessoas.
Por que diz que não são mundiais?
São guerras europeias, não mundiais. Enquanto a Europa dominava o mundo ela havia difundido esta narrativa. Evidentemente, houve teatros de operações na África e na Ásia. A Europa é um continente muito violento. A ideia dos valores europeus é muito recente e surge após tanto sangue derramado desde as guerras religiosas dos séculos XVI-XVII, depois dos Estados modernos seculares.
Está claro que a União Europeia como organismo produtor de coesão fracassou. Que entidade propõe para substituí-la?
Sou a favor de uma “União Europeia dos Povos” com uma igualdade democrática tanto econômica como política, onde primem a solidariedade e a reciprocidade, que pensávamos que já estavam consolidadas, mas a crise da Grécia se encarregou de nos mostrar que não é assim.
Para a Alemanha foi muito fácil dizer: “isto não tem nada a ver com a Europa, é um problema grego”. Então, amanhã será um problema português, depois de amanha será um problema espanhol, e com esta atitude destruiu todas as possibilidades de dar uma resposta rápida, de dar uma resposta a uma crise que não era tão grave. Portugal não tinha um problema econômico tão complexo como o que se vivencia agora. Foi realmente o jogo da especulação e a resposta tardia que agravou tudo. Alguns, tanto à direita como à esquerda, voltam a defender o velho nacionalismo europeu, mas, em geral, na Europa o nacionalismo foi conservador, autoritário e xenofóbico.
TEXTO-MEIO
A xenofobia está crescendo, e quem em muitos casos leva a pior na crise são os imigrantes…
A Europa tem uma dívida histórica com os países onde exerceu um jugo colonial, e deveria ser saldada, convertendo-se em um cenário de acolhida da diferença, o que poderia iniciar com a elaboração de uma nova política migratória, em uma verdadeira aposta “intercultural”, não “multicultural”, uma vez que enquanto a primeira faz referência à estreita relação, interação e integração das culturas, a segunda faz menção a uma vaga tolerância da diferença sem nenhum tipo de interesse pela cultura do outro.
Para sair da crise, alguns analistas propõem o retorno à moeda nacional de cada país. Na realidade, isto tem alguma viabilidade?
A saída do Euro é um debate muito candente que alguns vieram colocando sobre a mesa. Mesmo assim, qualquer saída que não seja organizada e minimamente negociada resultará em grande sacrifício para as famílias. Uma solução poderá ser vista medianamente dentro de três a quatro anos, mas a curto prazo será dolorosa, e com apostas como estas, onde o teu dinheiro nacional vai valer cinco vezes menos que o euro, e algumas dívidas estão denominadas em euro e o teu dinheiro em moeda nacional, nesse caso seriam soluções de ruptura, na minha opinião.
E o surgimento de uma solução lenta?
Esta solução vai germinar, na minha opinião, dependendo de duas condições: do surgimento de um agente político de esquerda capaz de mudar o rumo, e a outra pode ser quando a crise chegar à Alemanha e à França. A crise está chegando a alguns países nórdicos, como podemos ver com o que está acontecendo com a Nokia na Finlândia. O crescimento econômico da Alemanha e da França é quase nulo.
Então, você afirma que a crise dará um giro quando bater às portas da Alemanha?
Exato. E fará repensar as coisas. Existe um império financeiro dentro da Europa que se posicionou de uma maneira muito sutil e que será muito difícil desalojar.
Mas, por outro lado, quando houver uma crise na Alemanha, as coisas não serão muito boas para a Europa. Como exemplo temos as crises financeiras que vimos nos anos anteriores à era Hitler. De modo que sou um otimista trágico, como sempre digo, e vejo as dificuldades mas me recuso a não ver alternativas a este status quo que acaba em uma lógica de produção de desigualdades, de expulsão e perseguição do campesinato em todos os continentes. O problema da Europa é um problema em miniatura do problema global que atravessamos e que os povos de outros continentes já sofreram.
O que faz então que a América Latina não esteja passando por uma crise tão severa como a que a Europa enfrenta?
Porque tem os recursos naturais que são uma injeção na sua economia. O boom dos recursos naturais é o motor do atual crescimento.
Nesse sentido, que papel exerce a América Latina no cenário mundial hoje?
Penso que tinha um papel muito importante em trazer uma alternativa para o desenvolvimento capitalista, nas mãos das forças populares, como o evidenciou o Fórum Social Mundial. Não é por coincidência que este é criado em 2001. Evidentemente, na época a Venezuela já se havia consolidado, mas vão surgir governos populares no Brasil,Bolívia, Argentina e Chile; acontecerá o mesmo no Uruguai e no Paraguai. Tudo isso resultará na consolidação da emergência de movimentos sociais e populares que produziram realmente uma alternativa “pós-neoliberal”.
Todos estes governos progressistas se declaram “pós-neoliberais” e por isso começaram a fazer política com justiça social, uma redistribuição social. Este é o único continente em que será possível falar de socialismo do século XXI. Não faz sentido falar de socialismo na África ou na Ásia.
E a alternativa “pós-neoliberal” se mantém até hoje?
Nesta segunda década estes governos continuam declarando-se pós-neoliberais e têm alguma razão, mas não toda a razão. Por que poderíamos chamá-los pós-neoliberais? Bom, em parte porque o Estado controla muito mais a economia, é um interventor na mesma. Além disso, nacionalizaram-se muitas empresas no caso da Bolívia ou do Equador. Ou seja, existe um ativismo estatal mais forte que vai contra o neoliberalismo e é por isso que o neoliberalismo internacional não perdoa estes governos e quer destruí-los.
Agora, qual é a forma de operar destes países? Bom, são “pós-neoliberais” internamente para conseguir alguma medida de redistribuição social, mas não questionam o neoliberalismo internacional, o capitalismo financeiro nem as regras do livre comércio e jogam com as regras destes tratados. O modelo de desenvolvimento é neoliberal.
Você tocou um tema central em qualquer agenda política. Que possibilidade jogou então a disponibilidade de recursos naturais na consolidação destes governos progressistas?
O capitalismo financeiro foi determinante na exploração sem precedentes dos recursos naturais. Ele está administrando todo este modelo de desenvolvimento neoextrativista, que chamamos assim por sua intensidade. Existe um retrocesso em tudo o que resultava chamativo por ser uma alternativa, por exemplo, as políticas de autodeterminação dos povos indígenas na Bolívia (que é a maior parte da população) ou no Equador.
Na segunda década vamos enfrentar a destruição de um parque natural nacional como o Território Indígena e Parque Nacional Isiboro Sécure (TIPNIS), na Bolívia, e o Parque Yasuní, no Equador, com uma estrada e uma exploração petroleira, respectivamente. É de maneira que todas estas conquistas constitucionais, que foram fortes nas décadas passadas na Bolívia, no Equador e no Brasil, se perderam, porque o capitalismo internacional os obriga a cair no neoextrativismo completamente obsessivo.
Para construir estas megaconstruções é preciso deslocar os indígenas e camponeses; não há alternativa sob essa lógica. Esses governos ficaram sem alternativas e por isso são ambíguos, são cada vez mais neoliberais e menos “pós-neoliberais”.
É um dilema muito complexo, porque muitos analistas argumentam que não há forma de se livrar dos empréstimos internacionais, mas crescendo economicamente, fazendo uso de seus próprios recursos naturais. Evidentemente, isto tem custos ambientais e sociais terríveis…
A exploração dos recursos foi para obter uma maior redistribuição no interior dos países fazendo uso do mesmo modelo de desenvolvimento, o que fez com que não houvesse uma transição a um novo modelo.
Todas as melhorias são muito importantes e é preciso acolhê-las. Estes governos aproveitaram isso, mas não houve uma reconversão e diversificação industrial. Pelo contrário, o que se pode constatar é o estabelecimento do setor primário, ‘a reprimarização das economias’, o que resulta em algo equivocado, assim como no Brasil, que tem grande potencial industrial.
Então, a natureza é o principal recurso econômico da América Latina na atualidade?
O que move a economia nos países latino-americanos são os recursos naturais. É por isso que há mais de 5.000 projetos para a Amazônia que vão destruir, obviamente, seus ecossistemas. Tudo isso implica na destruição de um modelo político que se pensava alternativo e em seus inícios era muito confiável.
Existe uma alternativa de conciliar uma organização produtiva sustentável, que favoreça as populações dos países e cuide do meio-ambiente?
Não temos outra opção, tem que existir. Devemos pensar uma forma de produção alternativa ao extrativismo, que está destruindo a América Latina e o mundo. Seus ciclos arrasam a fertilidade da terra levando-a ao limite. Muitas regiões já estão desertificadas porque não suportam tamanho saque.
É a primeira vez na história que o capitalismo enfrenta os limites da natureza. Passamos da contradição entre capital e trabalho à contradição entre capital e natureza, o que se demonstra no aquecimento global e nos desastres climáticos e na escassez de água. Por outro lado, devemos revalorizar todas as economias anticapitalistas que existem no mundo, as economias camponesas, indígenas e solidárias que buscam uma de reciprocidade e de respeito com a natureza.
O que o cidadão comum poder fazer para enfrentar a crise e salvaguardar a natureza?
O cidadão comum sente-se menor diante das lógicas de poder que o ultrapassam. O poder é tão forte que não você não se imagina como individualmente pode fazer algo contra ele. Existem dois níveis nos quais podemos pensar uma alternativa: por um lado, não há emancipação sem autotransformação.
Na sua vida você tem que dar, de alguma maneira, testemunho de uma alternativa, por menor que seja, na família, em casa, na escola, no local de trabalho, testemunho de democracia e de consciência ambiental, porque atualmente o poder está nas mãos de antidemocratas. Individualmente, pode fazer muito pouco pela realidade à qual está sujeito. O que devemos fazer é repensar novamente a política, participar ativamente da formulação de políticas não somente em nível municipal, mas em nível nacional.
Na América Latina foram feitas algumas apostas interessantes, como os orçamentos participativos, conselhos nacionais setoriais de saúde e educação, onde a sociedade civil realmente organizada participava na elaboração de políticas públicas.
E você, como contribui para a mudança social?
Nunca serei um intelectual de vanguarda, mas de retaguarda. Para fazer teoria de vanguarda e fazer parte da mesma é preciso separar-se da sociedade que você quer dirigir.
O intelectual de retaguarda, pelo contrário, vai com os movimentos sociais, caminhando ao mesmo tempo e se deixa surpreender pela criatividade social, busca dar conta do que está acontecendo, mas ao mesmo tempo ecoando onde a criatividade vai surgindo, trabalhando com os movimentos sociais, de camponeses, de indígenas, de mulheres. Na Universidade Popular dos Movimentos Sociais realizamos diversas oficinas e onde buscamos a aproximação dos espaços e que aconteça o que chamo de ecologia de saberes, onde se combina o saber científico com o saber popular.
Estamos discutindo um mundo novo, mas sempre levando em conta os novos fatores que surgem na sociedade, o que chamei de sociologia das emergências. É esse sentido que estamos trabalhando.
sábado, 20 de dezembro de 2014
Como Letícia Santos, filha de ex-agricultores sem terra, chegou à faculdade
publicado em 20 de dezembro de 2014 às 16:33, Blog Viomundo
por Patrick Mariano, especial para o Viomundo
Um amigo me enviou um texto sobre o livro de Jorge Amado A morte e a morte a Quincas Berro D’água. Pediu que publicasse em meu blog Más caras?. Nunca tive muitas pretensões com o blog, sempre foi mais para meu desassossego e crônicas de cotidiano. Mas, gostei muito da sensibilidade da resenha do livro e perguntei quem era o autor ou autora.
Descobri que a autora se chama Letícia Santos. É de uma pequena localidade chamada Adustina, no nordeste baiano. Tem 21 anos e é filha de ex-trabalhadores rurais sem terra, hoje assentados da reforma agrária e estudante de Direito da turma Elizabeth Teixeira da Universidade Estadual de Feira de Santana. Junto com outros filhos de trabalhadores rurais, conseguiu chegar ao ensino superior através do PRONERA, programa do Ministério da Educação/Ministério do Desenvolvimento Agrário (MEC/MDA) que busca ampliar o acesso ao ensino superior à população que vive no meio rural.
O analfabetismo ainda assombra o meio rural brasileiro. Entre as pessoas de 15 anos ou mais, atinge 23,5%. É quase 5,5 vezes superior ao verificado na zona urbana: 4,3%. Um estudo do Observatório da Equidade alerta que se o “Brasil Rural” fosse um país, teria o 4º pior desempenho entre os países da América Latina e Caribe, melhor apenas que Haiti (45,2%), Nicarágua (31,9%) e Guatemala (28,2%).
Resolvi, diante disso, entrevistá-la para o Viomundo a fim de que pudesse falar sobre literatura, lutas, dificuldades no acesso ao conhecimento e um pouco sobre a trajetória de sua vida. A entrevista foi feita através de um chat.
Viomundo — Letícia, qual o significado da literatura para você, estudante de Direito e com uma trajetória familiar de luta pelo direito à terra?
Letícia Santos – Eu vejo na literatura um caminho a se percorrer. É uma porta que se abre à uma viagem intensa e fantástica. Por isso, é na literatura que eu consigo sentir a magia de uma bela obra literária. Não tenho o hábito de ler tanta literatura, mas cada vez que leio me sinto totalmente envolvida e percebo o quanto me faz bem. A melhor parte de tudo isso é se reconhecer dentro dos personagens e entender como a fantasia literária está ligada à vida real.
Viomundo — Jorge Amado escreveu com magia e retratou como poucos o povo baiano, sua simplicidade e as cores da Bahia. Como estudante de Direito você vê a literatura como necessária para o jurista conhecer melhor o mundo em que está metido?
Letícia Santos – Claro, não só o jurista. Todos devem aprender a entender melhor o mundo em que estamos e a literatura é um bom caminho para isso porque nos permite entender como os elementos culturais e como as regras sociais que as pessoas estabelecem estão descritas no nosso dia-a-dia.
Viomundo – Como foi sua chegada na Faculdade de Direito? Você sempre sonhou em fazer o curso? Conte um pouco da sua trajetória.
Letícia Santos – Eu nunca pensei em fazer Direito. Eu costumo dizer que eu não escolhi o Direito, o Direito me escolheu. Em um certo dia, meu pai chegou em casa com a notícia desse vestibular para beneficiários da reforma agraria. Era meu último ano no ensino médio, e resolvi me inscrever. Não tinha nada a perder, até porque mesmo que eu fosse reprovada, já seria uma grande experiência e no fim de tudo isso, felizmente, passei no vestibular.
Viomundo – Quais as maiores dificuldades que você encontrou para chegar ao ensino superior?
Letícia Santos –Uma das maiores dificuldades foi o medo, pois tudo aquilo era muito novo pra mim. Sair de casa, para uma cidade distante, ficar longe da família, era tão estranho pra mim que cheguei a pensar em desistir, mas hoje agradeço por não ter desistido, e por ter aprendido tanto.
Viomundo – Seus pais puderam estudar?
Letícia Santos –Eles não completaram o ensino fundamental.
Viomundo – Quantas pessoas da sua família têm curso superior? Você vê a academia brasileira distante da realidade dos trabalhadores rurais?
Letícia Santos – Eu sou uma das primeiras a fazer um curso superior. A academia aparece como algo distante da realidade dos trabalhadores e hoje se percebe que o saber acadêmico impera sobre o saber popular, e isso faz com que exista uma contradição entre essas duas realidades.
Viomundo – Quais seus planos para o futuro? O Direito pode ser um instrumento da transformação social?
Letícia Santos – Eu pretendo aproveitar essa oportunidade que a vida me deu porque acredito que o mundo pode ser melhor. O Direito é um instrumento de luta.
Viomundo –Você concorda com a frase de José Martí de que só o conhecimento liberta?
Letícia Santos –O conhecimento liberta, mas nem sempre o conhecimento é libertador.
Viomundo –Depende como é empregado, é isso?
Letícia Santos –Depende do sistema. Hoje estamos à mercê de um sistema opressor, que não tem nenhum intuito de que o povo tenha acesso ao conhecimento e de que ele possa se apoderar desse conhecimento.
Viomundo – Qual o recado que você gostaria de deixar para milhares de filhos e filhas de acampados da reforma agrária que sonham em um dia ter a terra, mas também romper as cercas do ensino superior no Brasil?
Letícia Santos – Para todos aqueles que acreditam num mundo menos egoísta e mais humano, digo que não parem de lutar, nós podemos romper todas as cercas que nos prendem.
Patrick Mariano é doutorando em Direito, Justiça e Cidadania no século XXI na Universidade de Coimbra, Portugal. Mestre em direito, estado e Constituição pela Universidade de Brasília, integrante da Rede Nacional de Advogados e Advogadas Populares-RENAP, do coletivo Diálogos Lyrianos da UnB e autor do livro 11 Retratos por 20 Contos.
quinta-feira, 11 de dezembro de 2014
Direitos Humanos Constituintes e Processos de Luta (David Sanchez Rubio concede entrevista ao PPGDH)
Por ocasião de sua passagem por Brasília, na UnB, onde participou de Banca de Mestrado no Programa de Mestrado em Direitos Humanos e Cidadania, no CEAM/NEP (Banca de Isis Táboas),o Professor David Sánchez Rubio da Universidade de Sevilha concedeu a seguinte ENTREVISTA a Professora Nair Heloisa Bicalho de Sousa, Coordenadora do PPGDH:
1. Diante das inúmeras violações dos direitos humanos no mundo hoje, quais são os principais desafios para efetivá-los?
La verdad es que es difícil contestar de manera resumida sobre un tema tan complejo. Pienso que tanto a nivel de cultura jurídica en nuestro contexto de sociedades occidentales de capitalismo central y de capitalismo dependiente, como a nivel de cultura popular, general y global, no existe una sensibilidad por derechos humanos y uno de los desafíos es potenciar una cultura y una conciencia que realmente los sientan y los apliquen. Otro problema aparece con respecto al concepto, la idea y el modo como se entiende la práctica de los derechos humanos, que normalmente suele desarrollarse en unos esquemas muy reducidos e insuficientes. Por ello, para enfrentar el principal desafío de los derechos humanos, que se centra en la separación y en el abismo que hay entre lo que se dice y lo que se hace, entre la teoría y la práctica de los mismos y que afecta a una mayoría de la población mundial que vive en condiciones de pobreza y exclusiones diversas, hay que trabajar en esos dos planos: a) el de la sensibilización y la educación; b) y en el plano epistemológico que expresa una práctica y que refleja una idea o concepto excesivamente normativista, formal, estatalista, burocrático, delegativo, instituido y post-violatorio de los derechos humanos.
Generalmente, cuando se habla de derechos humanos se suele acudir a una idea de los mismos basada en las normas jurídicas, en las instituciones con el estado a la cabeza y en ciertos valores que le dan fundamento (como la dignidad, la libertad, la igualdad y la solidaridad) y que están o bien cimentados en la misma condición humana o bien reflejados en sus producciones normativas e institucionales. Derechos humanos son aquellos derechos reconocidos tanto en el ámbito internacional como nacional, por las constituciones, normas fundamentales, cartas magnas, tratados y declaraciones basadas en valores e interpretadas por una casta de especialistas. Sin ser estas dimensiones negativas y teniendo todas ellas muchas consecuencias positivas, porque son instancias que legitiman un conjunto de luchas sociales cuyas reivindicaciones se objetivan, no obstante cuando se absolutizan como únicos elementos de los derechos humanos, acaban por potenciar una cultura burocrática, funcionarial y normativista que reduce y encorseta su fuerza constituyente, ya que nuestros derechos, desde la totalización de esas dimensiones, únicamente se garantizan cuando una norma los positiviza y cuando un cuerpo de funcionarios pertenecientes al estado, los hace operativos entre reflexiones doctrinales de apoyo, dándoles curso a través de garantías concretizadas por medio de políticas públicas y sentencias judiciales. Desde esta óptica instituida de los derechos humanos, se delega íntegramente en determinados especialistas, técnicos e intérpretes la capacidad de saber si estamos o no estamos protegidos cuando se nos viola nuestra dignidad, nuestra libertad o nuestras condiciones de vida y, además, tendemos a reducir su efectividad solo cuando un tribunal posee la sensibilidad interpretativa de garantizarlos. Asimismo, tenemos la sensación de que la existencia de un derecho humano se manifiesta y aparece, en el instante en el que es violado o vulnerado, hecho que permite la apertura de los procedimientos desarrollados en los circuitos de la administración de justicia.
Frente a ello, se hace necesario percibir y potenciar otros elementos que son muy importantes para enfrentar las desigualdades estructurales y asimétricas que ese concepto simplificado de derechos humanos no sabe, no puede o no quiere enfrentar y, también para reducir la separación y el hiato entre la teoría y la práctica que se expresa en términos de inefectividad. Algunos de esos otros elementos de derechos humanos que hay que acentuar, sin rechazar los anteriores, pasan por luchas sociales colectivas e individuales, en forma de procesos de resistencia de movimientos sociales por espacios de libertad y de una vida digna de ser vivida y acciones cotidianas de reivindicación, por sociabilidades y relaciones de reconocimiento de la dignidad en todas las esferas de lo social que sepan convocar y articular, tomando conciencia de la dimensión pre-violatoria de los derechos humanos y que dependen de nuestras acciones concretas diarias con las que unos a otros nos tratamos como sujetos y no como objetos, desde dinámicas de reconocimiento mutuo, horizontales y no verticales y jerárquicas bajo el patrón de superiores/inferiores. En cierta forma se trata de articular una praxis de derechos humanos relacional, instituyente, socio-material, compleja que debe afectar a todas las esferas donde existen relaciones humanas. La ciudadanía debe evitar delegar solo en el estado la capacidad de establecer sistemas de garantías para hacerlos efectivos y debe percibir que las garantías y el reconocimiento de los mismos dependen de cada ser humano.
2. Como avalia a situação atual dos direitos humanos na Europa, especialmente na Espanha?
Europa logró mucho en el reconocimiento de los derechos con los estados constitucionales y de bienestar bajo el referente del estado social. Actualmente, con la fuerte crisis económica, se está retrocediendo en esas conquistas por la equivocada dependencia que existe con respecto al modelo de mercado financiero y neoliberal, insensible a las condiciones dignas de existencia que los derechos sociales proporcionan. También es cierto que los estados de bienestar fueron posibles gracias al empobrecimiento que Europa y Estados Unidos provocaban, por esa cultura colonizadora tan presente en su historia, en muchos países del Sur o del mal llamado Tercer Mundo, al aplicar un modelo de desarrollo y progreso basado en el subdesarrollo, la explotación y la generación de desigualdad en otras áreas geográficas. No nos dimos cuenta que para poder disfrutar de derechos como la salud, la vivienda, la educación, etc., aplicamos una manera de entender la producción económica que nos beneficiaba, mientras perjudicaba simultáneamente a otros países que exportaban sus productos bajo la soberanía del capital, precarizando las condiciones de vida de sus ciudadanos. Por eso es importante saber escuchar y aprender de otras latitudes en ese sentido crítico y contra hegemónico que ofrece y propone formas más solidaria de disfrutar de los derechos, pero ese es otro tema que no voy a desarrollar ahora.
Países como España, Portugal y Grecia en un nivel extremo, pero también países como Alemania y Francia, están sufriendo un ataque muy fuerte sobre los derechos laborales bajo un contexto de desestabilidad, incertidumbre y movilidad por razones de mercado en el mundo del trabajo. También los procesos de privatización afectan a derechos relacionados con la vivienda, la salud, la educación, desde una cultura que tiene como referente, no al ser humano concreto y particular, sino al dinero y la obtención del máximo beneficio a partir de un paradigma de competitividad agresivo de ganadores y perdedores. España está enfrentando la crisis atacando a la gente que está más necesitada y carente con respecto a esos derechos, aplicando políticas que benefician a quienes son los verdaderos responsables del derrumbe económicos, como los bancos y las entidades políticas y financieras que participaron del boom especulativo inmobiliario.
Pese a los avances en materia de género, a nivel normativo, mucho queda por hacer en materia de violencia contra mujeres, homofobia contra gay y lesbianas, xenofobia contra inmigrantes, etc. En estos casos se demuestra nuestra hipocresía y bipolaridad endémica de resignificar y modular el discurso de la universalidad de los derechos humanos según interesa. España es un ejemplo de cómo en Occidente hay una fluidez en hablar en términos de reconocimientos e inclusiones abstractas, pero bajo un suelo o un piso formado por exclusiones concretas, continuas y sistemáticas.
Por otra parte, que la ciudadanía sepa movilizarse y expresarse sin miedos impidiendo los desahucios o cuestionando el modo de hacer política tradicional, con el ejemplo no único, de Podemos, el nuevo partido con bases populares que pone en jaque a los partidos acomodados de siempre como el Partido Popular y el PSOE que se alejaron de la ciudadanía, son aire fresco que, con los pies en el suelo y sin triunfalismos, dan cierta esperanza como instancia limitante de los poderes económicos y los países fuertes del capitalismo europeo.
3. Quais os horizontes dos direitos humanos na América Latina?
La verdad es que, desde mi punto de vista, ya de por sí el horizonte no es muy halagüeño, es desesperanzador, sobre todo porque son muchas las personas que desde hace mucho tiempo sufren discriminaciones, exclusiones y marginaciones de todo tipo. La esperanza y el optimismo que puede vislumbrarse proceden, como siempre, de la capacidad de movilización y luchas de aquellos movimientos sociales (indígenas, afrodescendientes como quilombolas, movimientos campesinos, luchas de mujeres, movimientos por la tierra o por una vivienda, etc.), que reivindican espacios de dignidad y mayor participación democrática en lo étnico, lo sexual y genérico, lo cultural, socio-material y ambiental, etc., en complemento siempre precario y conflictivo con partidos políticos y gobiernos que manifiestan una sensibilidad y una conciencia social por las víctimas producidas por el sistema capitalista-patriarcal y colonial.
Pese al contexto adverso e incierto, son interesantes los acontecimientos que se expresan en el llamado nuevo constitucionalismo latinoamericano con Bolivia y Ecuador a la cabeza, junto al zapatismo mexicano pese a las dificultades, entre otros muchos ejemplos. América Latina con sus diversas tonalidades y colores es ejemplo desde hace tiempo de la pluralidad y la riqueza humana en términos de liberación frente a los excesos de los poderes económicos depredadores, patriarcales y racistas que afectan a la especie humana como un todo, a cada colectivo humano y a cada ser humano individual y particular, junto a la naturaleza. Solo la permanencia de esa lucha incansable, permanente y continua abre el horizonte de que otro mundo es posible.
También creo que resulta fundamental que se hagan fructíferos los intentos ya propuestos por Simón Bolívar y José Martí de generar una unidad entre todos los países y pueblos latinoamericanos para hacerse fuerte sabiendo sacar provecho a su bagaje multicultural y humanista, claro está, buscando otros modelos de desarrollo económicos basados en una racionalidad económica y una ética reproductiva que apuesta por la vida de toda la humanidad y la naturaleza. Son muchos quienes ignoran esa propuesta del pasado calificándola de chavista o populista, desconociendo su fuerza emancipadora y llena de matices.
4. Tendo em vista as experiências de diferentes movimentos sociais que lutam por direitos, as quais se combinam com diversas formas de violação de direitos humanos no campo e na cidade, como o sr. avalia as perspectivas futuras dos direitos humanos Brasil?
Brasil, con sus particularidades y diferencias, creo que tiene situaciones parecidas a las que están sucediendo en el resto de América Latina. Los conflictos relacionados con la tierra, identitarios de indígenas y quilombos, por una moradía o vivienda digna, los problemas generados por la mega-minería y la mega-industria, etc., son comunes. A ello se añade los múltiples casos de corrupción de la clase política, de especulación empresarial y bancaria, la violencia protectora de un concepto de propiedad privada avariciosa y codiciosa, etc. Cuando al principio mencionaba esa manera simplista de ver derechos humanos al confiar solo en el estado la capacidad de garantizarlos y hacerlos efectivos, no percibimos el hecho de que en América Latina, ningún estado está libre de sospecha en relación a la impunidad, el ejercicio de la violencia policial y/o militar, la connivencia con los poderes económicos, etc. No hay estado que de confianza y que sea ejemplo de sensibilidad por derechos humanos.
Asimismo, la tragedia y el daño provocados por el narcotráfico en países como México, Colombia y Perú, también se dan en Brasil. En todas esas sociedades participan instancias estatales y de la sociedad civil dentro de un sistema capitalista que lo tolera porque forma parte de su lógica suntuaria y crematística. A ello se suman los secuestros, el tráfico de personas, principalmente de mujeres por razones sexuales, formas análogas a la esclavitud, la explotación infantil, la prostitución principalmente forzada. Todos estos actos que denigran al ser humano están a la orden del día y, desde mi punto de vista, expresan anormalidades que tienen su fuente o caldo de cultivo en comportamientos previos más normalizados que se basan en una cultura que clasifica la realidad en superiores e inferiores en todos los órdenes de lo racial, sexual, de género, de clase y socio-material, etario, religioso, etc.
Por eso creo que la fuerza instituyente de los movimientos sociales y populares que en Brasil y el resto de América cuestionan este modelo de desarrollo desigual, que apuestan por una cultura más participativa y democrática en instancias estatales y no estatales bajo el paradigma de la demodiversidad en tanto posibilidad participativa de empoderamiento social a partir de transferencias de poder reales que elevan la autoestima popular. Una cultura participativa y democrática que potencia el respeto por la naturaleza y el reconocimiento de la alteridad, que convoca sociabilidades humanas de solidaridades, respetos mutuos, que potencia lo común en lo local y lo global, que potencian el reconocimiento de la diversidad y la diferencia sexual y de género, racial y cultural, etc., son fundamentales para enfrentar un sistema de nos lleva a la extinción del la especie humana y del planeta, y en el que muchos son los colectivos que están siendo sacrificados, despreciados, ignorados y/o asesinados.
5. O sr. poderia apresentar uma síntese das suas ideias sobre os direitos instituintes e os processos de luta?
Intentaré no extenderme demasiado pese a que entraré con más detalle en mi respuesta. Con ese modo simplificado y estrecho de entender derechos humanos que expliqué anteriormente, se nos enseña una idea tan restringida y tan reducida que, al final, acaba por desempoderarnos a todos los seres humanos, quitándonos nuestra dimensión constituyente, individual y colectiva, nuestra cualidad soberana de significar y re-significar la realidad, porque con esa concepción oficializada y extendida que limita derechos humanos a instancias teóricas, normativas, burocráticas e institucionalizadas y a circuitos judiciales, se establece un efecto expropiatorio y de secuestro tanto de la capacidad de lucha constituyente popular como de la acción social y cotidiana. Es decir, no se nos reconoce realmente en nuestra capacidad de dotar de carácter a nuestras propias producciones culturales, políticas, étnicas, sexuales-libidinales, económicas y jurídicas con autonomía, responsabilidad y autoestima en todos aquellos espacios y lugares sociales en los que se forjan las mismas relaciones humanas, como son el mundo del trabajo, de la producción y el mercado, las esferas doméstica, comunitarias y de la ciudadanía.
Por esta razón, se hace necesario señalar algunas pistas para articular y defender una concepción mucho más compleja, relacional, socio-histórica y holística que priorice el componente constituyente y no solo constituido de los derechos humano: 1) tanto las propias prácticas humanas, que son la base sobre la que realmente se hacen y se deshacen, construyen y destruyen derechos y sobre las cuales se inspiran y elaboran las teorías; 2) como la propia dimensión creativa e instituyente de los seres humanos plurales y diferenciados, quienes son los verdaderos sujetos y actores protagonistas.
En nuestro imaginario, por lo general los derechos humanos aparecen como instancias instituidas, separadas de sus procesos socio-históricos de constitución y significación. Las garantías para hacerlos efectivos se reducen a lo jurídico-estatal, bien a través de políticas públicas o por medio de sentencias judiciales y se piensa que el derecho estatal es la única instancia salvadora de la insociabilidad humana. Se deslegitima así la capacidad de la sociedad civil para implementar un sistema de garantías no único, sino plural que, dentro o fuera del marco legal, protege y defiende derechos históricamente conquistados pero debilitados por diversas circunstancias y también nuevos derechos que el orden político y económico no los quieren reconocer por la amenaza que suponen para el orden de poder establecido. A ello se suma el recorte de la capacidad soberana popular por medio de un concepto también restrictivo de democracia, que queda reducida a representación partidista y elección en las urnas bajo la base de una abisal separación entre los gobernantes que mandan y los gobernados que se limitan a obedecer.
Una de las causas de que esto suceda se debe al imaginario de despolitización que se ha construido en torno a los derechos humanos y que implica un debilitamiento y una anulación del ejercicio autónomo del poder por parte del pueblo y/o la sociedad civil. Para ello, un recurso crucial utilizado ha sido el modo de concebir el poder en una sola expresión. Tradicionalmente es definido como la capacidad de dominio de una persona sobre otra, siendo el resultado de una relación de mandato y obediencia. Ya implica potencialmente un trato o relación desigual, manipulada y por imposición, en donde una de las partes es superior a la otra, quien se subordina y hasta es sometida. Este ha sido el modo como Occidente se ha expandido por el mundo, colonizándolo y apropiándose de él.
No obstante, autores como los argentinos Alejandro Médici y Enrique Dussel contraponen a este concepto de poder, al que denomina estratégico, con otra noción de poder más liberador y generador de autoestima, entendido como la capacidad de las personas para actuar concertadamente para hacer cosas de modo cooperativo y conjuntamente, en base a un consenso previamente obtenido. Se trataría de una noción de poder compartido, sin jerarquías discriminantes y no basadas en el par superior/inferior. El ser humano, en su capacidad de significar y resignificar mundos plurales, cimentaría como fundamento de este modo constituyente de crear realidades, en la voluntad de vivir, según el sentido dicho por Enrique Dussel, reinterpretando a Spinoza. Un poder desde el que podemos alimentarnos, disfrutar de un hogar y vestirnos dignamente y garantizando la vida de cada ser humano particular, con nombres y apellidos, proporciona los medios para la satisfacción de las necesidades que permiten la producción, reproducción, mantenimiento y desarrollo de la vida humana concreta mediada culturalmente. Desde el punto de vista político, sería por antonomasia el pueblo el sujeto primero y último del poder, siendo el verdadero soberano con autoridad propia. En él, tendría una posición de protagonismo central el bloque social de los oprimidos, en tanto que subjetividades subalternativizadas que critican hacia la transformación del orden social e institucional existente, que formula sus reclamos en forma de nuevos derechos, que expresan su voluntad crítica de convivencia desde el consenso contrahegemónico.
A un nivel más antropológico, podría hablarse de la cualidad instituyente y creadora de los seres humanos para transformarse a sí mismos y a los entornos en el que se desarrollan. En este sentido, Joaquín Herrera Flores alude a la capacidad humana genérica de reaccionar culturalmente frente al mundo, de reaccionar frente a sus entornos relacionales, en un permanente, continuo e inacabado proceso de creatividad y significación, con sus consecuencias tanto positivas como negativas. En términos de dignidad humana, sería «el despliegue de la potencialidad humana para construir los medios y las condiciones necesarios que posibiliten la capacidad humana genérica de hacer y des-hacer mundos». El poder constituyente, en términos no solo constitucionales y de teoría política, sino aplicados a los derechos humanos, sería la capacidad creativa plural y diferenciada, la cualidad individual y colectiva de las personas concretas de enfrentar el mundo, reaccionando frente a sus entornos relacionales tanto para lo bueno como para lo malo. Por ello hay que distinguir entre un poder constituyente emancipador, liberador y popular y un poder constituyente oligárquico, dominador y excluyente.
Para lo que nos interesa, el poder popular en tanto poder originario e instituyente, en la tradición de la teoría política y como promesa incumplida de la modernidad, se muestra como el fundamento y legitimidad de las instituciones y los sistemas de organización de una sociedad calificada de democrática. El conjunto de sujetos individuales libres que en red y con vínculos intersubjetivos dentro de una comunidad, se aúnan consensualmente como poder constituyente que construye realidades desde la materialidad de la vida posibilitada, establece las bases del constitucionalismo democrático moderno y de los estados constitucionales de derecho. El poder del pueblo y para el pueblo es su máxima expresión, entendido como instancia originaria y fundadora del orden político. Pero a lo largo de la historia, de manera sistemática y, principalmente, una vez asentadas las revoluciones burguesas que originaron la primera etapa del constitucionalismo, quedó sometido a un proyecto de control no solo, como dice Toni Negri, de la ciencia jurídica, sino a un nivel más estructural por medio de los poderes oligárquicos que, por tradición, han tenido un miedo y un recelo ancestral hacia lo popular, casi siempre adjetivado despectivamente como la chusma o la masa inmadura, salvaje y peligrosa. A lo largo del tiempo se han ido desarrollando sucesivas políticas de limitación, recorte, parcelación y debilitamiento. El derecho y la representación política han sido dos de los principales instrumentos para amansar y domar su fuerza creativa y transformadora de los entornos relacionales. La dimensión delegativa e instituida del poder gubernativo y político, termina robando y expropiando el poder soberano de las mayorías populares, que pierden en protagonismo directo de significar y dotar de carácter a sus propias producciones, de hacer y des-hacer mundos. El pueblo, base de legitimidad de la arquitectura política, desaparece en el instante que es internalizado como una parte más de la constitución, es decir, como poder constituido. Las consecuencias son claras: la constitución, en vez de ser un proceso abierto a una comunidad ampliada y plural de intérpretes que abarca a toda la ciudadanía, se cierra como un coto privado de operadores jurídicos y la doctrina constitucional, encriptándola, en palabras del colombiano Ricardo Sanín, con un lenguaje tecno-legal que se convierte en indescifrable y también al poder que lo sustenta.
Este efecto limitante y de blindaje de los seres humanos en tanto sujetos soberanos, se proyecta sobre los derechos humanos, que, tal como hemos dicho, pierden su carácter político y pasan a ser instancias técnicas y burocráticas. Al juridificarse, se despolitizan, desvinculándolos de las luchas sociales que resisten los procesos que agreden el impulso vital instituyente de reacción cultural y de existencia plural y diferenciada. Cuando la lucha política por los derechos debería estar presente en todas las instancias tanto jurídicas, como socio-económicas y existenciales, se la filtra, regula, contiene y limita con las camisas de fuerza de las normas y los procedimientos jurídico-estatales, que imposibilitan las trasferencias de poder que el pueblo y cada ser humano precisa para crear y recrear mundos desde sus propias particularidades y diferencias. La trampa de estos juegos malabares de desempoderamiento popular, radica en diluir al poder constituyente popular convirtiéndolo en solo una capacidad originaria o subordinándolo a un poder constituido delegativo, estratégico, burocrático y técnico. Se termina normalizando y naturalizando la idea de que así, toda dimensión constituyente que en el origen es legitimadora, pasa a ser legitimada por las instancias institucionales que lo controlan. Se oculta con ello, la cooptación que de lo instituido realiza ese otro poder constituyente oligárquico, estratégico, fetichizado y excluyente, que es el que realmente se apropia y controla el proceso de construcción de la realidad desde parámetros economicistas, mercantiles, patriarcales, coloniales y racistas, y bajo la engañosa noción de individuos emprendedores y competitivos.
En definitiva, se despolitizan los derechos humanos juridificándolos en procedimientos interpretados por técnicos y especialistas, eliminando, con ello, la dimensión combativa, liberadora y de lucha instituyente popular, propia de los movimientos sociales que ejercen el poder soberano de la lucha por los derechos frente a entornos de dominación, explotación y discriminación. Por ello, es falsa y mentirosa la idea de que existe un poder instituido, de derecho, constitucional y democrático desvinculado de amenazas, controles y hegemonías de poder. A costa de eliminar la dimensión constituyente popular y de la sociedad civil que afecta e influye sobre lo instituido, quien ejerce un sistemático control es el otro poder constituyente, el oligárquico, que se mantiene en su versión dominadora e imperial por medio de los intereses y las acciones hegemónicas y alienantes del capital patriarcal. Los protagonistas del mundo de los negocios, las empresas multinacionales, los grandes bancos, el FMI, la OMC, el BM y aquellas grandes potencias o estados más fuertes del capitalismo tanto central, como periférico, con sus respectivas clases ricas nacionales, son los poderes constituyentes oligárquicos que poseen el control y la autoridad del poder instituido, plasmado en los estados constitucionales de derecho. Absolutizan sus intereses por medio de derechos como la propiedad privada, la libertad de contratos y el libre comercio. La estrategia es utilizar el derecho estatal y la legalidad cuando conviene en unos casos, y en otros es preferible vulnerarlo, creando normatividades paralelas. De ahí la importancia que tiene exigir, reivindicar y recuperar el papel protagonista del poder constituyente popular y de unos derechos humanos instituyentes que compensan las carencias, las omisiones y las agresiones del poder constituido normativo y estatal blindado y enclaustrado oligárquicamente. La fuerza de los derechos humanos en eficacia y reconocimiento garantizado se incrementará cuando el poder constituyente popular y democrático, que también puede decantarse a la creación de espacios de dominación y destructores de dignidades, se complemente con los derechos humanos instituidos, que concretizan las luchas instituyentes y emancipadoras populares y que permiten a todo ser humano ser tratado como sujeto actuante e instituyente y no como objeto manipulable, victimizado y prescindible.
Desde esta dimensión instituyente y como proceso de lucha, los derechos humanos con su dimensión política, socio-histórica, procesual, dinámica, conflictiva, reversible y compleja, nos permitirá de manera sinestésica espabilarnos de la anestesia en la que estamos sumergidos, con la que los cinco o los seis sentidos actúan simultáneamente las veinticuatro horas del día y en todo lugar. Son prácticas que se desarrollan diariamente, en todo tiempo y en todo lugar y no se reducen a una única dimensión normativa, filosófica o institucional, ni tampoco a un único momento histórico que les da un origen. Derechos humanos guardan más relación con lo que hacemos en nuestras relaciones con nuestros semejantes de manera individual y colectiva, ya sea bajo lógicas o dinámicas de emancipación o de dominación, que con lo que nos dicen determinados especialistas lo que son (aunque también repercute en nuestro imaginario y en nuestra sensibilidad sobre derechos humanos). Lo instituido está siempre afectado por lo instituyente tanto popular como oligárquico o poliárquico. Y debe ser el primer poder desde un prisma emancipador, el que debe primar. Todo esto tiene mucha relación con los derechos humanos militantes que desde hace años ya señalara Roberto Lyra Filho y desarrollara José Geraldo de Sousa Jr., junto a esa capacidad de la sociedad de producir derechos de manera liberadora.
segunda-feira, 1 de dezembro de 2014
Feminismos em Coimbra (Cartas do Mondego)
(...) Mulher
na democracia
Não é biombo
de sala
(...)Vencida numa fornalha
Não há
bandeira sem luta
Não há luta
sem batalha”
Música “Teresa Torga”, Zeca Afonso.
“(...)Tinha a
mania de pôr as cores a condizer
No meu
entender, rosa com vermelho não podia ser
Uma noctívaga
que não dormia a sesta
E, de manhã,
sempre quis menos conversa
Uma covinha
só de um lado da bochecha
Adormecia com
o pai e a mesma canção do Zeca
"Dorme,
meu menino, a estrela-d'alva"
Era sempre
mais Mafalda do que Susaninha
Ai de quem dissesse
mal do Sérgio Godinho!”
Música “Vayorken”, Capicua
O feminismo grita nas paredes e
nas ruas de Coimbra. São diversas as manifestações em graffiti stencil, algumas
chamando a atenção para o número de mortes de mulheres em Portugal, outras
defendendo a autonomia das mulheres e o próprio feminismo.
Essas frases se repetiram em diversas ações sobre a temática
ocorridas em novembro. Houve oficina no CES tratando de literatura feminina
africana e os discursos acerca da poligamia e outra tratando de discursos sobre
masculinidades pelas novas mídias, além de uma Conferência no dia 25 de
novembro para debater a violência contra as mulheres.
Ainda, a 1ª Semana da Consciência Negra do CES teve uma mesa de abertura fantástica composta apenas por mulheres negras debatendo o
feminismo e o racismo, trocando experiências entre Portugal e Brasil.
Mesa 1a Semana da Consciência Negra do CES – 19/11/14 |
Vigília em memória das mulheres assassinadas em Portugal - 02/11/14 |
Para além das atividades acadêmicas, ocorreram atividades
convocadas por entidades locais como uma reunião aberta do partido “MAS” para
discutir o que é o feminismo; uma vigília promovida pelo Movimento Nós,
Mulheres; e convocada por diversas entidades, como a UMAR (União de Mulheres
Alternativa e Resposta), nas escadarias monumentais da Universidade para
lembrar o assassinato de mais de trinta mulheres só este ano em Portugal.
Logo no meu primeiro mês aqui a questão da violência
doméstica já se mostrou como uma
problemática também portuguesa. Em outubro, em
Coimbra, um homem assassinou sua mulher, uma filha e deixando outra filha
ferida.
Isso significa que a violência contra a mulher é de fato um
problema mundial. Em 1999, a OMS já constatava, em um estudo com 35 países, que
entre 10% e 52% das mulheres já haviam sido agredidas fisicamente pelo parceiro
em algum momento de suas vidas (http://www.compromissoeatitude.org.br/alguns-numeros-sobre-aviolencia-contra-as-mulheres-no-mundo/).
E as notícias vindas do Brasil não são nada alentadoras. Em
2014, o país caiu de 62ª para 71ª posição de igualdade de gênero no mundo. Segundo o Mapa da Violência (2012) até
o ano de 1996 as taxas de homicídio de mulheres eram de 4,6 homicídios para
cada 100 mil mulheres não sofrendo alterações mesmo após da Lei Maria da Penha,
demonstrando que temos muito ainda que avançar em termos de políticas públicas
especificas para este problema.
Bandeja da cantina da Universidade de Coimbra com campanha contra o abuso sexual de mulheres |
Teatro da Oprimida - Ato 25/11/14 |
Por isso a importância da data 25 de novembro como dia
Internacional pela Eliminação da Violência contra a Mulher. Este dia em Coimbra
não passou em branco. Durante quatro dias participei de um curso de Teatro da
Oprimida com a Judite da Marcha Mundial de Mulheres e um grupo de mais ou menos oito pessoas. Foram
dias intensos de desmecanização dos nossos corpos e busca por novas formas de
expressão de nossas lutas por libertação. Desse curso, tiramos um teatro Imagem
que apresentamos no dia 25 de novembro na Praça 8 de maio, no centro comercial
de Coimbra, associada a um ato manifesto.
Não pude deixar, claro, de lembrar em todo o momento das
Promotoras Legais Populares do Distrito Federal que formou a sua 10ª turma no
dia 29 de novembro. Como pude expressar virtualmente para esta turma, estar
aqui, participando destas experiências, me faz perceber que no mundo todo há
mulheres sofrendo violência, mas há também mulheres resistindo e lutando. E
compor a luta pelo seu enfrentamento pode até ser difícil, mas também muito
prazeroso. E o prazer está, em especial, no afeto e na alegria de descobrir por
todo canto novas companheiras.
Coimbra,
01 de dezembro de 2014,
Lívia
Gimenes Dias da Fonseca
segunda-feira, 24 de novembro de 2014
O dia em que Jorge Amado foi doutor na sala dos capelos
Patrick Mariano*
1. Dos trotes.
Foi Zélia quem atendeu o telefone. Jorge tirava um cochilo deitado sem camisa na área da casa do rio vermelho. O barulho do telefone o despertou aos trancos e barrancos. Olhou de esgueio para dentro da sala, investigando a dificuldade de Zélia em se fazer entendida naquele barulhento instrumento vermelho.
- Ora bem, é da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Precisamos falar com o senhor doutor Jorge Quélado.
- Jorge Amado?
- Sim senhora, Jorge Quélado, excelentíssimo senhor doutor catedrático da Universidade da Bahia.
- Mas o Jorge não é doutor da Universidade, mas sim escritor.
- Senhora, não sei me faço entender, mas por favor me passe o senhor Jorge Quélado, pois o magnífico reitor deseja falar-lhe.
Tentando pegar o fio da miada, Zélia chama o dorminhoco que já estava a brincar com os gatos, depois da sesta interrompida. Jorge, o Heitor ou Reitor de Coimbra quer falar com você. Te chamaram de doutor, professor, catedrático sei lá o que. Desconfio que seja trote do Carybé. Deve ter acordado agora e de ressaca e quis aproveitar a voz para me enganar.
Jorge deixou os gatos Ronaldo e Zelinha de lado e foi confiante atender o telefone. Se era o peste do Carybé, ele daria o troco.
- Alô, doutor Jorge Quélado?
- Seu vagabundo, ficou tomando cachaça ontem e agora quer fazer troça na minha cara paradescontar a de ontem. Diga, Carybé!
- Desculpe, senhor doutor, vai falar consigo o magnífico reitor António Calamandra.
- E desde quando bêbado tem nome de reitor?
Se era trote, Carybé inovou nos recursos, pois tinha a musiquinha que ele só ouvira quando ligava do gabinete do Governador ou do Presidente. Pensou que a trama não só envolvia Carybé como gente graúda da burocracia estatal.
- Doutor Jorge Quélado, em nome da Universidade de Coimbra, gostaria de convidá-lo para uma aula magna de início do calendário letivo. Tudo correrá por nossa conta. Peço-lhe que reserve uns dias a mais para conhecer a cidade e Portugal.
- Senhor reitor ou seja lá o que for, eu só aceito se puder levar aquele filho da puta cachaceiro do Carybé.
O teste saiu pela culatra.
- Traga quem o doutor quiser, será um prazer tê-lo por aqui e, da mesma forma, seus amigos. A secretária providenciará tudo. Datas e cronograma da viagem.
Jorge resolve dar um último truco no reitor.
- Vou levar também o Zé da Biriba que ontem cobrou cachaça a mais do safado do Carybé e o mestre Bimba, único cordão trançado e benzido na África.
- Doutor, como lhe disse, traga quem o senhor quiser. A secretária cuidará de tudo.
Quando ainda rolava as despedidas formais, surge na sala Carybé. O contraste entre o rosto de Jorge e a bermuda branca lembrava uma guia de Xangô.
Ao desligar o telefone, percebeu que o convite era sério e que teria que ir a Portugal. Zélia ainda ponderou se não poderia ser engano, mas Jorge, cheio de si, foi taxativo: é a pronúncia que é diferente, Zélia, eles não conseguem dizer amado. A língua se enrrola toda.
Seu puto, você que nos colocou nessa agora terá que viajar conosco para Portugal. O amigo que tremia só de falar em avião, disse um rotundo nem fodendo. A palavra ecoou por toda casa: nem fo-den-do!
2. Pelo ar ou pelo mar?
A tarde toda foi pra convencer Carybé da viagem de avião. Jorge adorava ver o amigo bravo. As recusas e os palavrões foram aumentando, aumentando e aumentando. Quem passava pelo portão tinha certeza que iriam sair no tapa. Quando Carybé atingia o ápice da raiva, Jorge se acabava de rir.
Zélia já sabia que nessa onda se passaria horas e horas sem desfecho. Resolveu acabar com a briga:
- Se Jorge só vai nessa palestra se você e os outros cacheiros aceitarem, vamos todos pelo mar e de navio!
Nem Jorge, muito menos Carybé, queriam ir para Portugal, mas a sentença de Zélia os deixou sem chão. Acabou o jogo. Estava decidido. Iriam todos de navio.
A surpresa agora se dava no outro lado do atlântico.
- Navio?
A secretária, encarregada pelo magnífico reitor para trazer a são e salvo o palestrante e sua corte, diante da quebra da lógica, convocou reunião extraordinária do Superior Conselho da Faculdade para tratar do tema.
A última vez que o Superior Conselho havia se reunido foi para deliberar sobre a troca dos sinos da Cabra . O dilema era se mandava ao conserto o sino da época do Rei ou se faziam outro mais moderno e que fosse capaz de dar 8 tipos de badaladas diferentes. Isso há dez anos atrás.
Um a um foram chegando os digníssimos Conselheiros. A cidade se alterou. Eram 27 ao todo e foram chamados às pressas ao portão de ferro. Na praça da república, aquele cortejo de carros pretos subindo em direção aos arcos despertava a curiosidade dos estudantes, bêbados e até dos cachorros que nada tinham que ver com isso. As capas pretas pareciam átomos a se debater umas com as outras de curiosidade.
A imprensa, claro, já estava ao portão de ferro com seus transmissores, luzes e geradores de energia. Quase todos entraram sem falar com a imprensa, menos Rui Costa, candidato da direita à sucessão do reitor. Desceu do carro, sorriso de modelo no rosto e o dom de ser simpático para as câmeras. Nem ouviu a pergunta da repórter e fitando a câmera disse:
- Queremos uma Universidade para nossos melhores cérebros. Sou pela cobrança de propinas e redução das vagas. Vou trabalhar para que aqui se formem gênios, obrigado.
Na pauta da reunião a viagem a polêmica viagem de Carybé. Quando o reitor deu as boas vindas e explicou o motivo da reunião convocada pela secretária em regime de urgência, um Conselheiro levantou a mão e se opôs a que se deliberasse algo dado que pelo art.14, somente um dos conselheiros tem o poder de convocar a dita da reunião.
Levaram 4 horas em debates hermenêuticos até que uma coisa fez todos concordarem: era hora do almoço.
A imprensa estava em polvorosa. Em razão da demora na deliberação, imaginando tratar de algo importante, passaram a transmitir direto. A repórter se esforçava para ter notícias. A imagem era a da sala do último andar do pátio. Vez ou outra um vulto passava, mas era só o café sendo servido. Como a transmissão era direta, uma pequena multidão tomava conta do pátio. Vendedores ambulantes foram proibidos de entrar, bem como bandeiras vermelhas.
Para distrair, uma entrevista com alguém da multidão.
- O que a senhora acha que eles estão decidindo lá em cima?
A senhora chinesa, com uma Nikon a tira colo, apontava para a biblioteca joanina, lugar em que fizera as últimas fotos de uma viagem que passou por Paris, Madrid, Lisboa e por algum motivo ainda não sabido do guia que bolou o passeio veio dar em Coimbra a sua excursão. A repórter então, imaginando ter um grande furo nas mãos:
- Vão derrubar a biblioteca joanina?
E a chinesa sorrindo, só balançava a cabeça.
Depois do almoço, alguns conselheiros dormiam na mesa. Eis que o reitor teve a sacada genial. Pegou o papel da convocação e assinou. Com isso, decidiram deliberar.
18 votos favor de pagar a passagem de navio para os brasileiros, 6, contra e, 3, se abstiveram.
Quando os conselheiros desceram as escadas uma multidão os aplaudia sem saber direito porque e uma profusão de flashes dava ao ato uma solenidade nunca antes vista. O reitor, objetivo e econômico com as palavras diz:
- Os brasileiros chegarão de navio!
Parecia um gol. A platéia entorpecida aplaudia e o reitor era abraçado.
Os brasileiros chegarão de navio foi a frase mais comentada da semana no tuíter.
Do outro lado do Atlântico, Carybé, Zé da Biriba e mestre Bimba jogavam sinuca no boteco sem saber que Coimbra havia parado por conta do medo de avião de um deles.
3. A expectativa.
Os jornais descobriram o telefone da casa do Rio Vermelho e ligavam aos montes pedindo fotos da comitiva. Zélia mandou a única de todos eles juntos. Uma do dois de fevereiro, logo depois de uma muqueca caprichada.
O dono do jornal ligou imediatamente para o reitor quando viu a capa com a foto.
- O senhor está louco? Estás a trazer 4 vagabundos do Brasil. Um sem camisa, outro dormindo com uma calça colada e um terceiro fazendo pose com uma garrafa de pinga. Isso lá é gente que se traga?
O reitor acabou com a conversa. Que são fotos, ó pá? Jorge Quélado é um catedrático, elaborou sozinho 5 Códigos no Brasil.
- O que o povo vai pensar da instituição? E ainda de navio? Olha, vou publicar críticas à vinda desses brasileiros, ó pá.
A ameaça do dono do jornal, da tv e das rádios não surtiu efeito algum. As aulas iriam começar e os brasileiros precisam chegar.
4. A chegada
Toda comunidade acadêmica esperava em Lisboa o navio que trazia Jorge Amado para fazer uma palestra a que foi, por engano, convidado.
Carybé, no entanto, convenceu a todos descerem no Porto, para conhecer uma cave de vinho e um antigo amigo baiano seu que lá trabalhava.
A visita durou dois dias e deixou a comitiva da Universidade desesperada. Para todo navio que chegava com bandeira brasileira se tocava uma música de recepção e se estendia um carpet com o brasão da casa de ensino. Todos desciam e nada do doutor Jorge Amado. Nisso se passaram dois dias até que o reitor decidiu voltar para tentar contato através do Consulado.
Foi o amigo de Carybé, Dindinho, quem os levou até Coimbra pelo comboio. Se despediram na estação e a trupe baiana ficou com as malas e ainda com a ressaca dos vinhos. Como não havia ninguém a esperar por eles, resolveram subir o morro e se instalar em uma pousada qualquer. A palestra seria no dia seguinte.
Como chegaram a tarde, deu para tirar um bom cochilo. Todos prontos no saguão do hotel e já iam saindo para jantar, quando o funcionário gritou: doutor Jorge?
Era o reitor da Universidade que, através de um antigo sistema da PIDE ao qual algumas autoridades ainda tinham acesso, conseguiu localizá-los.
- Prezado Doutor Jorge, ora bem, estamos com um jantar oferecido pela prefeitura de Coimbra a vossa comitiva, desculpe avisá-lo assim em cima da hora, mas já há um carro te esperando aí na saída do vosso hotel. Na volta, deixaremos vocês no melhor hotel da cidade.
Diante do sequestro relâmpago, não havia outra alternativa se não ir ao jantar. Ao chegarem no salão dos passos perdidos, Jorge ficou um pouco para trás do Reitor e foi barrado na entrada. Talvez pela sua camisa florida e bermudão. Desfeito o mal entendido, todos se deliciaram com um leitão à bairrada.
Vinho vai, vinho vem, eis que chega a hora do discurso.
A mesa tinha 22 metros de comprimento e lá estavam todos com ternos e gravatas. Alunos de capas pretas já haviam tocado um fado e declamado um texto para o autor de mais de 5 códigos no Brasil. O reitor se levanta e solta a voz.
- É uma imensa honra receber o professor doutor Jorge Quélado, digníssimo catedrático da Universidade da Bahia, autor de 5 códigos no Brasil e na América e discípulo de Rui Barbosa.
Quando o Reitor terminou de falar e os aplausos cessaram, o único barulho que se ouviu no salão foi a gargalhada de Carybé. Durou quase um minuto. Jorge mais uma vez corou e preferiu simplesmente dizer obrigado e pedir desculpas por terem que se ausentar mais cedo do jantar em razão do cansaço da viagem. Ganhou tempo.
De volta ao hotel, Carybé e Bimba que não se aguentavam de alegria ao ver Jorge na enrrascada, sugeriu de irem tomar uma para tirar o peso da situação. Havia acabado de chegar na cidade Glauber Rocha e João Ubaldo Ribeiro que vieram de Cintra para encontrar com a turma.
Contando a partir do Café Tropical, foram 4 bares e duas repúblicas pelas quais passaram. Assistiram no nascer do sol do Mondego e foram dormir. A palestra de Jorge seria às dezenove horas.
5. Na sala dos Capelos.
É a antiga sala dos reis. Agora era a sala dos baianos. Glauber não parava de falar, apesar dos cutucões de Ubaldo e Zélia. Carybé curtia os retratos dos reis e para passar o tempo rabiscava. Mestre bimba imaginava uma roda de capoeira no pátio lá fora. Era noite de lua cheia.
A sala era pequena e estava tomada só por professores. Lá fora, alunos aos montes. Foram instalados telões no pátio da Faculdade. Jorge pegou o microfone, agradeceu o convite do reitor.
- Senhor reitor, esse lugar aqui não é meu. Esse salão é para reis e doutores, eu sou apenas um baiano que tem na escrita uma forma de desassossego. Nunca escrevi um código, nunca ditei normas a quem quer que seja. Estou aqui por um grande engano das nossas línguas que são iguais, mas diferentes. Ali na platéia estão comigo Carybé, um dos maiores mestres da pintura e escultura do meus país, embora seja Argentino de nascimento. Ao seu lado o mestre Bimba que representa a beleza e o sofrimento do nosso continente irmão África. Irmão que fizemos através da dor e da escrividão, mas que por sua resistência fincaram em nós brasileiros a magnitude dos seus tambores, da sua dança, da sua culinária e da sua cultura. Sou filho de Xangô o rei da Justiça. Aqui é uma faculdade de direito, mas foi o direito que fundamentou a escrividão, que legitima a fome e a exclusão do outro. Antes de aqui entrar soube que há uma prisão dentro da Faculdade para os alunos. Me desculpe, senhor reitor, mas não se ensina aprisionando. Se queremos que a Justiça ocorra, nem seria preciso o direito. Mas se queremos que a verdadeira justiça ocorra, talvez tenhamos que prescindir do direito, dos códigos e das prisões. Ainda na platéia, o grande escritor João Ubaldo Ribeiro e o maior cineasta de todos os tempos, Glauber Rocha. Ontem, em uma das repúblicas pelas quais passamos, Glauber não entendia porque o uso das capas pretas e porque dessa diferenciação entre letrados e não letrados. Ficou ainda horrorizado com os trotes humilhantes. Se a justiça é a igualdade dos seres humanos, não entendemos porque as humilhações contra quem ainda nem bem chegou ao mundo das letras. Desculpe mais uma vez, senhor reitor, mas não vejo nesta sala alunos e muitas mulheres. Só autoridades homens. O alunos, razão de existir desse prédio todo, estão lá fora.
Nisso se ouviu um barulho enorme de palmas dos estudantes lá de fora. Dentro da sala o constrangimento era visível. Um dos direitores deu a ordem para que se derrubasse a anergia do prédio. Foi o aconteceu, de repente escuridão total. Jorge retoma o discurso. Glauber acende o esqueiro perto do corpo de Jorge Amado e agora as palavras e a imagem do baiano era ainda mais forte e impactante.
- Obrigado pela luz ter apagado. Não havia nada mais que falar aqui para vossas excelências. Vou ter lá fora com os alunos e alunas.
Saíram os baianos e mestre bimba passou a tocar berimbau. O cortejo foi atraindo gente, até os doutores seguiram atrás. Na sacada da faculdade, Jorge continou.
Agora, quem vai lhes falar é mestre Bimba, filho da nossa irmã África. Bimba se ergue, corpo escultural e expressão altiva e declama Castro Alves:
- São os guerreiros ousados que com os tigres mosqueados combatem na solidão. Homens simples, fortes, bravos hoje míseros escravos sem ar, sem luz, sem razão.
Quando Bimba termina o poema, toca o berimbau e canta cantos da sua terra e dos seus orixás. É noite de lua cheia que reflete nas areias do pátio da Faculdade da Direito. Lá embaixo o rio mondego desce manso.
- Meu nome é Jorge Amado, nunca fui doutor, assim como Saramago. Vejo em vocês não muito mais que vinte anos. Castro Alves escreveu esse poema com 22. Glauber fez Deus e o Diabo na Terra do Sol com 23. Mas vocês tem a chance de fazer não o direito. Nós não precisamos de leis, de códigos, mas de justiça. Foi o direito que permitiu a escravidão. É ele quem permite os muros de Israel e nos EUA. É o direito que permite Guantánamo e os horrores dos campos de concentração norteamericanos mundo a fora. Peço que os que tiverem de capa preta as estendam no chão, deitem sobre elas e olhem para a lua. Sintam a insignificância de todos nós perante o tempo e o universo. Letrado ou iletrado, estamos todos aqui vivos. Podemos fazer do nosso lugar um lugar mais justo e humano ou podemos deixar tudo como está. A escolha, como se diz por aqui, é vossa!
Jorge, Bimba, Glauber e toda a comitiva não conseguiram sair da Faculdade. Foram aplaudidos por minutos e minutos por todos. O reitor, de lágrimas nos olhos se ajoelhou perante Jorge que o virou para os seus alunos. Nunca mais se viu, depois da passagem dos baianos capas pretas a andar pelas ruas de Coimbra. Toda noite de lua cheia os estudantes organizam a Luarada em que todos vão ao pátio cantar e discutir revolução.
De Coimbra, a trupe foi para Cintra. Logo depois, Glauber faleceu, mas as imagens que filmou naquele dia histórico guardou num dos baús na casa do rio vermelho.
O título da fita de VHS era: Deus Bimba a lua e o Amado na terra do fado.
* Patrick Mariano é advogado da RENAP (Rede Nacional de Advogados Populares) e está em Coimbra cumprindo programa de Doutoramento. Ele integra o Coletivo Diálogos Lyrianos e é autor do livro "11 Retratos por 20 Contos".
domingo, 23 de novembro de 2014
Conversações de Erasmus: Carta da Noruega: o país das desigualdades reconhecidas
Ana Luiza Almeida e Silva *
Ao pensar na Noruega antes de viver aqui, seria automaticamente conduzida à ideia de isonomia. Pela minha experiência na Suécia, onde todos podem ser tudo, naturalmente seria levada a pensar que, aqui, o princípio da igualdade seria premissa máxima e que ações discriminatórias estariam fora de cogitação, em qualquer hipótese. Como uma maneira dinâmica e intensa de mergulhar em uma cultura, comecei a estudar norueguês, mesmo ciente do desafio de se aprender uma língua escandinava. Aqui, raramente se encontra alguém que não fale inglês e, em geral, eles têm pouquíssima paciência para suportar a gagueira mental de quem se arrisca no idioma – por isso o aprendizado se torna um desafio. Ocorre que, entender o norueguês é entender a diversidade e a não linearidade histórica da Noruega. Muito frequentemente me deparava com a dificuldade de compreender os sotaques de regiões diferentes daquela em que fui introduzida a língua. Apesar da nem tão vasta extensão territorial – quando comparado ao Brasil, por exemplo - a Noruega possui quatro dialetos oficialmente reconhecidos que, para fins didáticos, convergem na língua norueguesa formal, o Bokmål. Ao contrário do processo de uniformização linguística(forçada) promovida no Brasil, a Noruega é resultado de uma unificação de grupos regionais diversos que, devido ao tempo e a globalização, linguisticamente assemelham-se mais e mais a cada dia. Por algumas semanas insisti que a diferença linguística não alcançava níveis de distinção de dialeto, mas sim, apenas a diferenciação de sotaque, como em qualquer país marcado pela extensão territorial ou histórico de disputas políticas. No entanto, a cada dia que ligava a televisão, o rádio ou lia sobre a questão, entendia que reconhecer a diferença linguística consistia também em um ato de afirmação cultural. Em uma comparação simples, imagine ligar a televisão no canal de TV mais popular do Brasil e reconhecer sotaques do Rio Grande do Norte, Acre ou Rio Grande do Sul. Essa e a proposta de comunicação norueguesa, permitir a todos os espaço e reconhecimento cultural que merecem, tentando, ao máximo, evitar a “institucionalização” de um sotaque oficial, como ocorre no Brasil quanto ao sotaque do Rio de Janeiro (aqui falo sem qualquer parcialidade, pois sou carioca) O meu segundo choque com a “desigualdade” norueguesa também se refere a língua, mas se estende apolítica, economia e políticas sociais. Provavelmente você não sabe, mas a Noruega tem duas línguas oficiais: o norueguês e a língua Sami. Sami é um povo indígena internacionalmente conhecido pela sua luta por reconhecimento e, quando comparado com outros povos indígenas ao redor do mundo, pela implementação efetiva do princípio da autodeterminação. Não é preciso ir muito longe na história para reconhecer o passado de subjugação e assimilação forçada sofrida por eles. Logo ali, após a primeira guerra mundial, sob a justificativa de proteção de fronteiras e integridade territorial – especialmente quanto as fronteiras do Norte, sob ameaça Russa - a Noruega promoveu uma severa política de assimilação forçada que incluiu proibição do uso da língua nativa, envio de crianças para internatos para que recebessem educação nos moldes noruegueses e, principalmente, a estigmatização da cultura Sami. Foram necessárias mais que cinco décadas para que o movimento indígena fosse reconhecido e tais políticas fossem definitivamente eliminadas, mas esse tempo também foi suficiente para parcialmente dizimar a cultura Sami. Novas políticas de reparação foram iniciadas, especialmente no âmbito da educação. Um estatuto Sami foi estabelecido, sua condição indígena foi declarada e, finalmente, ao fim dos anos oitenta, um parlamento Sami foi criado. Trata-se de um órgão consultivo, no entanto, a importância política e a repercussão internacional que suas reivindicações têm, hoje em dia, são singulares e por isso suas decisões são levadas em consideração pelo Estado norueguês. Fato interessante é que, dada a dispersão do povo Sami durante os anos de assimilação forçada, muitos deles mudaram nomes, interromperam o uso da língua e abandonaram suas atividades tradicionais (predominantemente caça de renas). As políticas atuais de afirmação do povo Sami incluem cotas em universidades, órgãos públicos e, claro, a participação política, começando pela adoção da língua Sami em documentos oficiais, muito embora a maioria dos indivíduos Sami tenham domínio do Norueguês. Além do parlamento Sami, um canal de TV, uma estação de rádio e uma universidade Sami (com cursos voltados para sua cultura, como artesanato) também reafirmam o reconhecimento do histórico de subjugação e sua desvantagem social. Uma reação quase automática de um brasileiro seria atribuir tais conquistas ao fato de tratar-se de um Estado rico. De fato, a divisão do valor estimado do fundo norueguês de petróleo, hoje, tornaria cada cidadão um milionário , mas problemas comuns a movimentos sociais permeiam realidades distintas, seja na América Latina, na África, ou aqui mesmo na Noruega. Em conversas com alguns dos parlamentares Sami, as reclamações comuns quanto as restrições orçamentárias (hoje a verba destinada as políticas Sami somam aproximadamente 45 milhões de Euros), a especulação do setor extrativista sobre as terras indígenas e a falta de estrutura para a capacitação da população Sami. Quando se fala em capacitação, trata-se se capacitação cidadã, em que nas consultas às populações locais, por exemplo, para a instalação de empresas exploradoras de minério, as escolhas sejam feitas sob consentimento prévio, livre e informado. Todas essas questões nos são muito familiares e, como sabemos, extrapolam a esfera orçamentária, mas permeiam sobretudo um processo de emancipação política e cultural. A experiência na Noruega desponta em mim uma nova percepção sobre noções de igualdade e subjugação. Desperta novos questionamentos sob elementos econômicos, políticos e culturais, seja por um sistema fiscal progressivo que e capaz de deduzir até55% sob altos salários, ou pela noção de que a família monárquica trabalha para os cidadãos (ao questionar o sistema monárquico a cidadãos de outros países, como a Inglaterra, nunca ouvi tal argumento). Ter acompanhado as eleições brasileiras imersa na realidade norueguesa foi um exercício diário de entendimento de contradições em todos os discursos políticos (direita e esquerda, se e que elas realmente existem). Frequentemente ouvem-se estórias de noruegueses que optaram por trabalhar em outros países para fugir desse sistema de taxação “cruel” (alguns brasileiros chamariam de comunista). Trata-se de reconhecer as diferenças e trabalhar para amenizá-las e esse processo nem sempre é prazeroso. Em um discurso inflamado nas redes sociais, logo após a divulgação do resultado da eleição presidencial, li: “Todo mundo quer morar nos Estados Unidos, mas vota como se fosse Cuba”. Eu, que nunca tive a menor pretensão de viver o sonho americano(tampouco o norueguês), apenas concluía que reconhecer as diferenças exige coragem, sobretudo para sair da zona de conforto. Aqui o princípio da isonomia é relativo, a meritocracia não é absoluta, a e as disparidades sociais estão cada vez mais distantes.
*Ana Luiza Almeida participa do Programa de Mestrado Human Rights Policy and Practice, uma ação do consórcio entre universidades da Suécia, Reino Unido, Noruega e Índia. Suas cartas têmsido publicadas neste Blog desde que iniciou o programa (ver Cartas de Gottemburgo).
Ao pensar na Noruega antes de viver aqui, seria automaticamente conduzida à ideia de isonomia. Pela minha experiência na Suécia, onde todos podem ser tudo, naturalmente seria levada a pensar que, aqui, o princípio da igualdade seria premissa máxima e que ações discriminatórias estariam fora de cogitação, em qualquer hipótese. Como uma maneira dinâmica e intensa de mergulhar em uma cultura, comecei a estudar norueguês, mesmo ciente do desafio de se aprender uma língua escandinava. Aqui, raramente se encontra alguém que não fale inglês e, em geral, eles têm pouquíssima paciência para suportar a gagueira mental de quem se arrisca no idioma – por isso o aprendizado se torna um desafio. Ocorre que, entender o norueguês é entender a diversidade e a não linearidade histórica da Noruega. Muito frequentemente me deparava com a dificuldade de compreender os sotaques de regiões diferentes daquela em que fui introduzida a língua. Apesar da nem tão vasta extensão territorial – quando comparado ao Brasil, por exemplo - a Noruega possui quatro dialetos oficialmente reconhecidos que, para fins didáticos, convergem na língua norueguesa formal, o Bokmål. Ao contrário do processo de uniformização linguística(forçada) promovida no Brasil, a Noruega é resultado de uma unificação de grupos regionais diversos que, devido ao tempo e a globalização, linguisticamente assemelham-se mais e mais a cada dia. Por algumas semanas insisti que a diferença linguística não alcançava níveis de distinção de dialeto, mas sim, apenas a diferenciação de sotaque, como em qualquer país marcado pela extensão territorial ou histórico de disputas políticas. No entanto, a cada dia que ligava a televisão, o rádio ou lia sobre a questão, entendia que reconhecer a diferença linguística consistia também em um ato de afirmação cultural. Em uma comparação simples, imagine ligar a televisão no canal de TV mais popular do Brasil e reconhecer sotaques do Rio Grande do Norte, Acre ou Rio Grande do Sul. Essa e a proposta de comunicação norueguesa, permitir a todos os espaço e reconhecimento cultural que merecem, tentando, ao máximo, evitar a “institucionalização” de um sotaque oficial, como ocorre no Brasil quanto ao sotaque do Rio de Janeiro (aqui falo sem qualquer parcialidade, pois sou carioca) O meu segundo choque com a “desigualdade” norueguesa também se refere a língua, mas se estende apolítica, economia e políticas sociais. Provavelmente você não sabe, mas a Noruega tem duas línguas oficiais: o norueguês e a língua Sami. Sami é um povo indígena internacionalmente conhecido pela sua luta por reconhecimento e, quando comparado com outros povos indígenas ao redor do mundo, pela implementação efetiva do princípio da autodeterminação. Não é preciso ir muito longe na história para reconhecer o passado de subjugação e assimilação forçada sofrida por eles. Logo ali, após a primeira guerra mundial, sob a justificativa de proteção de fronteiras e integridade territorial – especialmente quanto as fronteiras do Norte, sob ameaça Russa - a Noruega promoveu uma severa política de assimilação forçada que incluiu proibição do uso da língua nativa, envio de crianças para internatos para que recebessem educação nos moldes noruegueses e, principalmente, a estigmatização da cultura Sami. Foram necessárias mais que cinco décadas para que o movimento indígena fosse reconhecido e tais políticas fossem definitivamente eliminadas, mas esse tempo também foi suficiente para parcialmente dizimar a cultura Sami. Novas políticas de reparação foram iniciadas, especialmente no âmbito da educação. Um estatuto Sami foi estabelecido, sua condição indígena foi declarada e, finalmente, ao fim dos anos oitenta, um parlamento Sami foi criado. Trata-se de um órgão consultivo, no entanto, a importância política e a repercussão internacional que suas reivindicações têm, hoje em dia, são singulares e por isso suas decisões são levadas em consideração pelo Estado norueguês. Fato interessante é que, dada a dispersão do povo Sami durante os anos de assimilação forçada, muitos deles mudaram nomes, interromperam o uso da língua e abandonaram suas atividades tradicionais (predominantemente caça de renas). As políticas atuais de afirmação do povo Sami incluem cotas em universidades, órgãos públicos e, claro, a participação política, começando pela adoção da língua Sami em documentos oficiais, muito embora a maioria dos indivíduos Sami tenham domínio do Norueguês. Além do parlamento Sami, um canal de TV, uma estação de rádio e uma universidade Sami (com cursos voltados para sua cultura, como artesanato) também reafirmam o reconhecimento do histórico de subjugação e sua desvantagem social. Uma reação quase automática de um brasileiro seria atribuir tais conquistas ao fato de tratar-se de um Estado rico. De fato, a divisão do valor estimado do fundo norueguês de petróleo, hoje, tornaria cada cidadão um milionário , mas problemas comuns a movimentos sociais permeiam realidades distintas, seja na América Latina, na África, ou aqui mesmo na Noruega. Em conversas com alguns dos parlamentares Sami, as reclamações comuns quanto as restrições orçamentárias (hoje a verba destinada as políticas Sami somam aproximadamente 45 milhões de Euros), a especulação do setor extrativista sobre as terras indígenas e a falta de estrutura para a capacitação da população Sami. Quando se fala em capacitação, trata-se se capacitação cidadã, em que nas consultas às populações locais, por exemplo, para a instalação de empresas exploradoras de minério, as escolhas sejam feitas sob consentimento prévio, livre e informado. Todas essas questões nos são muito familiares e, como sabemos, extrapolam a esfera orçamentária, mas permeiam sobretudo um processo de emancipação política e cultural. A experiência na Noruega desponta em mim uma nova percepção sobre noções de igualdade e subjugação. Desperta novos questionamentos sob elementos econômicos, políticos e culturais, seja por um sistema fiscal progressivo que e capaz de deduzir até55% sob altos salários, ou pela noção de que a família monárquica trabalha para os cidadãos (ao questionar o sistema monárquico a cidadãos de outros países, como a Inglaterra, nunca ouvi tal argumento). Ter acompanhado as eleições brasileiras imersa na realidade norueguesa foi um exercício diário de entendimento de contradições em todos os discursos políticos (direita e esquerda, se e que elas realmente existem). Frequentemente ouvem-se estórias de noruegueses que optaram por trabalhar em outros países para fugir desse sistema de taxação “cruel” (alguns brasileiros chamariam de comunista). Trata-se de reconhecer as diferenças e trabalhar para amenizá-las e esse processo nem sempre é prazeroso. Em um discurso inflamado nas redes sociais, logo após a divulgação do resultado da eleição presidencial, li: “Todo mundo quer morar nos Estados Unidos, mas vota como se fosse Cuba”. Eu, que nunca tive a menor pretensão de viver o sonho americano(tampouco o norueguês), apenas concluía que reconhecer as diferenças exige coragem, sobretudo para sair da zona de conforto. Aqui o princípio da isonomia é relativo, a meritocracia não é absoluta, a e as disparidades sociais estão cada vez mais distantes.
*Ana Luiza Almeida participa do Programa de Mestrado Human Rights Policy and Practice, uma ação do consórcio entre universidades da Suécia, Reino Unido, Noruega e Índia. Suas cartas têmsido publicadas neste Blog desde que iniciou o programa (ver Cartas de Gottemburgo).
quinta-feira, 20 de novembro de 2014
Carta a las y los jóvenes de México
Boaventura de Sousa Santos
Jóvenes de la ciudad de México se manifiestan en la caseta de cobro de la autopista México-Cuernavaca, en solidaridad con familiares de los normalistas de AyotzinapaFoto Yazmín Ortega Cortés
Me dirijo a todos mis amigos y a todas mis amigas de México. Si me permiten, me dirijo en especial a ustedes los jóvenes y las jóvenes de México.
Una conmoción atraviesa todo el mundo por el horror de la masacre de los jóvenes de la Escuela Normal de Ayotzinapa, Guerrero, y en particular por el horror de los detalles con que se ha cometido esta acción. Comprendo su gran angustia, rabia y perplejidad: ¿Qué tipo de sociedad es esta que permite que gente aparentemente normal como nosotros cometa crímenes tan detestables? ¿Qué Estado es este que parece infiltrado hasta los huesos por la narcoviolencia? ¿Qué democracia es esta que invita a la resignación ante enemigos que parecen demasiado fuertes para poder ser combatidos, mientras se aprueban leyes que criminalizan la protesta pacífica (como las leyes bala y mordaza)? ¿Qué policía es esta que es cómplice con la desaparición forzada y tortura de ciudadanos inocentes? ¿Qué política educativa es esta que persigue a la educación rural y no permite que estos jóvenes sean héroes por la vida comunitaria que promueven, sino mártires por la muerte horrorosa que sufren? ¿Qué comisiones de derechos humanos son esas que existen en ese país, que están ausentes y omisas ante crímenes de lesa humanidad mientras que los verdaderos activistas de derechos humanos son asesinados? ¿Qué mundo es este que sigue elogiando el Presidente de la Republica por el simple y único "relevante" hecho de haber entregado al imperialismo la última riqueza del país que restaba en manos de los mexicanos?
Sé que son demasiadas preguntas, pero lo peor que podría pasar sería que Ustedes se dejasen dominar por la magnitud de ellas y se sintieran impotentes. La contingencia de nuestra vida y de nuestra sociedad está dominada por dos emociones: el miedo y la esperanza. Sepan Ustedes que esta violencia desatada se dirige a su resignación, dominados por el miedo y, sobre todo, por el miedo de la esperanza. Los poderosos criminales saben que sin esperanza no hay resistencia ni cambio social. Sabemos que es difícil escapar al miedo en condiciones tan dramáticas como las que viven. El miedo no se puede eliminar, pero lo importante es no rendirse al miedo, sino tomarlo en serio para poder enfrentarlo y superarlo eficazmente, a eso le llamamos: Esperanza. Ustedes tienen la fuerza para salir de esta pesadilla, resistir a la ilegalidad y violencia institucionalizadas y construir una alternativa de esperanza. Para eso es necesario organización, respaldo popular y una clara visión no solamente política, sino también ética de una sociedad donde sea posible vivir con dignidad y en paz.
Hay varias opciones y no me sorprende que Ustedes las contemplen todas. Sé que algunos buscan criar zonas autónomas, libres de opresión y de dominación. Tales zonas liberadas son fundamentales como espacio de educación, para que Ustedes muestren unos a los otros que es posible vivir de manera cooperativa y solidaria para que cada uno y cada una pueda decir: yo soy porque tú eres. Pero más allá de las zonas liberadas es necesario enfrentar el poder político, económico y cultural que oprime y aterroriza. Para eso hay dos opciones básicas y estoy seguro que Ustedes analizan las dos con mucho cuidado: por un lado, la lucha armada, por otro, la lucha pacífica, legal e ilegal. Si me permiten, les digo que la historia muestra que la primera es irrenunciable solamente cuando no hay otra posible alternativa. La razón es simple: la lucha armada difícilmente tiene respaldo popular si obliga a sacrificar la vida para defender la vida. La pregunta es ¿hay espacio de maniobra para una alternativa pacífica? Humildemente pienso que sí porque la democracia mexicana, a pesar de estar muy herida y violada, está en nuestro corazón, como bien demuestran sus luchas contra tantos y sucesivos fraudes electorales. Miren la experiencia del sur de Europa, donde el desespero de los jóvenes está dando lugar a innovaciones políticas interesantes, partidos-movimientos que asumen internamente los procesos de democracia participativa, donde los rostros conocidos son voceros de procesos de deliberación muy creativos en que participan miles de ciudadanos y ciudadanas. Y subrayo, ciudadanos y ciudadanas. Lamentablemente, en muchos países, y México no es excepción, las tradiciones de lucha tienen estilos bastante autoritarios, estilos machistas verticales. Hay que profundizar a ese nivel la democracia participativa, sobre todo cuando sabemos que las mujeres han sido tantas veces blancos privilegiados de los sicarios. ¿Será posible en México un nuevo partido-movimiento organizado por las jóvenes y los jóvenes? Ustedes saben la respuesta. Mejor aún, Ustedes son la respuesta. No va ser fácil porque los señores del poder van intentar criminalizar su lucha pacífica. Hay que asumir el costo de la resistencia pacífica aunque ésta sea declarada ilegal, asumir ese riesgo en nombre de la esperanza. El miedo de la ilegalidad tiene que ser enfrentado con la convicción de la ilegalidad del miedo. Ahí está la esperanza.
Un abrazo solidario.