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quinta-feira, 17 de julho de 2014

Cotas para negros/as e indígenas na Pós-graduação em Direito da UNB: pluralidade e reinvenções epistemológicas.
Pedro Brandão*

Por proposta dos representantes do corpo discente da Pós-graduação em Direito da Universidade de Brasília, foi aprovado, por unanimidade, no Colegiado do curso, proposta de cotas para negros e indígenas na seleção de Mestrado e Doutorado da UNB. Trata-se da primeira Pós em Direito a adotar tais critérios.
A proposta foi defendida por representantes do corpo discente do PPGD/UNB e representantes do Movimento Negro e Indígena da Universidade. Ficou decidido que uma comissão formada por representantes daqueles movimentos, além de estudantes e professores, irá elaborar o edital já para a próxima seleção.
É absolutamente assustadora a ausência de negros/as e indígenas nos espaços de poder no Brasil. Recente censo do Conselho Nacional de Justiça demonstrou, por exemplo, que apenas 1,4% dos juízes/as são pretos/as, 14% pardos/as e 0,1% indígenas. As universidades brasileiras, que poderiam construir outra lógica por serem espaços de produção de conhecimento, também, são profundamente marcadas pela segregação racial e étnica.
É perceptível a ausência de negros/as e indígenas na Pós-Graduação e no corpo docente das instituições de ensino de nível superior. Apesar de não encontrarmos dados atualizados neste sentido, o Prof. José Jorge, em 1999, apontou que menos de 1% dos professores da UNB eram negros/as, número que se repete em outras universidades brasileiras [1]. São espaços onde a segregação é tão presente quanto nas arenas lotadas dos/as torcedores/as brancos/as nos jogos da Copa do mundo.
A adoção pioneira de cotas na pós da UNB reafirma o protagonismo da Universidade de Brasília, a primeira Universidade Federal do Brasil a aplicar cotas raciais e étnicas na graduação, em tornar o ambiente acadêmico um lugar mais plural e diverso. De acordo com a análise do sistema de cotas para negros na UNB, realizado pelo decanato de ensino, a Universidade tinha, em 2012, 41% de estudantes negros, o que representa mais que o dobro do que somava antes da política de Cotas. Enquanto, no Brasil, a quantidade de negros é 50%, e no Distrito Federal, é 56% (no entanto, o dado pode eclipsar as distorções da presença negra e indígena entre os cursos mais concorrido). No entanto, depois de dez anos de aplicação de cotas na Graduação, gerando resultados consideráveis para diminuição da desigualdade étnica e racial, é preciso dar novos passos.
É óbvio, porém, que numa sociedade marcada pela lógica colonial, haverá resistências à implantação da política de cotas. Para além dos argumentos usuais contrários à política de cotas, no caso da Pós-graduação, pode sobreviver um questionamento: se já há política de reserva de vagas na graduação, é necessário na Pós-graduação ?
Primeiramente, é importante destacar que enquanto a política de cotas sociais é implementada para amenizar a profunda desigualdade social em nosso país, a política de cotas raciais é, prioritariamente, para criar ambientes mais plurais, ou seja, fomentar a diversidade (nesse mesmo sentido, recentemente, o Congresso Nacional aprovou a política de cotas para negras/os no serviço público federal). Dito isso, as cotas para a graduação são insuficientes para neutralizar as diversas opressões que se operam na própria dinâmica da graduação e, também, devem orientar uma política acadêmica de formação de professores/as negras/os e indígenas.
No entanto, há uma dimensão esquecida na discussão em relação às cotas, que pretendemos resgatar rapidamente aqui, principalmente, no caso das Cotas para Pós, em que há um compromisso maior com a pesquisa e extensão.
Na nossa percepção, outra grande contribuição da política de Cotas na Pós-Graduação, especialmente para os povos indígenas, é possibilitar a formação de pesquisadores/as alinhados com temas tradicionalmente invisíveis da área jurídica. Os atores sociais envolvidos nas lutas por reconhecimento estarão diretamente envolvidos nas pesquisas. De objeto de pesquisa podem passar a sujeitos protagonistas das investigações acadêmicas.
O papel da academia, ao tempo em que ostenta o pretexto oficial de difundir conhecimento, pode atuar muito mais como sufocadora de outros conhecimentos possíveis, valorizando concepções elitistas e coloniais, a partir de imaginários totalizantes, em detrimento de compreensões de mundo historicamente marginalizadas, como o conhecimento popular, a cosmovisão indígena e a cultura negra.
Rita Laura Segato afirma que há um “racismo acadêmico” que impede a permanência e o acesso à academia de estudantes negros e indígenas. Para a autora, a partir de um caso concreto de racismo acadêmico contra um estudante da Unb, a diversidade na Universidade pode criar: “una inteligencia capaz de pensar desde otra posición en la historia y em la sociedade, a partir de otra perspectiva”[2].
Possibilitar, portanto, que outros conhecimentos eclodam nesse processo, através da política de Cotas, é também, como afirma a jurista mexicana Raquel Sieder: “[...] una critica al saber jurídico dominante monocultural, racista y exclusivo y um compromiso (...) de valorar las epistemologias o lós “saberes distintos” que historicamente han sido negados, discriminados y desvalorizados”[3].
O epistemicídio, noção compartilhada por Boaventura, indica o imenso desperdício das experiências cognitivas e a neutralização ou invisibilização dos conhecimentos produzidos fora de parâmetros pré-produzidos ou dominantes na academia[4]. Dessa maneira, a partir da proposta de cotas, o objetivo também é incentivar a pluralidade e a diversidade na produção acadêmica que permite a eclosão de outros conhecimentos possíveis na academia.
É preciso, permanentemente, inverter a lógica que guia boa parte da academia e questionar não apenas como a Universidade pode contribuir para os povos indígenas e afros, mas como esses Povos, seus conhecimentos e suas cosmovisões, podem contribuir para repensar a Universidade e a academia. É necessário, portanto, na linha do que propõe Cesar Baldi, para além de trabalhar com o conceito de "sujeitos de direito", cogitar o conceito de "sujeito de conhecimento", que envolve o processo pedagógico da reciprocidade entre ensino e aprendizagem entre os diferentes saberes [5].

E, nesse aspecto, é importante ressaltar que as Cotas para Pós-Graduação em Direito, além de intensificar o processo de pluralidade e a diversidade na Universidade, com a participação de sujeitos antes excluídos desses espaços, funda novas e criativas formas epistêmicas, a partir de setores que historicamente foram alijados da produção/aplicação do Direito, remodelando a própria perspectiva acadêmica a partir desses conhecimentos.        


                                                                                                      

[1] CARVALHO, José Jorge de. O confinamento racial do mundo acadêmico brasileiro. REVISTA USP, São Paulo, n.68, p. 88-103, dezembro/fevereiro 2005-2006.
[2] SEGATO, Rita Laura. "Brechas descoloniales para una universidad nuestroamericana". Revista Casa de las Americas. nº 266, enero-marzo/2012. pp.46.
[3] SIEDER. Rachel. Pueblos indígenas y derecho(s) en América Latina GARAVITO, César Roberto (org.). El Derecho em América Latina. Um mapa para el pensamiento jurídico del siglo XXI. 1º ed. Buenos Aires: Siglo Veintiuno Editores, 2011. p. 303-323
[4] SOUSA SANTOS, Boaventura de. Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia de saberes. IN: SOUSA SANTOS, Boaventura, MENEZES, Maria Paula (orgs.). Epistemologias do Sul. 2ª ed. CES (Conhecimento e instituições). 2010. p. 52. 
[5] BALDI, Cesar. Abrindo caminhos à imaginação jurídica. ALICE. [8 de Janeiro de 2014]. Entrevista disponível em:http://alice.ces.uc.pt/news/?p=2985                                                                                                                     

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