Aline Furtado
(*)
Um retrato das sutilezas dos encontros. E assim
como um retrato é imagem pintada, semelhança verificada, descrição de uma
realidade, este relato é a minha pintura para e sobre uma tarde de diálogos
lyrianos. Por isso, é das coisas sutis que falarei, a começar pelo tempo –
chuvoso, o que inicialmente poderia ser um elemento de resistência ao ato de
sair de casa, e claro, não só pela chuva, mas também pelo dia – domingo (23 de
março de 2014, para fins de registro). Porém, havia um outro elemento que
mobilizava e parecia alegrar as pessoas (no decorrer dos dias que antecediam ao
encontro através da lista de e-mails), o que, para mim, era só uma sensação, a
qual só pude constatar mais tarde. Tal elemento, referia-se ao lugar de
encontro, qual seja, a “Casa da Carol”, na cidade de Brasília, no Distrito
Federal.
Duas informações
importantes, a primeira, diz respeito às aspas da “Casa da Carol”, nesse caso,
o lugar e sua disposição afetiva deram a tônica dos encontros (lyrianos). E lá,
descobri o porquê da alegria de ir à Casa da Carol, é que lá era também a Casa
do Dimitri e a Casa do Lucas. A segunda, envolve situar a cidade de Brasília,
no meu caso específico, que estou em trânsito e não sei por quanto tempo, falar
que sou de “outro” lugar é uma experiência recente, e ajuda a entender as cores
desta pintura – dos primeiros encontros, e até, desencontros culturais, um
assunto para outra hora quando for tratar das
sutilezas dos deslocamentos, ou “das diásporas”.
De repente,
pensei – neste relato lyrico, em que “nada é, num sentido perfeito e acabado;
tudo é, sendo” (LYRA FILHO, 1982:6) corro o risco de me exceder nos
detalhes, nos sentimentos e até nas informações, mas de outra forma, não será
possível situar esta narrativa. Dada esta explicação, um respiro aliviado e o
conforto da escrita catártica, de quem não precisa seguir a forma – e ironicamente
já seguiu, fazendo, inclusive citações. (risos)
Antes da
descrição do encontro, preciso falar de duas pessoas, as quais chamarei de
pessoas-elo, visto que foram elas que me colocaram em contato com o grupo e
estão a me abrigar nesse momento. E também porque simbolicamente é um casal,
destes, que somente o Direito que se acha nas ruas, é capaz de unir. Então,
foram eles, Lívia e Dimitri, responsáveis por este primeiro contato.
De volta ao
encontro. Uma memória do primeiro contato visual com “a Casa”, o locus afetivo. A casa está situada em um
condomínio, se não há engano de minha parte, localizada no Altiplano Leste, o
que para mim traz muitas incertezas, às vezes, duvido que o Norte seja o Norte
e o Sul seja o Sul, dada a precisão da localização, fico a duvidar do meu senso
de direção, desacostumado com o desenho da cidade. E cá estou, mais uma vez,
in(conscientemente) a fazer uma fala que ressalta o olhar estrangeiro. Chegando
à casa, uma das coisas que me chama atenção é a porta aberta, a qual parecia
dizer:- Entrem! Fiquem à vontade! Uma casa simpática de madeira, cercada de um
verde típico dos períodos chuvosos, e cheia das sutilezas de uma casa lúdica e
com crianças, portanto, uma casa cheia de detalhes acolhedores, como quem foi
preparada com muito carinho para aquelas presenças – e o foi. E aqui, afirmo,
tanto pelo testemunho visual dos pequenos cuidados, como também por relato da
própria Carol sobre o seu empenho para com a recepção.
Eu parecia estar
com um dispositivo de atenção ligado, - típico de quem chega, tanto pelo espaço
novo, quanto pelas pessoas novas. No entanto, a cada detalhe a sensação de
estar em casa foi aumentando. As conversas descontraídas e fluidas regadas a
cafezinho. Confesso, o cafezinho já me ganhou. Porém, a novidade era a sala!
Para os que a conheciam, porque antes não era daquele jeito, e para mim, o fato
de ter que descer uns degraus (poucos degraus) me deixaram bastante à vontade,
e aquele desnível me disse, pela segunda vez: - Entre! Chegue mais um pouco! Devagar, os primeiros re(encontros). Avistei
logo Diana e João Francisco, e o clima estava familiar. Companheira de AJUP e
também de ludicância, referência de militância nas épocas de movimento
estudantil, e também posteriormente, e agora serei clichê, por ter que visibilizar
suas escolhas e construções que a tornam essa mulher guerreira - pela sua
coragem e força diárias, e agora mãe do João Francisco, uma das presenças
ilustres desse domingo.
Vi pessoas que
não conhecia, mas também pessoas que conhecia como o Tuco, (ou Antônio
Escrivão, o nome próprio que o camufla, vez ou outra), o Rodrigo (Mesquita,
para os íntimos como vim a saber hoje, para mim, amigo de Ornela), o José
Geraldo, (Ou Zé, ou aquele que por suas vivências e experiências merece escuta
qualificada) a Carol (mestranda do Direito, a de Uberlândia, e para mim, amiga
da Andréa), o Rafael (da AJUP, e o da carona até Goiás Velho), o Dimitri (o
Graco, ou o advogado de boa parte das pessoas que estavam na reunião, e o
companheiro da Lívia). Entre as pessoas conhecidas nesse domingo, a Carol (a
dona da Casa, a mãe do Dimitri, uma das fundadoras das Promotoras Legais
Populares – ou PLP’s, companheira do Lucas e tantas outras funções), o Dimitri
(o anfitrião simpático, presença ilustre, filho da Carol e do Lucas), a Raquel
(baiana, que integrou o SAJU-BA, mestranda do Direito), O Fredson (ou Fred,
baiano, mestrando do PPGDH, integrou o SAJU-BA), o Lucas (o engenheiro agrônomo
de formação, aquele que se preocupou com os muros da Universidade e a
incomunicação - do Extramuros, pai do Dimitri e também dono da casa) e Judith,
que chegou um pouco depois, com sua áurea alegre e com sua presença firme.
Algumas pessoas
sabiam porque estavam ali, outras, talvez ainda não soubessem, mas estavam
muito abertas a saberem. Era o primeiro dia de encontro, tanto dos que já
dialogam lyrianamente, quanto dos que estavam a chegar. E, naturalmente, a
conversa foi tomando forma. Zé (essa proximidade eu devo ter aprendido com a
Lívia, que o chama assim) com sua paciência marcante tratou de sugerir que
alguém pudesse assumir o lugar de uma condução, coordenação e relatoria da
reunião. Carol e Dimitri compartilharam essa condução. E assim – em disposição
circular e aconchegante – o lugar acolhia com almofadas coloridas, tapetes,
colchão e piscina de bolinhas. As trajetórias vivas estavam ali, pulsantes e
pedindo partilha... e assim foi a rodada de apresentação, que reforçou em mim o
sentimento de que uma “carreira profissional” é sim, uma trajetória social,
cada um, cada uma falou de suas trajetórias, interesses, projetos e
expectativas vindouras.
As motivações de
encontro eram várias, que iam desde uma formação comum no direito, com exceção
do Lucas, com interesses e princípios que regem as posturas políticas de cada
um, cada uma, que também vem dos mais diversos lugares, Bahia, Piauí, Ceará,
São Paulo, Minas, Distrito Federal, que, por sua vez, acreditam nas
transformações sociais, que trabalham/militam por um cotidiano de prática
efetiva dos direitos humanos, que lutam pela legitimidade dos direitos achados
na rua e de seus sujeitos, que tecem diariamente práticas emancipatórias, que
tentam fazer dos espaços segregadores e violadores um espaço de junção, de respeito à diferença, de acesso,
um lugar com espaço pra compartilhar.
A cada relato, a
cada vivência experienciada, o sentimento que junta pessoas em torno de um
sonho comum, uma miscelânea. E exatamente, essa obra composta de escritos
diversos sobre os mais variados assuntos, traz a força necessária para seguir,
e Gonzaguinha cantarolava em meus pensamentos, e reforçava a coletividade que
há em nós, e – aprendi que se depende sempre, de tanta, muita, diferente gente e que toda pessoa sempre é as marcas das
lições diárias de outras tantas pessoas. E é tão bonito quando a gente
entende, que a gente é tanta gente onde quer que a gente vá, e é tão bonito
quando a gente sente que nunca está sozinho por mais que pense estar. – e somente, com o passar da reunião, ia conseguindo entender a proposta
do grupo diálogos lyrianos, como
esse lugar que une pesquisadoras e pesquisadores, lutadoras e lutadores,
sonhadoras e sonhadores, que agrega experiências diversas e potencializa ações
a partir desse lugar, com uma referência a obra de Roberto Lyra Filho e seu
potencial mobilizador. Então, minha impressão é a de que o grupo não se define
como um grupo de pesquisa, mas cumpre esse papel de agregar sim pesquisas,
temas e debates a partir Lyra Filho.
Entre um relato e outro, o cuidado com as presenças vivificantes de João
Francisco e Dimitri, que também em seus dialetos contribuíam e reanimavam os
debates, entre uma bola e outra, uma proposta. Alguns resgates foram feitos no
sentido de somar esforços para alguns encaminhamentos para este ano de 2014,
propostas editoriais, leituras debatidas sobre pluralismo jurídico, movimentos
sociais, questões de gênero, assessoria jurídica popular, descolonização,
direitos humanos, questões de gênero, as relações e a colonialidade do poder, e
a alegria de alguns e algumas mais antigos/as de poder socializar e espalhar
pro mundo os escritos de Lyra.
Seguia-se um fluxo animado de ideias, trocas, e propostas. A comunicação
– falava Zé Geraldo, acontece em três dimensões, o blog, o facebook e a lista
de e-mails, estes espaços precisam ser fortalecidos. Em meio as estratégias de
comunicação, o olfato foi despertado pelo cheiro dos pães de queijo, e a
conversa sempre entremeada com a vida da casa viva, nome dado por Zé Geraldo à
Casa da Carol, não parava. Judith traz pães de queijo e suco, Carol tira dúvidas
do debate – diretamente da cozinha, João Francisco, de joelhos aos pés do Zé, o
observa atento. Carinhosamente, todas e todos estavam imersas/os naquela tarde.
A curiosidade, o repasse dedicado, os informes e os planos para atuação do
grupo, para este ano de 2014.
Assim, findava uma tarde de diálogos lyrianos, encontros e reencontros,
ânimos renovados, e uma agenda mínima para o grupo. Sobre as atividades, sobre
o pertencimento, sobre os encaminhamentos, sobre o fazer-ser-parte lyrica dessa
proposta é uma construção diária que se potencializa no grupo mas vai além. Que
esse retrato sentido, seja antes, mais um fio condutor dessa construção, no
sentido de vivificar a memória de que as reuniões e o movimentar-se pode se dar
de uma forma lúdica, sensível e solidária.
(*) Aline Furtado integra o
programa de pós-graduação do CEPPAC (Centro de Estudos para as Américas e
Caribe, do Instituto de Ciências Sociais, da UnB).
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