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quarta-feira, 12 de março de 2014

A Quem Ofende a Liberdade das Mulheres?

Lívia Gimenes Dias da Fonseca, doutoranda em Direito pela Universidade de Brasília, integra o coletivo Promotoras Legais Populares e Diálogos Lyrianos da UnB. Este texto foi originalmente publicado no Blog Carta Maior, editoria Princípios Fundamentais.

O avanço dos debates sobre o aborto esbarra na atual prática política estatal, sujeita a um fundamentalismo que reduz a discussão à moral religiosa.


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“Ela é tão livre que um dia será presa. ‘Presa por quê?’ ‘Por excesso de liberdade’. ‘Mas essa liberdade é inocente?’ ‘É’. ‘Até mesmo ingênua’. ‘Então por que a prisão?’ ‘Porque a liberdade ofende’.” Clarice Lispector (...) In: Um Sopro de Vida: (Pulsações),8a. ed. Editora Nova Fronteira, 1978, p. 66.

O dia 8 de março é uma data marcada para lembrar que nem tudo são flores na vida das mulheres. E neste ano com a proximidade das eleições presidenciais, a preocupação é em relação ao uso político que se possa fazer do direito ao aborto como ocorreu nas últimas eleições, em 2010, quando esta discussão foi colocada como ponto central de definição da escolha de representantes.

As consequências disso, para além da perda de uma oportunidade de discussão de outras pautas essenciais para a melhoria de vida da população do país, foi o fortalecimento da intervenção do discurso religioso na política e, principalmente, na definição de limites aos direitos reprodutivos das mulheres.

Em que pese o avanço da aprovação legal do regulamento do atendimento de mulheres vítimas de estupro nos sistemas de saúde, que ocorreu mesmo com a ofensiva conservadora que pedia seu veto, há atualmente cerca de 34 projetos de lei que tratam do tema aborto, sendo destes 31 apresentam retrocessos a legislação vigente, conforme levantamento da ONG Cfemea (2013). Destacam-se as propostas do Estatuto do Nascituro e a criação da “bolsa estupro” (PL 478/2007), a inclusão do aborto ilegal na lei de crimes hediondos (PL 4703/1998) e como crime de tortura (PL 2.423/1989). Ainda, está em debate o requerimento de uma CPI do aborto (RCP 21/2013) que entre outras coisas quer “investigar a existência de interesses e financiamentos internacionais para promover a legalização do aborto no Brasil”.

Esses projetos são oriundos da bancada que compõe a Frente Parlamentar Mista em Defesa da Vida - Contra o Aborto composta hoje por 178 congressistas, que representam quase 30% do Congresso Nacional. Fazem parte desta frente inclusive integrantes da base do atual governo, como o líder do PMDB Eduardo Cunha, autor de três projetos de lei contra o aborto, e o deputado Assis Couto do PT que foi eleito recentemente como presidente da Comissão de Direitos Humanos no lugar do deputado pastor Marco Feliciano. Esta bancada se amplia ainda mais na Frente Parlamentar em Defesa da Vida e Preservação da Família composta por 197 congressistas.

Apesar da criminalização do aborto recair somente sobre as mulheres isto não impede que elas realizem o aborto inclusive como opção de planejamento familiar quando o método contraceptivo não funciona, conforme dados da Pesquisa Nacional do Aborto, realizada sob a coordenação da professora Débora Diniz (Revista Ciência e Saúde Coletiva, 17, UnB, 2010). Esta pesquisa revela que uma em cada cinco mulheres brasileiras faz pelo menos um aborto até os 40 anos, o que representaria 5,3 milhões de mulheres, sendo que mais da metade das jovens adultas que moram nas Regiões Sul e Sudeste e que abortaram declaram ter utilizado algum método contraceptivo.

Tampouco parece que este fundamentalismo religioso seja representativo de todas as mulheres que optem pelo exercício de uma fé espiritual, pois, segundo a mesma pesquisa, 88% das mulheres que abortam são adeptas a alguma religião, sendo 65% católicas e 25% protestantes.

Em relação ao efeito criminalizante da atual legislação, uma pesquisa da UERJ aponta que o sistema captura quase somente mulheres pobres que necessitam do sistema de saúde pública e penaliza de forma desproporcional mulheres de distintas condições socioeconômicas (Mulheres incriminadas por aborto no RJ: diagnóstico a partir dos atores do sistema de justiça, IPAS, 2012).

Todavia, o mais preocupante em relação ao discurso criminalizante do abortamento não é a sua ineficácia ou caráter antidemocrático, mas o fato de que atenta diretamente à vida das mulheres, principalmente das mulheres pobres e negras. A Pesquisa Nacional do Aborto apresenta que o método mais adotado na prática do aborto é o Cytotec (misoprostol) no qual em 55% dos casos as mulheres precisam ser internadas para finalizar o aborto, sendo que “das que abortaram em clínicas privadas, 93% não necessitaram de internação hospitalar. Considerando todos os métodos, para cada mulher branca internada para finalizar o aborto, foram internadas três negras” (Diniz, UnB 2010).

Segundo o Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA), a estimativa de razão de morte materna no caso do Brasil, entre 1990 e 2010, caiu para 56 por 100 mil nascidos vivos, número ainda insuficiente para cumprir com o 5º Objetivo de Desenvolvimento do Milênio que estabelece uma redução de 75% em relação aos dados de 1990. Isso coloca o Brasil em 79º lugar no ranking de maior taxa de mulheres mortas durante a gravidez e o parto, ou no pós-parto, empatado com a Tunísia, entre 188 países e territórios.

Enquanto isso no Uruguai, desde 2012, as mulheres passaram a poder optar pelo aborto após atendimento por um comitê formado por ginecologistas, psicólogos e assistentes sociais que informam sobre riscos e alternativas. Ao longo do primeiro ano após a descriminalização foram registrados 6.676 abortamentos, sem que nesse período houvesse mortes maternas devido à prática do aborto, além da queda do número de abortos que se estabeleceu em 9 a cada mil mulheres de 15 a 44 anos, taxa que coloca o país entre os lugares com menos abortos do mundo. O país é também o terceiro da América com menor mortalidade materna, atrás apenas do Canadá e dos Estados Unidos (Agência EFE, 25/02/2014).

Isso demonstra que para a efetividade dos direitos reprodutivos é necessária a adoção de uma política pública de saúde que envolva a promoção da educação sexual de maneira ampla, com preparação de profissionais de saúde que saibam fornecer orientação solidária, adequada e inteligível a qualquer pessoa, com fornecimento de métodos contraceptivos de forma gratuita, garantido a liberdade de escolha das pessoas e observando que a responsabilidade pelo uso de algum método é de homens e mulheres em igualdade, algo que aos poucos o Brasil vem realizando com base na Constituição Federal (art. 5, II e art. 226, § 3º e § 7º) .

Mas a efetividade estará incompleta e o Brasil continuará mantendo altos índices de mortalidade materna enquanto não se abrir para as orientações internacionais como as das Plataformas de Cairo (1994) e de Beijing (1995) que colocam como ações considerar o abortamento como importante problema de saúde pública (§ 8.25, Cairo) e a possibilidade de reformar as leis que preveem medidas punitivas contra as mulheres que realizem abortamento (§ 106 k, Beijing).

Entretanto, o avanço dessa discussão esbarra na atual prática política estatal cada vez mais sujeita a um fundamentalismo religioso que reduz a discussão da legalidade do aborto à moral religiosa, ameaçando o princípio democrático da laicidade do Estado. Isto impede a ampliação do debate dos direitos reprodutivos para a diversidade de grupos e que seja feita dentro dos marcos dos direitos humanos consolidados pela Constituição Federal e pelas declarações e convenções com as quais o Estado Brasileiro se comprometeu.

A proteção dos direitos reprodutivos aliados à dignidade plena da mulher na sociedade brasileira ainda depende do reconhecimento da sua autonomia de decisão sobre o seu corpo independente a quem esta liberdade ofenda.

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