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segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

A VAQUINHA E A CONSTITUIÇÃO

Fábio de Sá e Silva (*)

Desde que teve início o julgamento da Ação Penal 470, o chamado processo do “mensalão”, bate-bocas em plenário e duras críticas aos pares por meio de veículos da grande imprensa já haviam cuidado de sepultar a liturgia que deve caracterizar os trabalhos dos Ministros do STF, enquanto integrantes do órgão de cúpula do poder judiciário.

Frente ao sucesso das “vaquinhas” voltadas à arrecadação de verbas para o pagamento das multas penais fixadas naquele processo, notadamente a do ex-parlamentar e ex-presidente do PT, José Genoíno, o Ministro Gilmar Mendes parece não ter resistido em oferecer mais uma contribuição para essa crescente desfiguração.

“Está tudo muito esquisito,” disse Gilmar em referência à arrecadação. “E se for um fenômeno de lavagem? O Ministério Público precisa olhar isso”.

A frase de Mendes incendiou a blogosfera e ensejou rápida resposta do Senador Eduardo Suplicy. Em carta enviada ao Ministro, Suplicy não apenas declarou ter sido um dos doadores ao lado de outras figuras públicas, como o ex-Ministro do STF Nelson Jobim, como também defendeu os procedimentos para a coleta das doações, registrando que os “documentos que comprovam tudo quanto por ora se afirma estão à disposição da Justiça, e, comprovarão, de forma inequívoca, a precocidade e inconveniência de declarações dadas no calor dos debates”.

Gilmar perdeu nova chance de guardar o silêncio litúrgico próprio do cargo e enviou resposta a Suplicy.

Desta vez, além de reiterar o entendimento de que, mesmo do alto do plenário da Suprema Corte, lhe é legítimo “perquirir a respeito das movimentações financeiras dos condenados... em proveito da transparência e da dignidade da lei penal e do Poder Judiciário,” o Ministro ainda desafiou o Senador a “liderar o ressarcimento ao erário público das vultosas cifras desviadas”.

A tese de que as “vaquinhas” para o pagamento das multas penais poderiam ocultar qualquer prática de lavagem de dinheiro não resiste a qualquer escrutínio básico da razão. Afinal, se há valores desviados ou sonegados que transitam por mãos próximas às dos condenados, o que os envolvidos nisso ganhariam em canalizar o dinheiro para os cofres públicos – destino último, pois, das multas penais?

De um ponto de vista prático, a lavagem de dinheiro só faz sentido se der aparência de legalidade a valores dos quais se possa usufruir de maneira direta e imediata. O pagamento da multa não “libertaria” os réus; ao passo que seria muito mais racional deixar o dinheiro rendendo em algum lugar ou abastecendo algum outro negócio, para usufruir dele depois, em liberdade. Dispor do dinheiro de modo definitivo e sem obter nada objetivo em troca pode merecer outras suspeitas, como a de altruísmo ou loucura, mas jamais o de lavagem.

Mas Gilmar não parou aí nas suas considerações críticas.

Na resposta a Suplicy, o Ministro argumenta que a alegada falta de transparência apenas torna “mais questionável procedimento que, mediando o pagamento de multa punitiva fixada em sentença de processo criminal, em última análise sabota e ridiculariza o cumprimento da pena – que a Constituição estabelece como individual e intransferível – pelo próprio apenado, fazendo aumentar a sensação de impunidade que tanto prejudica a paz social no País”.

Tais preocupações não apenas animam debates epistolares, mas já encontram eco no Parlamento. Na Câmara, o Deputado João Campos (PSDB-GO) – autor de proposições com forte conteúdo moralista e polêmico, como a da “cura gay” e a da criminalização da prostituição – correu a dar entrada no PL 7123/2014.

Segundo o texto desse PL, “é vedada, no pagamento da multa aplicada ao condenado, a utilização de recursos, bens ou direitos provenientes de terceiros, pessoas físicas ou jurídicas, personalizadas ou não, entidades sindicais, associações, partidos políticos ou fundações, públicas ou privadas, sejam eles advindos de doação ou qualquer outra forma de ato ou negócio jurídico”.

“O inciso XLV do artigo 5º da Constituição Federal institui o princípio da intranscendência da pena ao dispor que ‘nenhuma pena passará da pessoa do condenado, podendo a obrigação de reparar o dano e a decretação do perdimento de bens ser, nos termos da lei, estendidas aos sucessores e contra eles executadas, até o limite do valor do patrimônio transferido’,” afirma o parlamentar na justificativa para essa nova proposição.

Esse antecedente, no entanto, está longe de levar ao consequente almejado por ele e por Mendes.

O princípio da intranscendência da pena surgiu como forma de proteger terceiros que nada têm a ver com o crime de que o réu é acusado. É bom lembrar que ele remete a um tempo no qual as penas não recaíam apenas sobre os réus condenados, mas também aos seus familiares, amigos e descendentes de muitas gerações.

Trata-se, assim, de uma forma de proteger terceiros alheios à prática do crime contra o exercício – a esta altura já considerado ilegítimo – do poder do Estado. Jamais uma forma de blindar os condenados por crimes de qualquer forma de apoio desses terceiros no cumprimento das penas que lhe foram impostas.

Quem pretende defender “a dignidade da lei penal e do Poder Judiciário” deveria se preocupar essencialmente sobre se as penas de multa cominadas na ação do “mensalão” estão ou não sendo cumpridas, pois a “sensação de impunidade” de que fala Mendes vem da tendência contrária: são os inúmeros réus do país, no cível e no criminal, que transferem e ocultam patrimônio a fim de que jamais possam ser responsabilizados.

“Perquirir” inquisitorialmente de onde os réus obtêm dinheiro para cumprir uma obrigação penal – e, pior que isso, tentar proibir que estes procurem levantar dinheiro para fazê-lo por meio de doações ou mesmo de empréstimos (“qualquer outra forma de ato ou negócio jurídico”), como quer Campos – é colocar “a lei penal e o Poder Judiciário” em segundo plano, em nome de outros interesses, como o da estigmatização permanente dos condenados. Esse, sim, o verdadeiro fantasma que as reformas penais do século XVIII, em vão, tentaram enfrentar.

Afinal, enquanto for possível dizer que esses réus “devem” à sociedade, será sempre mais fácil justificar o porquê de alguns deles cumprirem pena em regime mais gravoso do que o que foram condenados – sem ter acesso, por exemplo, ao trabalho externo  –, ou o porquê de outros condenados no mesmo processo ainda estarem soltos, ou ainda o porquê de processos idênticos ao do “mensalão” estarem sendo desmembrados, ao contrário do que ocorreu nesta ação.

O que faz “vaquinhas” de apoio aos petistas “profanas” aos olhos de gente como Mendes, em suma, é o fato de que, assim como a sua correspondente da música de Caetano, elas e seus colaboradores ousaram “por os cornos pra fora e acima da manada,” rompendo com a expectativa de exclusão permanente dos réus da vida pública e política que muitos depositavam sobre aquele processo. Sobrou, como na música, uma boa dose de leite derramado na cara dos caretas. É leite bom, porque consistente com princípios fundamentais ao progresso histórico das punições. Ainda que alguns sejam ou tenham se tornado caretas demais para conseguir compreendê-lo.

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Em tempo:

Em nome de amizade antiga com Miruna Genoíno, que conheceu durante sua graduação na USP, o autor deste artigo emprestou à família desta algumas horas de sua força de trabalho para ajudar a gerir a caixa de e-mail pela qual os doadores enviavam comprovantes, além de dados como RG e CPF.

Além de apagar os quatro ou cinco e-mails ofensivos recebidos, a tarefa que lhe foi incumbida consistia em montar uma planilha com os nomes, valores e dados pessoais dos doadores para instruir as devidas prestações de contas. Era ainda o começo da “vaquinha”, mas apenas naquele dia o saldo apurado foi de quase R$ 30 mil. A média das doações foi de R$ 294, e os doadores envolviam desde militantes humildes, que enviavam comprovantes de R$ 1,00 por “Lan Houses”, até políticos de partidos da oposição.

Com base, portanto, nesse conhecimento de primeira mão, somo-me ao Senador Suplicy, atestando a higidez da campanha e o caráter absolutamente sincero e solidário das doações ao ex-parlamentar e ex-presidente do PT.

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(*) PhD em Direito, Política e Sociedade pela Northeastern University (EUA). As opiniões expressas neste artigo são de caráter estritamente pessoal. Participa dos "Diálogos Lyrianos". Este texto foi originalmente publicado no Blogue da Carta Maior, na Seção Princípios Fundamentais, da qual o autor é o editor.

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