Daniel Vila-Nova
Numa sociedade em que práticas
interpretativas são um experimento que busca no “Direito Achado na Rede” (Paulo Rená da Silva Santarém), uma
das formas de expressão “lyriana” do “Direito Achado na Rua” (José Geraldo de Sousa Júnior), o “debate público”
precisa ser percebido a partir de “seus fragmentos” e inúmeras “verdades
estilhaçadas”. Qual uma obra do cubismo analítico, de George Braques ou de Pablo
Picasso, a “verdade” está “por todas as partes” e não somente num “só lugar”.
Curiosamente, dois recentes incidentes
na sociedade brasileira, que tem movimentado opiniões e ideias, trazem
interessantes percepções para nossa esfera pública. Em ano de eleições gerais e
de Copa do Mundo no Brasil, os “ecos platônicos” continuam a reverberar por
meio de sombras e luzes que “dançam” nas paredes qual “pinturas rupestres” de
nosso próprio tempo. Quais “versões”, “verdades” e “lógicas”, portanto, podem
nos ajudar a nos enxergar(mos) - melhor e mais - nesse espelho “espeleológico”?
Em pleno início de 2014 e “despertando” do clima de “férias acadêmicas”, esse é
o desafio de estreia deste ano. A página "Professor Vila-Nova" propõe algumas “reflexões” a
todos os amigos, leitores e interlocutores, nesse “diálogo cívico”, “entre a
civilização e a barbárie”.
O mote, em todos os textos a seguir
destacados, é o de ilustrar os potenciais de análise jurídica em torno de dois
eventos recentes: o agravamento da crise penitenciária no Presídio de
“Pedrinhas” (em São Luís, capital do Maranhão) e a repercussão jurídico-social
do recente “movimento” dos “rolezinhos”, que tem “dado o que falar”, dentro e
fora de redes sociais, para que os “corpos” e “ideias” de “brasileiras” e de
“brasileiros” jovens possam circular (ou não) pelos “shoppings” nas cidades do
país...
E
AÍ? VAMOS DAR UM 'ROLEZAUM'? (PARA PENSAR, GRAÇAS À CONSTITUIÇÃO, NÃO É
NECESSÁRIO 'HABEAS CORPUS'!)
A seleção desses dois eventos não é
casual. Não se trata de mera coincidência aleatória de acontecimentos ligados
pelos limites e possibilidades de nossos "presentes" em constante
crise.
A)
Primeiramente, em perspicaz análise, Mayra Cotta e João Telésforo fazem,
na coluna "Princípios Fundamentais" da Carta Maior, uma interessante
provocação: qual a relação entre os “rolezinhos” e a crise em “Pedrinhas”? As
palavras são empregadas no “diminutivo” mas a responsabilidade cívica, em ambos
os casos, é no aumentativo.
B)
Em meio ao desvelamento dos “falsos liberais”, Fábio Portela, em coluna na Página “Crítica Constitucional”,
aponta os paradoxos e paradoxos que a noção de “liberdade” pode assumir, contra
o próprio senso e garantia de “liberdades constitucionais”. Seja liberal, ou
não, vale o alerta: existem liberais e liberais. Liberdades e liberdades. Como
permitir que tais liberdades convivam num mesmo “Shopping Center”? Essa a reflexão que destacamos, com ênfase também
para o adequado apanhado dos “fundamentos jurídicos” expressos nas diversas
decisões liminares, num sentido, ou noutro, de nosso arquipélago judiciário.
C)
Registro especial, também, ao artigo intitulado "Indigência jurídica do veto aos
rolezinhos",
Fábio Sá e Silva, na já aludida "Princípios Fundamentais" da Carta
Maior. Por meio da identificação das (in)consistências dos “usos” e
“invocações” dos argumentos jurídicos para a apreciação das liminares em torno
de uma categoria ainda não adequadamente decifrada pelo Judiciário em “seus
diferentes processos e procedimentos”: o da emergência de novos (e novos) “sujeitos
coletivos de direitos”. A distância entre a “indigência” e a “indulgência”
parece se reduzir nessa tentativa de “tradução institucional”.
D)
Em entrevista de Jessé de Souza ao periódico “Estadão’, surgem argumentos
lúcidos e que tem sido pouco explorados pela opinião pública e, sobretudo, pela
publicada. “O rolê da ralé” merece leitura por quebrar dois
pré-conceitos e preconceitos. Primeiro, o desvelamento do “apartheid” social do
racismo brasileiro (ainda invisível para alguns) em suas dimensões social,
jurídica e econômica. Não se trata de uma aplicação distópica do Apartheid que o saudoso Nelson Mandela
(o “Madiba”) encarou nos olhos. O “racismo de classe”, como define Jessé, é
ainda mais radical. Enquanto na África do Sul, “brancos” e “pretos” são tidos,
expressa e desenganadamente, como sujeitos diferentes (o mesmo vale para o caso
estadunidense e da doutrina do “separate
but equal” - dos
“separados, mas iguais” contra os quais Martin Luther King Jr. nos fez e faz sonhar...). No Brasil, será que sequer
existe racismo? Essa uma das percepções possíveis a partir da entrevista. A
segunda é a inferição das insuficiências do “economicismo” para a leitura dessa
complexa questão. Pobreza extrema tem de ser erradicada? Sim. Mas não somente a
pobreza material? A cultural, educacional e individual-cívica também, sugere
Jessé. Isso, contudo, não é só. Desigualdade extrema é problema também. Ela
aparta (em vez de reconhecer). Esses os traços e cores aviltantes do “racismo à
brasileira” que Olavo Bilac há muito denunciava. A “Casa Grande e Senzala”, de
Gilberto Freyre, para alguns, não mais existe, mas, ainda que se admita isso
(em tese), ainda há nos céus e mares brasileiros um sinal de que “os fantasmas”
do Negreiro Navio ainda continuam a nos assombrar.
O
NAVIO NEGREIRO NÃO NAUFRAGOU!
Segundo especialistas e indicadores oficiais de mortalidade do “jovem negro”
(assustadoramente superiores aos do restante da população, conforme recentes
pesquisas publicadas), assim como as taxas de encarceramento de presos no país
(apesar do recente julgamento de ditos, segundo o STF, “crimes de colarinho
branco” na AP 470 - o “Caso Mensalão”) e o ainda insignificante grau de
reconhecimento de remanescentes de Quilombos (vide art. 68 do ADCT!) são apenas
uns, de vários olhares, que o tema do “racismo à brasileira” pode despertar. A
entrevista de Jessé põe o dedo nessa ferida aberta. E, percebam(os!), o corpo
ferido, vivo ou morto, é predominantemente “negro” e “pardo” (segundo atestam
os “dados” e “estatísticas”, pelo IBGE, “construídos”).
Em suma, tantas contribuições valiosas
e instigantes nos parecem mais que oportunas em um ano que, a um só tempo, liga
nosso jubileu de prata constitucional (os 25 anos de Constituição da República
Federativa do Brasil!) com mais um experimento de nossa democracia em clima de
'Copa do Mundo', no Brasil.
“- Brasileiros e brasileiras!”, disse o
Presidente jamais eleito, o ano é de eleições gerais, minhas concidadãs, meus
concidadãos!
Só para ilustrar o próprio debate, da
aparente “Civilizada Megalópole dos Shoppings” para a capital de um dos estados
mais pobres e mais “negros” do país, o sistema penitenciário do Maranhão parece
cair no esquecimento, com raras exceções, como é o caso ilustrativo do formoso texto de Ney Bello que nos apresenta o “boleto” dessa “conta”
que ninguém quer pagar, mas, pela qual, senão “culpados”, somos todos
“civicamente responsáveis”.
A questão não é só de “crise
institucional”. Não! É de “responsabilidade cívica” de todo nosso “Povo
Brasileiro” que, há muito, tanto Darcy Ribeiro - e tantas outras brasileiras e
brasileiros - insistira(m) em nos apresentar.
(RE)CONHECEMOS,
MESMO, “NOSSA” RESPONSABILIDADE CÍVICA PELOS CADÁVERES E PELAS TORTURAS EM
PEDRINHAS?
(Re)conhecemos, mesmo, “nossa”
responsabilidade cívica pelos cadáveres e pelas torturas em Pedrinhas?
Apesar de ter uma das populações
carcerárias menos expressivas do país (o detalhe é que o Brasil é o quarto país que mais encarcera no mundo - atrás
somente de EUA, China e Rússia), os "dez" governos e (des)-governos
da oligarquia coronelista Sarney somente amplificam essa situação caótica de
descaso num dos Estados bem representativo da pobreza e da corrupção que não
são exclusivas - mas também - assolam estes “tristes trópicos”.
Mas, então, quem são “os presos” do
Maranhão? São “brancos” da “classe média” que “sofre” com o aumento do IOF? São os grandes empresários (eles são
“brancos” ou “pretos”?) que são açoitados pelo chicote de “nosso famigerado pibinho” ou pelas “garras e dentes” de um Leão
- de zoológico ou de circo? - que com sua “carga tributária devoradora” ainda
assegura taxas de lucro e de investimentos na bolsa e de juros bancários, para além das
fronteiras nacionais,
nada “salariais” para esses (também) “donos do poder”?
Podem(os) discordar. Ficarmos, ou não,
“chocados”. Mas, ao abrirem as carceragens,
quais eram os mais de 60 corpos estendidos no chão? Vocês foram conferir a “cor” dos
cadáveres? A “dor” da
“cor” dos torturados, já conferiu? Veja de novo! Eram “pretos” e “pobres”, em sua
maioria? Ou, quiçá, minoria? Afinal, aqui parece que tudo é possível, não é
mesmo? Onde está a visibilidade social desse massacre silencioso?
Há pena de morte no Brasil em “tempos
de paz” (CRFB/1988, art. 5º, XLVIII, “a” c/c art. 84, XIX)? Ou estamos em
“tempos de guerra”? A “condenação criminal” dá ensejo à perda dos direitos
políticos (CRFB/1988, art. 15, III)? Isso envolve a perda da condição de
“cidadão” na acepção ampla do termo? E de sua condição de “ser humano”? Afinal,
por onde andam a “cidadania” (CRFB/1988, art. 1º, II) e a “dignidade da pessoa
humana” (CRFB/1988, art. 1º, III)? Estamos a falar de “cidadãos” ou “inimigos
de guerra”? De “mulheres” e “homens” ou de “animais” que sequer merecem
proteção (Lei Federal 5.197/1967)? Ou merecem mesmo é “tratamento desumano ou
degradante” (CRFB/1988, art. 5º, III)? Presos, definitivos ou provisórios, tem
direito à preservação de sua integridade física e moral (CRFB/1988, art. 5º,
XLIX)? Será que a Constituição da República Federativa do Brasil menciona “algo” a respeito?
O que incomoda mais a “opinião” que se
diz “pública” e “nacional”? Caminhemos, de editorial, por editorial, até outro editorial e, assim, por diante... sigamos as
trilhas, à direita, ou à esquerda, conforme a convicção política ou partidária
dos (e)-leitor@s, eleitores e leitores. Há tantos editoriais quantos infinitos
forem os mundos da palavra. Mas voltemos ao foco: a que se deve dar destaque
nesta esfera pública em que tudo se diz ou se “publica”?
Repita-se. A que se deve dar destaque?
À “vandalização” do “templo do consumo” - os Shopping Centers - pel@s “mulek” que sequer as regras da língua de
Camões respeitam (sob largos protestos de “vendilhões do Templo” e o apoio do
“Sinédrio Judiciário”)? Ou a tortura e extermínio bárbaro -
uma verdadeira pena de morte disfarçada de “unidades de pacificação” - dos “criminosos estigmatizados”?
A esse respeito, segundo dados de agosto de 2013, em mutirão carcerário realizado pelo
CNJ em Pedrinhas, 52% da população carcerária maranhense está na condição de
“preso provisório” - isto é, pouco mais da metade sequer foi condenada e - o
melhor? Ou o pior? - nem mesmo o Estado brasileiro assegura, com precisão, se o dado não é ainda mais aterrador.
A radiografia desse “esqueleto nos armários
penitenciários” é, lamentavelmente, para lá de fúnebre e cruel. O “choque” é
não somente institucional, mas cívico-democrático também.
CIDADÃO(S)
E A CAMINHADA... ...PELAS RUAS DA CAPITAL
Entre “Civilização” e “Barbárie”, deixo
a lembrança das “pedrinhas” de Drummond no caminho desse “rolezaum” (é assim mesmo que se “digita” ou
“tecla” e é sem 'sic'). O saudoso Millôr Fernandes, certa
feita, nos alertou: “Cidadão, num lugar onde não há nem sombra de democracia,
apenas significa cidade grande”.
A abordagem de Leonardo Boff também parece ter
considerável razão. Afinal, entre adolescentes “vândalos” e consumidores dos
“Burgos”, entre “civilidades” e “barbaridades”, temos apenas (in)justas “grandes
cidades segregadas e segregacionistas” ou, temos, cidadãs e cidadãos que enchem
nossas cidades de sentidos (in)justos?
Fica lançada, no “ar que desmancha os
sólidos conceitos”, essa provocação final que aponta que 'nossa'
contemporaneidade não é só líquida.
Há "cidadãos" e
"cidadãos". E, ademais, uma longa caminhada chamada cidadania. A cidadania
é andarilha. Tem a democracia no horizonte. Essa a razão de ser do seu
caminhar. De sua caminhada de mãos dadas conosco, “com nosso povo”... ... de
onde “Todo poder emana...” (CRFB/1988, art. 1º, parágrafo único). De onde deve
emanar o “poder”, mesmo?
“-'stamos em pleno mar... Doudo
espaço”.
Ao som e sabor do rufar dos “Tambores de Mina ou de Crioula” do
Maranhão, o carnaval
só aparecerá com as águas do “verão”. E vocês “Verão” que 2014 começou muito
antes de mais “uma promessa de vida” no coração daquela “primavera brasileira”!
Enquanto isso, em Brasília, “nossa nova
Jerusalém”, o tempo até que abriu naquela “tão longínqua” manhã... O Céu azul
da Capital contrastava com gramados vazios da Esplanada. O Shopping amanheceu e
anoiteceu fechado. O rolezaum (ou “rolezinho”)
pode ter até perdido adeptas e adeptos, durante o dia... Mas “foi às ruas”,
mesmo assim... O Shopping até “pediu desculpas” aos clientes, mas ficou sem os
“consumidores”... Parece que foi “ontem”... (... pelas ruas da Capital das brasileiras e dos
brasileiros!).
Daniel Vila-Nova é jurista e Mestre em Direito, Estado
e Constituição pela Universidade de Brasília (UnB). Mantém página institucional
destinada ao ensino e à aprendizagem, intitulada “Professor Vila-Nova”, para o diálogo, com as cidadãs e cidadãos
do país, sobre temas jurídicos na Rede Social Facebook (“hashtags” #ProfessorVilaNova
ou #professorvilanova também permitem o acesso às postagens).
Nenhum comentário:
Postar um comentário