O Direito Achado na Rua: nossa conquista é do tamanho da nossa luta

segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

Entre "Civilização" e "Barbárie" (ou tinham umas pedrinhas no caminho do “rolezaum”): ENTRE CIVILIZAÇÃO E BARBÁRIE: PODE ENTRAR, “ROLEZAUM”!


Daniel Vila-Nova
Numa sociedade em que práticas interpretativas são um experimento que busca no “Direito Achado na Rede” (Paulo Rená da Silva Santarém), uma das formas de expressão “lyriana” do “Direito Achado na Rua” (José Geraldo de Sousa Júnior), o “debate público” precisa ser percebido a partir de “seus fragmentos” e inúmeras “verdades estilhaçadas”. Qual uma obra do cubismo analítico, de George Braques ou de Pablo Picasso, a “verdade” está “por todas as partes” e não somente num “só lugar”.
Curiosamente, dois recentes incidentes na sociedade brasileira, que tem movimentado opiniões e ideias, trazem interessantes percepções para nossa esfera pública. Em ano de eleições gerais e de Copa do Mundo no Brasil, os “ecos platônicos” continuam a reverberar por meio de sombras e luzes que “dançam” nas paredes qual “pinturas rupestres” de nosso próprio tempo. Quais “versões”, “verdades” e “lógicas”, portanto, podem nos ajudar a nos enxergar(mos) - melhor e mais - nesse espelho “espeleológico”? Em pleno início de 2014 e “despertando” do clima de “férias acadêmicas”, esse é o desafio de estreia deste ano. A página "Professor Vila-Nova" propõe algumas “reflexões” a todos os amigos, leitores e interlocutores, nesse “diálogo cívico”, “entre a civilização e a barbárie”.
O mote, em todos os textos a seguir destacados, é o de ilustrar os potenciais de análise jurídica em torno de dois eventos recentes: o agravamento da crise penitenciária no Presídio de “Pedrinhas” (em São Luís, capital do Maranhão) e a repercussão jurídico-social do recente “movimento” dos “rolezinhos”, que tem “dado o que falar”, dentro e fora de redes sociais, para que os “corpos” e “ideias” de “brasileiras” e de “brasileiros” jovens possam circular (ou não) pelos “shoppings” nas cidades do país...

E AÍ? VAMOS DAR UM 'ROLEZAUM'? (PARA PENSAR, GRAÇAS À CONSTITUIÇÃO, NÃO É NECESSÁRIO 'HABEAS CORPUS'!)

A seleção desses dois eventos não é casual. Não se trata de mera coincidência aleatória de acontecimentos ligados pelos limites e possibilidades de nossos "presentes" em constante crise.
A) Primeiramente, em perspicaz análise, Mayra Cotta e João Telésforo fazem, na coluna "Princípios Fundamentais" da Carta Maior, uma interessante provocação: qual a relação entre os “rolezinhos” e a crise em “Pedrinhas”? As palavras são empregadas no “diminutivo” mas a responsabilidade cívica, em ambos os casos, é no aumentativo.
B) Em meio ao desvelamento dos “falsos liberais”, Fábio Portela, em coluna na Página “Crítica Constitucional”, aponta os paradoxos e paradoxos que a noção de “liberdade” pode assumir, contra o próprio senso e garantia de “liberdades constitucionais”. Seja liberal, ou não, vale o alerta: existem liberais e liberais. Liberdades e liberdades. Como permitir que tais liberdades convivam num mesmo “Shopping Center”? Essa a reflexão que destacamos, com ênfase também para o adequado apanhado dos “fundamentos jurídicos” expressos nas diversas decisões liminares, num sentido, ou noutro, de nosso arquipélago judiciário.
C) Registro especial, também, ao artigo intitulado "Indigência jurídica do veto aos rolezinhos", Fábio Sá e Silva, na já aludida "Princípios Fundamentais" da Carta Maior. Por meio da identificação das (in)consistências dos “usos” e “invocações” dos argumentos jurídicos para a apreciação das liminares em torno de uma categoria ainda não adequadamente decifrada pelo Judiciário em “seus diferentes processos e procedimentos”: o da emergência de novos (e novos) “sujeitos coletivos de direitos”. A distância entre a “indigência” e a “indulgência” parece se reduzir nessa tentativa de “tradução institucional”.
D) Em entrevista de Jessé de Souza ao periódico “Estadão’, surgem argumentos lúcidos e que tem sido pouco explorados pela opinião pública e, sobretudo, pela publicada. “O rolê da ralé” merece leitura por quebrar dois pré-conceitos e preconceitos. Primeiro, o desvelamento do “apartheid” social do racismo brasileiro (ainda invisível para alguns) em suas dimensões social, jurídica e econômica. Não se trata de uma aplicação distópica do Apartheid que o saudoso Nelson Mandela (o “Madiba”) encarou nos olhos. O “racismo de classe”, como define Jessé, é ainda mais radical. Enquanto na África do Sul, “brancos” e “pretos” são tidos, expressa e desenganadamente, como sujeitos diferentes (o mesmo vale para o caso estadunidense e da doutrina do “separate but equal” - dos “separados, mas iguais” contra os quais Martin Luther King Jr. nos fez e faz sonhar...). No Brasil, será que sequer existe racismo? Essa uma das percepções possíveis a partir da entrevista. A segunda é a inferição das insuficiências do “economicismo” para a leitura dessa complexa questão. Pobreza extrema tem de ser erradicada? Sim. Mas não somente a pobreza material? A cultural, educacional e individual-cívica também, sugere Jessé. Isso, contudo, não é só. Desigualdade extrema é problema também. Ela aparta (em vez de reconhecer). Esses os traços e cores aviltantes do “racismo à brasileira” que Olavo Bilac há muito denunciava. A “Casa Grande e Senzala”, de Gilberto Freyre, para alguns, não mais existe, mas, ainda que se admita isso (em tese), ainda há nos céus e mares brasileiros um sinal de que “os fantasmas” do Negreiro Navio ainda continuam a nos assombrar.

O NAVIO NEGREIRO NÃO NAUFRAGOU!
Segundo especialistas e indicadores oficiais de mortalidade do “jovem negro” (assustadoramente superiores aos do restante da população, conforme recentes pesquisas publicadas), assim como as taxas de encarceramento de presos no país (apesar do recente julgamento de ditos, segundo o STF, “crimes de colarinho branco” na AP 470 - o “Caso Mensalão”) e o ainda insignificante grau de reconhecimento de remanescentes de Quilombos (vide art. 68 do ADCT!) são apenas uns, de vários olhares, que o tema do “racismo à brasileira” pode despertar. A entrevista de Jessé põe o dedo nessa ferida aberta. E, percebam(os!), o corpo ferido, vivo ou morto, é predominantemente “negro” e “pardo” (segundo atestam os “dados” e “estatísticas”, pelo IBGE, “construídos”).
Em suma, tantas contribuições valiosas e instigantes nos parecem mais que oportunas em um ano que, a um só tempo, liga nosso jubileu de prata constitucional (os 25 anos de Constituição da República Federativa do Brasil!) com mais um experimento de nossa democracia em clima de 'Copa do Mundo', no Brasil.
“- Brasileiros e brasileiras!”, disse o Presidente jamais eleito, o ano é de eleições gerais, minhas concidadãs, meus concidadãos!
Só para ilustrar o próprio debate, da aparente “Civilizada Megalópole dos Shoppings” para a capital de um dos estados mais pobres e mais “negros” do país, o sistema penitenciário do Maranhão parece cair no esquecimento, com raras exceções, como é o caso ilustrativo do formoso texto de Ney Bello que nos apresenta o “boleto” dessa “conta” que ninguém quer pagar, mas, pela qual, senão “culpados”, somos todos “civicamente responsáveis”.
A questão não é só de “crise institucional”. Não! É de “responsabilidade cívica” de todo nosso “Povo Brasileiro” que, há muito, tanto Darcy Ribeiro - e tantas outras brasileiras e brasileiros - insistira(m) em nos apresentar.

(RE)CONHECEMOS, MESMO, “NOSSA” RESPONSABILIDADE CÍVICA PELOS CADÁVERES E PELAS TORTURAS EM PEDRINHAS?
(Re)conhecemos, mesmo, “nossa” responsabilidade cívica pelos cadáveres e pelas torturas em Pedrinhas?
Apesar de ter uma das populações carcerárias menos expressivas do país (o detalhe é que o Brasil é o quarto país que mais encarcera no mundo - atrás somente de EUA, China e Rússia), os "dez" governos e (des)-governos da oligarquia coronelista Sarney somente amplificam essa situação caótica de descaso num dos Estados bem representativo da pobreza e da corrupção que não são exclusivas - mas também - assolam estes “tristes trópicos”.
Mas, então, quem são “os presos” do Maranhão? São “brancos” da “classe média” que “sofre” com o aumento do IOF? São os grandes empresários (eles são “brancos” ou “pretos”?) que são açoitados pelo chicote de “nosso famigerado pibinho” ou pelas “garras e dentes” de um Leão - de zoológico ou de circo? - que com sua “carga tributária devoradora” ainda assegura taxas de lucro e de investimentos na bolsa e de juros bancários, para além das fronteiras nacionais, nada “salariais” para esses (também) “donos do poder”?
Podem(os) discordar. Ficarmos, ou não, “chocados”. Mas, ao abrirem as carceragens, quais eram os mais de 60 corpos estendidos no chão? Vocês foram conferir a “cor” dos cadáveres? A “dor” da “cor” dos torturados, já conferiu? Veja de novo! Eram “pretos” e “pobres”, em sua maioria? Ou, quiçá, minoria? Afinal, aqui parece que tudo é possível, não é mesmo? Onde está a visibilidade social desse massacre silencioso?
Há pena de morte no Brasil em “tempos de paz” (CRFB/1988, art. 5º, XLVIII, “a” c/c art. 84, XIX)? Ou estamos em “tempos de guerra”? A “condenação criminal” dá ensejo à perda dos direitos políticos (CRFB/1988, art. 15, III)? Isso envolve a perda da condição de “cidadão” na acepção ampla do termo? E de sua condição de “ser humano”? Afinal, por onde andam a “cidadania” (CRFB/1988, art. 1º, II) e a “dignidade da pessoa humana” (CRFB/1988, art. 1º, III)? Estamos a falar de “cidadãos” ou “inimigos de guerra”? De “mulheres” e “homens” ou de “animais” que sequer merecem proteção (Lei Federal 5.197/1967)? Ou merecem mesmo é “tratamento desumano ou degradante” (CRFB/1988, art. 5º, III)? Presos, definitivos ou provisórios, tem direito à preservação de sua integridade física e moral (CRFB/1988, art. 5º, XLIX)? Será que a Constituição da República Federativa do Brasil menciona “algo” a respeito?
O que incomoda mais a “opinião” que se diz “pública” e “nacional”? Caminhemos, de editorial, por editorial, até outro editorial e, assim, por diante... sigamos as trilhas, à direita, ou à esquerda, conforme a convicção política ou partidária dos (e)-leitor@s, eleitores e leitores. Há tantos editoriais quantos infinitos forem os mundos da palavra. Mas voltemos ao foco: a que se deve dar destaque nesta esfera pública em que tudo se diz ou se “publica”?
Repita-se. A que se deve dar destaque? À “vandalização” do “templo do consumo” - os Shopping Centers - pel@s “mulek” que sequer as regras da língua de Camões respeitam (sob largos protestos de “vendilhões do Templo” e o apoio do “Sinédrio Judiciário”)? Ou a tortura e extermínio bárbaro - uma verdadeira pena de morte disfarçada de “unidades de pacificação” - dos “criminosos estigmatizados”?
A esse respeito, segundo dados de agosto de 2013, em mutirão carcerário realizado pelo CNJ em Pedrinhas, 52% da população carcerária maranhense está na condição de “preso provisório” - isto é, pouco mais da metade sequer foi condenada e - o melhor? Ou o pior? - nem mesmo o Estado brasileiro assegura, com precisão, se o dado não é ainda mais aterrador. A radiografia desse “esqueleto nos armários penitenciários” é, lamentavelmente, para lá de fúnebre e cruel. O “choque” é não somente institucional, mas cívico-democrático também.

CIDADÃO(S) E A CAMINHADA... ...PELAS RUAS DA CAPITAL
Entre “Civilização” e “Barbárie”, deixo a lembrança das “pedrinhas” de Drummond no caminho desse “rolezaum” (é assim mesmo que se “digita” ou “tecla” e é sem 'sic'). O saudoso Millôr Fernandes, certa feita, nos alertou: “Cidadão, num lugar onde não há nem sombra de democracia, apenas significa cidade grande”.
A abordagem de Leonardo Boff também parece ter considerável razão. Afinal, entre adolescentes “vândalos” e consumidores dos “Burgos”, entre “civilidades” e “barbaridades”, temos apenas (in)justas “grandes cidades segregadas e segregacionistas” ou, temos, cidadãs e cidadãos que enchem nossas cidades de sentidos (in)justos?
Fica lançada, no “ar que desmancha os sólidos conceitos”, essa provocação final que aponta que 'nossa' contemporaneidade não é só líquida.
Há "cidadãos" e "cidadãos". E, ademais, uma longa caminhada chamada cidadania. A cidadania é andarilha. Tem a democracia no horizonte. Essa a razão de ser do seu caminhar. De sua caminhada de mãos dadas conosco, “com nosso povo”... ... de onde “Todo poder emana...” (CRFB/1988, art. 1º, parágrafo único). De onde deve emanar o “poder”, mesmo?
E cantou o Castro Alves dos 'escravos libertos' e dos 'libertos escravos':
“-'stamos em pleno mar... Doudo espaço”.
Ao som e sabor do rufar dos “Tambores de Mina ou de Crioula” do Maranhão, o carnaval só aparecerá com as águas do “verão”. E vocês “Verão” que 2014 começou muito antes de mais “uma promessa de vida” no coração daquela “primavera brasileira”!
Enquanto isso, em Brasília, “nossa nova Jerusalém”, o tempo até que abriu naquela “tão longínqua” manhã... O Céu azul da Capital contrastava com gramados vazios da Esplanada. O Shopping amanheceu e anoiteceu fechado. O rolezaum (ou “rolezinho”) pode ter até perdido adeptas e adeptos, durante o dia... Mas “foi às ruas”, mesmo assim... O Shopping até “pediu desculpas” aos clientes, mas ficou sem os “consumidores”... Parece que foi “ontem”... (... pelas ruas da Capital das brasileiras e dos brasileiros!).
Daniel Vila-Nova é jurista e Mestre em Direito, Estado e Constituição pela Universidade de Brasília (UnB). Mantém página institucional destinada ao ensino e à aprendizagem, intitulada “Professor Vila-Nova”, para o diálogo, com as cidadãs e cidadãos do país, sobre temas jurídicos na Rede Social Facebook (“hashtags” #ProfessorVilaNova ou #professorvilanova também permitem o acesso às postagens).

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