César Augusto Baldi destaca que é preciso avançar primeiro na justiça cognitiva para então chegarmos à justiça social
Por: Luciano Gallas e Ricardo Machado
César Augusto Baldi considera que a cosmologia indígena propõe uma forma mais harmoniosa de relação humana, em que os diferentes se condicionam mutuamente, cujo esforço de uma parte é compensando por outro esforço de mesma magnitude no receptor. Para ele, isso transcende a questão do viver bem, alcançando os conceitos de conviver e viver em comunidade. Ele recupera essa racionalidade indígena para fazer uma ruptura com a ideia de que os indígenas seriam sujeitos “menores”. “Há de se romper o pressuposto — às vezes mais sutil, outras vezes descarado — de uma ‘menoridade’ das comunidades indígenas, quilombolas e outras ‘tradicionais’, que não é outra coisa que um ‘racismo epistêmico’ e um processo de inferiorização”, considera. “A introdução do estudo da história afro e indígena deve também pautar estas formas de conhecimento, de manejo da biodiversidade, de ‘descolonização da memória’ que vem sendo praticadas. Sem uma verdadeira justiça cognitiva não há como implantar-se justiça social, como salienta Boaventura de Sousa Santos. De outra forma, continua a se insistir em verdadeiro ‘apartheid epistêmico’”, complementa Baldi em entrevista, por e-mail, à IHU On-Line.O entrevistado provoca a reflexão ao criticar a realização de “eventos críticos” sem a presença de indígenas, quilombolas e outros grupos marginalizados. “Para questionar processos de injustiça cognitiva, é importante realizar ‘extensões ao contrário’, trazendo os movimentos sociais e seus pensadores para dentro da universidade, questionando a ‘democracia racial’, o ‘multiculturalismo’ apartado e a distribuição desigual de conhecimento. Da mesma forma, de pouca valia é a introdução de história africana e indígena se não vier acompanhada da alteração de currículos e de metodologias, bem como descolonização dos saberes’, propõe.
César Augusto Baldi é pós-graduado em Direito Político pela Unisinos, mestre em Direito pela Universidade Luterana do Brasil no Rio Grande do Sul – Ulbra/RS e doutorando na Universidad Pablo Olavide (Espanha). Também é servidor do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, desde 1989. É o organizador do livro Direitos humanos na sociedade cosmopolita (Rio de janeiro: Ed. Renovar, 2004).
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Quais são as contribuições dos processos constitucionais recentes colocados em prática no Equador e na Bolívia no que diz respeito aos direitos humanos e a ações relacionadas ao pensamento descolonial?
César Augusto Baldi - Dentre os vários aspectos, destacaria: a refundação do Estado como outra face do reconhecimento tanto do colonialismo quanto das origens milenárias de povos e nações que foram ignorados. Uma refundação que necessita reinventar instituições (p. ex., Tribunal Constitucional Plurinacional, eleições diretas para juízes, quatro níveis de autonomia, regimes especiais de organização); um catálogo de direitos que rompe tanto com a visão geracional quanto eurocentrada (no caso equatoriano, de forma mais evidente, pela tematização de direitos fundamentais — buen vivir, atenção prioritária, comunidades/povos/nações, participação, liberdade, natureza, proteção); o forte influxo do protagonismo indígena (papel diferenciado da justiça indígena, novo léxico jurídico, inclusão de princípios ético-morais da nação boliviana, de cunho aimará e guarani, soberania alimentar, direito à água, etc.); a insistência na descolonização (no caso boliviano, em especial da educação) e na interculturalidade (incluindo-se as medicinas indígenas e tradicionais) e, nesse sentido, a plurinacionalidade. Estas questões implicam novas institucionalidades, territorialidades, subjetividades, regimes políticos.
Muito se tem salientado sobre “sumak kawsay ” e os “direitos da pachamama”, mas tem-se esquecido que tanto "sumak kawsay" quanto "suma qamaña ", de origem quéchua-aimará, inserem-se dentro de uma cosmologia indígena baseada nos seguintes princípios: relacionalidade do todo como força vital do que existe; correspondência, ou seja, os distintos aspectos, regiões e campos da realidade se correspondem de forma harmoniosa; complementariedade, no sentido de que nenhum ente ou ação existe por si só de maneira isolada, mas sempre em coexistência de seu complemento específico; reciprocidade, de tal forma que os diferentes se condicionam mutuamente e, pois, um esforço de uma parte é compensado por esforço de mesma magnitude pelo receptor. Mais que simplesmente "vivir bien", trata-se, fundamentalmente, de "con-vivir", "vivir en comunidad".
Tais conceitos estão relacionados com noções de interculturalidade e descolonização, mais forte a primeira para o caso equatoriano, e a segunda, para o caso boliviano, e, portanto, não excluem outras visões de mundo. Nesse sentido, a Constituição do Estado Plurinacional boliviano destaca os princípios ético-morais de "ñandereko" (vida harmoniosa) e "teko kavi" (vida boa), de matriz guarani. Seria interessante um exercício intercultural para o caso brasileiro, em que os guaranis são o povo indígena mais numeroso do país. Mas não se podem esquecer as distintas tradições afro e, portanto, também as consequências que poderiam ser extraídas de propostas de "bien estar colectivo" e de "muntú" (ubuntu), fundadas na autodeterminação, solidariedade e conexão fundamental entre sociedade e natureza e também "ancestros y vivos".
Conceitos
Tais conceitos exigem, como salienta Raúl Llasag Fernández , todo um sistema de vida: uma forma de organização social básica, que é a comunidade; uma forma de organização política, que envolve autoridades internas, fiscalização destas, resolução de conflitos internos e criação de consensos em assembleias; um modelo econômico, que parte do pressuposto de que tudo é parte da natureza em forma complementar (o ser humano, a terra, a água, o ar, os animais, as pedras, etc.). É, dessa forma, como salienta [Anibal] Quijano, um novo horizonte de sentido, e que, portanto, está permanentemente em tensões com os novos projetos de neoextrativismo, de novas formas de colonialismo da natureza, exploração de minérios, violações de direitos indígenas, “sequestro” de terras comunais. Não é uma mera “atualização” de conceitos liberais ou ocidentais.
Não existe correspondência exata entre os direitos de "buen vivir" e os direitos sociais da tradição liberal, pelo menos na elaboração equatoriana — a propriedade, a família e os grupos de atenção prioritária constam em outras classificações. Ao mesmo tempo, os direitos são interdependentes e indivisíveis, o que reforça, do ponto de vista emancipatório, um alargamento das restrições internas da própria Constituição; ou seja, os projetos constitucionais estão em permanente tensão entre os dois modelos, um tradicional, que está em crise, e outro que ainda não está plenamente consolidado e delineado.
Feminismo e descolonização
Ao prever, por exemplo, como "labor productiva" o trabalho não remunerado de autossustento e de cuidado realizado nos lares (art. 333, Equador) e como bases para educação ser "descolonizadora, liberadora, anti-imperalista, despatriarcalizadora e transformadora de estruturas econômicas e sociais" (art. 3º da Lei Avelino Siñani-Elizardo Pérez, de 2010, na Bolívia), destaca-se que tais concepções não estão desconectadas de um amplo processo de despatriarcalização. Como dizem as feministas: não há descolonização sem despatriarcalização e, nesse sentido, há todo um trabalho de ressignificação intercultural do conceito de chacha-warmi e, portanto, da questão da igualdade de gênero na cosmovisão indígena, ao mesmo tempo que se recorda o protagonismo feminismo — ocultado em muitas análises — das Guerras da Água e do Gás. Mas não pode ignorar, contudo, que, no campo dos direitos sexuais e reprodutivos ainda há um longo caminho para descolonizar, despatriarcalizar e romper com a heteronormatividade.
Gênero e identidade
Nesse sentido, a Lei de identidade de gênero, da Argentina, toca em pontos que não avançaram nas legislações boliviana e equatoriana. O Supremo Tribunal Federal - STF, como bem salienta Roger Rios, ao julgar a união de pessoas do mesmo sexo, ficou muito aquém de uma leitura alargada de direitos humanos, optando por uma linha “familista”. Resta saber se o julgamento da ADPF 291 , recentemente ajuizada perante o STF, envolvendo o crime de pederastia no Código Penal Militar, vai ser capaz de romper as associações entre nação, militarismo, heteronormatividade e disciplina.
Por fim, é necessário lembrar que o ano de 1492 é, paradoxalmente, o momento em que se inicia o genocídio das populações indígenas e também a expulsão de judeus e muçulmanos. Soa coincidência, portanto, que sejam as feministas indígenas e islâmicas a recolocar os limites do eurocentrismo, a partir de suas distintas cosmovisões. Como salienta Asma Barlas , em relação às islâmicas, estas feministas estão sujeitas à dupla opressão: uma levada em nome de ideais religiosos, outra em nome de “liberdades seculares”.
IHU On-Line - As experiências boliviana e equatoriana podem servir de modelo a iniciativas de reforma da educação básica, de tratamento aos indígenas e de preservação ambiental no Brasil?
César Augusto Baldi - Tanto a educação quanto a preservação ambiental, no Brasil, tem pouco ou nada de caráter intercultural. No geral, são formas um pouco mais atenuadas de assimilação, no sentido do bilinguismo tradicional. Não se reconhece, no fundo, a possibilidade de os povos indígenas serem sujeitos de conhecimento e, portanto, ensinarem modos de preservação ambiental e de contribuírem para o pensamento brasileiro. Aliás, em vários órgãos governamentais, ainda impera uma visão de “natureza intocada” e sem populações; um conservacionismo.
Os conflitos entre este tipo de ambientalismo e os direitos indígenas devem ser um tema a ser enfrentado. A Corte Interamericana reconheceu, nesse sentido, que o estabelecimento de reservas naturais, baseado em suposta defesa do meio ambiente, poderia representar uma nova e sofisticada forma de obstar reivindicações de direitos indígenas, inclusive sobre sua propriedade comunal (dentre outros, Caso Xákmok Kásek vs. Paraguay, 2010). Ou seja, é uma tensão que será muito evidente nos próximos tempos.
O desafio de pensar a compatibilidade entre unidades de conservação e as diversas comunidades “tradicionais” do país envolve a problematização das diversidades étnica, cultural, racial, cognitiva, jurídica, ambiental e também o repensar das “figuras jurídicas” tradicionais. Da mesma forma que a luta dos seringueiros e dos “povos da floresta” ensejou a solução jurídica das reservas extrativistas, são necessários novos exercícios de “imaginação jurídica” para pensar a questão, o que exclui a “dupla afetação”, que parece ser pouco admitida como possível. Da mesma forma que Wright Mills falava de “imaginação sociológica”, está na hora de colocar a “imaginação jurídica” a pensar, repensar e despensar, se for preciso, as soluções que foram e têm sido colocadas.
Além disso, há de se romper o pressuposto — às vezes mais sutil, outras vezes descarado — de uma “menoridade” das comunidades indígenas, quilombolas e outras “tradicionais”, que não é outra coisa que um “racismo epistêmico” e um processo de inferiorização. A introdução do estudo da história afro e indígena deve também pautar estas formas de conhecimento, de manejo da biodiversidade, de “descolonização da memória” que vem sendo praticadas. Sem uma verdadeira justiça cognitiva, não há como implantar-se justiça social, como salienta Boaventura Santos . De outra forma, continua a se insistir em verdadeiro “apartheid epistêmico”.
IHU On-Line - Da mesma forma, ações baseadas na perspectiva do pensamento descolonial e voltadas à interculturalidade e ao plurinacionalismo podem impactar o direito internacional?
César Augusto Baldi - No direito internacional, as cosmovisões indígenas já vêm provocando impacto, como se verifica com o reconhecimento do direito à água como “direito humano” e com as discussões sobre os direitos da “madre tierra”. A proposta da reserva Yasúni , recentemente abandonada pelo governo equatoriano, é algo extremamente inovador.
Pela análise de alguns casos da Corte Interamericana — como, por exemplo, Sarayaku vs. Ecuador ou Saramaka vs. Surinam —, verifica-se a inclusão, dentro dos processos judiciais, das cosmovisões indígena e afro da América. Aliás, a leitura que a Corte fez do artigo 21 da Convenção Americana de Direitos Humanos é muito mais ampla que a mera “função social da propriedade”, ao reconhecer a pluralidade de propriedades, dentre elas a propriedade comunitária e, junto com ela, a territorialidade específica. Mas ainda não chegou a reconhecer direitos plenos de autodeterminação, nem a propriedade comunal como um verdadeiro “feixe de direitos”, que vai além dos clássicos “ius utendi” (o direito de usar a coisa), “ius fruendi” (utilização dos produtos da coisa) e “ius abutendi” (direito de dispor, distribuir).
Por sua vez, há, no Brasil, um desconhecimento de decisões de tribunais dos países vizinhos. A Colômbia tem uma jurisprudência muito afirmadora dos direitos dos indígenas — e, no geral, do reconhecimento da diversidade cultural — desde os inícios da Constituição de 1991, um contraste muito forte com decisões do STF, em especial Raposa Serra do Sol , que mantém uma linguagem colonial e é extremamente restritiva, ainda que não pareça à primeira vista, dos mesmos arts. 231 e 232 que pretende interpretar. Aquele julgamento, por exemplo, foi extremamente refratário em admitir a possibilidade de pluralismo jurídico, mantendo uma visão monista, tanto em termos internos quanto externos. As Constituições do Equador e da Bolívia vão trabalhar, por outro lado, com uma abertura material de direitos humanos, em que se estabelece uma nova “cartografia jurídica” de relação entre Constituição e de instrumentos internacionais (aqui incluída a Declaração da ONU para os povos indígenas, uma experiência em que, ao contrário de vários instrumentos jurídicos internacionais, não somente os Estados Nacionais participaram da discussão, mas as próprias populações indígenas). E isto tem um potencial imenso para impactar a própria questão de direitos humanos no âmbito interno e externo.
Flavia Piovesan mostrou, recentemente, que a Corte Europeia foi buscar na jurisprudência da Corte Interamericana sobre o legado dos períodos ditatoriais muitos elementos importantes para tratar das questões envolvendo o período pós-comunista na Europa do Leste; da mesma forma, a Corte Interamericana se inspirou em decisões da Corte Europeia em temas envolvendo direitos sexuais e reprodutivos. Somente recentemente, com o caso Atalla Rifo vs. Chile (2012) se discutiu, no âmbito da corte, a discriminação por orientação sexual, o que não exime de algumas críticas.
Em termos de direitos indígenas e de comunidades afro, a Corte Interamericana tem tido um papel fundamental em romper com determinados parâmetros constitucionais e coloniais do continente.
Reavaliação
Há, portanto, uma necessidade de reavaliar e avançar em termos de reconhecimento de interculturalidade e plurinacionalidade em vários temas, no âmbito do direito internacional. A questão religiosa, em especial o Islã, ainda é tratada em termos coloniais, orientalistas e de racialização, um viés profundamente islamofóbico presente em várias decisões da Corte Europeia, como salientado por Saba Mahmood .
De toda forma, a questão da descolonização, como salienta Clavero, deve ser um “mandato de ativismo constitucional”, no caso boliviano de forma específica, e, no plano internacional, uma reatualização da Declaração de 1960, dos povos colonizados. A própria ONU não entendeu que a declaração esgotou sua vigência, e não é demais lembrar a existência de vários enclaves coloniais no mundo, tais como Gibraltar , Ceuta , Mellila , Guiana Francesa e boa parte do Caribe. Ou seja, a lembrança de que a declaração universal conviveu, em sua enunciação, com a colonização da África e da Ásia (e com a descolonização parcial das Américas), com o trabalho forçado nas então colônias, com a ocultação do memoricídio e do extermínio de populações colonizadas. Outras narrativas foram invisibilizadas, silenciadas, suprimidas, um imenso campo de trabalho a ser realizado, ainda, no âmbito dos direitos humanos.
IHU On-Line - As relações econômicas transnacionais no mundo globalizado estão baseadas em um modelo monocultural, em detrimento a outros modelos, baseados na pluralidade e na diversidade de culturas, sociedades, organizações políticas e econômicas e formas de pensamento (distintas do pensamento hegemônico centrado no projeto neoliberal). A presença global do capital é hoje a maior herança do colonialismo?
César Augusto Baldi - É uma das heranças, mas não a única: o eurocentrismo e o processo de racialização da classificação social são também parte do mesmo processo. Daí a ideia, presente em Quijano, de que a modernidade opera colonialmente, e a colonialidade do poder opera modernamente. Não é demais lembrar que, tanto na colônia quanto no mundo atual, o trabalho pago convive com formas comunitárias de relações sociais, mas também com forças de trabalho não pago (que eufemisticamente, se denominam “análogos à escravidão”, quando são a própria, em formas atualizadas). Formas que são racialmente distribuídas, tanto entre povos quanto nas relações entre países. Vide a reação com a vinda dos médicos cubanos, a diferença de tratamento para se analisar relações entre Brasil e Bolívia ou Brasil e Estados Unidos, a dificuldade de aceitação de direitos iguais para empregadxs domésticxs.
A própria ideia de igualdade social surge junto com o processo de racialização; ou seja, a tensão está tão presente naquele momento, que a revolução haitiana , de escravos negros libertos do domínio colonial, causou apreensão nos “paladinos” da liberdade, igualdade e fraternidade da revolução francesa. Aliás, uma revolução tão impensada que vários historiadores — incluindo Hobsbawm , que tem um livro sobre a “era das revoluções” — não se refere a ela. Foram C.R. James e Trouillot a destacarem tal acontecimento histórico e, nos últimos tempos, Eduardo Grüner .
Por esse motivo, Quijano salientou recentemente que, para a modernidade cumprir suas promessas, deve proceder à completa desracialização da classificação social. Um processo que não se faz sem descolonização de mentes também.
IHU On-Line - Neste aspecto, objetivando a substituição do modelo excludente focado no acúmulo de capital por modelos socialmente mais inclusivos e economicamente mais justos, qual é o papel esperado do Estado?
César Augusto Baldi - Boaventura de Sousa Santos tem trabalhado com a ideia de Estado como novíssimo movimento social. Quijano salienta, por outro lado, que no denominado continente americano não houve, de fato, a implantação de um Estado-nação, e algumas questões como identidade, modernidade, democracia são temas ainda pendentes. Em realidade, o processo absolutamente heterogêneo, descontínuo das relações sociais, no geral, necessita novas formas de imaginação sociológica, jurídica e política. Momentos de transição ou — no dizer de Prigogine, de bifurcação — acabam não tendo um novo léxico para trabalhar alguns temas e, ao mesmo tempo, reconhecem a insuficiência da análise tal como realizada. A questão do papel do Estado ainda é muito dependente de um pensamento eurocentrado, seja pela via liberal, seja pela via marxista. Da mesma forma que uma “imaginação jurídica” é urgente, novas formas de “imaginação política” também são. O Tribunal Plurinacional da Bolívia, o tratamento dispensado à jurisdição indígena na constituição boliviana, o reconhecimento da interculturalidade e da descolonização como eixos transversais nos processos constitucionais equatoriano e boliviano podem, neste ponto, ser um novo alento para outras “contrageografias de poder”, ainda engessadas dentro do clássico modelo “tripartite”.
IHU On-Line - Se todo pensamento é historicamente condicionado, quais espaços têm sido conquistados pelas minorias para a implementação de um modelo de educação perpassado por valores de defesa da dignidade humana, de justiça social e de sustentabilidade ambiental?
César Augusto Baldi - O pluralismo apregoado nos processos educacionais é, em realidade, um monoculturalismo, ou seja, a aceitação de que somente uma forma de conhecimento é legítima e, portanto, reconhecida. Como costuma relembrar Walter Mignolo , a geopolítica do conhecimento faz com que algumas línguas (alemão, inglês, francês, italiano, português e espanhol) sejam consideradas “línguas de conhecimento”, ao passo que outras somente são “línguas de cultura” (árabe, mandarim, aimará, quéchua, guarani, etc).
Isso implica a necessidade de discutir, problematizar e difundir experiências díspares, tais como as da Universidade Federal de Roraima - UFRR e da Universidade Estadual de Mato Grosso - Unemat, mas também outras como a Amawtay Wasi, do Equador, e Universidade Mapuche, do Chile, estas últimas emergindo de propostas das comunidades indígenas buscando o reconhecimento estatal em pé de igualdade. Ou mesmo da Universidade Autônoma Indígena e Intercultural - Uaiin, da Colômbia, que se institucionalizou de forma autônoma, sem aval e reconhecimento estatal, como forma de não negociar com procedimentos cabíveis para cursos regulares. Situações que, no Brasil, vêm sendo analisadas por Tércio Fehlauer . Recentemente, a escola zapatista vem sendo divulgada pela internet. Uma sinergia de experiências que vêm sendo descartadas pelo “mainstream” brasileiro e que constituem um “desperdício de experiência”, no sentido de Boaventura Santos.
Presença indígena
Mas pouco adianta fazer “eventos críticos” sem a presença de indígenas, quilombolas e outras comunidades invisibilizadas. Para questionar processos de injustiça cognitiva, é importante realizar “extensões ao contrário”, trazendo os movimentos sociais e seus pensadores para dentro da universidade, questionando a “democracia racial”, o “multiculturalismo” apartado e a distribuição desigual de conhecimento. Da mesma forma, de pouca valia é a introdução de história africana e indígena se não vier acompanhada da alteração de currículos e de metodologias, bem como descolonização dos saberes.
O que significa pensar a ideia de dignidade — não só humana, mas de todos os seres — em perspectiva intercultural, por meio de traduções, algo que Panikkar , já na década de 1980, foi desenvolvendo com a “hermenêutica diatópica”, mas que ainda precisa ser trabalhada de forma mais consistente no campo dos direitos humanos (ou seus equivalentes) e da educação.
No campo dos direitos humanos, venho trabalhando com o questionamento do secularismo, com outras visões de “dignidade”, com exercícios de traduções dos movimentos das “feministas islâmicas”, com as lutas dos dalits , com a ampliação da discussão sobre “sumak kawsay” e formas de “buen vivir afro”. Isto também passa pela recuperação nas universidades brasileiras, por exemplo, de Lélia González , Guerreiro Ramos ou Abdias do Nascimento (vide o artigo “Racismo, consciência negra e direitos humanos”, publicado no sítio Consultor Jurídico), mas também de Zapata Olivella , Fausto Reinaga , Rodolfo Kush , Quintín Lame (como fazem Walter Mignolo, Catherine Walsh e Esteban Ticona ). Mesmo a teoria crítica, de índole marxiana, necessita revisitar José Martí, Mariátegui, Bolívar Echeverria , Zavaleta Mercado e as correntes anarquistas (Emma Goldman , por exemplo, nos anos 1900, tratava do tráfico de pessoas).
O processo todo, portanto, tem um caráter altamente pedagógico, como bem salientado por Catherine Walsh. De fato, “se introduzem e antecipam lógicas e formas que não pretendem substituir ou impor, mas sim fomentar enlaces entre os conceitos e práticas ancestrais e os conceitos e práticas que nos têm regido desde a formação da República, projetando aos primeiros como componentes não somente das comunidades indígenas e afros, mas também da construção de uma nova sociedade”.
IHU On-Line - Fale um pouco sobre a oposição que Hegel construiu entre o jusnaturalismo e o positivismo a partir de Antígona, utilizada nos cursos jurídicos, em detrimento do uso da "trilogia tebana", como o fez Judith Butler , para debater a heteronormatividade e o patriarcado.
César Augusto Baldi - Seria importante destacar alguns pontos que não vêm sendo tratados: a oposição entre jusnaturalismo e positivismo, para discutir Antígona, é, em si mesma, uma forma de esquecer o legado árabe, buscar uma genealogia do pensamento europeu na Grécia, salientar um processo de tradição sem rompimentos, de universalismo a-histórico e, pois, ler uma tragédia grega com uma visão de mundo profundamente eurocentrada e baseada na ideia de que a expansão do mundo caminha da Europa em direção ao resto do mundo. Nesse ponto, Quijano talvez tenha sido quem mais salientou o “espelho invertido” de tal concepção: não havia “América” nem “Espanha” no momento do “descobrimento”, mas, fundamentalmente, a Europa só passa a existir em virtude da mudança de rota comercial do Mediterrâneo para o Atlântico e, portanto, a partir do processo colonial instalado no hoje denominado continente americano. Isso que vai permitir a expansão do capitalismo e o processo de eurocentrismo e racialização posteriores. Ou, como disse Oswald de Andrade , “sem nós, a Europa não teria sequer sua pobre declaração de direitos”.
A invisibilização de outras tradições de leitura, mesmo no âmbito da Europa. A recuperação da obra de Bachofen , por Erich Fromm , que foi destacada inclusive por Walter Benjamin, é um bom exemplo, porque trabalha com a questão da autoridade, da desobediência, de princípios materno e paterno e, fundamentalmente, com a ideia de que se tratava de visões antagônicas de mundo e de juridicidade que estavam em disputa naquele momento histórico específico. A compreensão ocidental do mundo, nesse sentido, é limitada inclusive em relação à seletividade de seu legado.
Questionamento
O questionamento feito por Butler parte do pressuposto de algo que foi ocultado permanentemente das leituras da trilogia: se Édipo casou com Jocasta, que era sua mãe, e Antígona é sua filha, ela é, ao mesmo tempo, filha e neta de sua mãe e, portanto, a discussão passa pelo “parentesco aberrante”. Butler destaca também o relacionamento de Antígona com Polinice, seu irmão, pondo em questão a heteronormatividade de algumas leituras. Assim, a desobediência de Antígona a Creonte representa, segundo Butler, o “caráter mortal de todos aqueles amores para os quais não há um lugar viável e vivível na cultura”. Ou como afirma Rita Segato : Antígona não fala só por si, “mas também por outros, por outros não tipificáveis, cuja qualidade compartilhada é a de sentir outro desejo”. Daí a provocação: que seria da psicanálise se trabalhasse o “complexo de Antígona”, e não somente o “complexo de Édipo”? Quais as temáticas que foram silenciadas ou suprimidas?
A necessidade de descolonizar as metodologias, um repensar que as pensadoras feministas começaram a fazer, mas que o ensino de direito ainda reluta em trabalhar, como se o método fosse universal, abstrato, neutro, “científico” e, portanto, não tivesse conotações sexistas, racistas e eurocêntricas. Linda Tuhiwai Smith , uma professora maori de educação indígena, trabalhou algumas dessas questões num livro pouco conhecido no país, Decolonizing methodologies (Basingstoke: Palgrave Macmillan,1999). A teoria crítica não tem sido, no geral, crítica da metodologia que utiliza, assumindo um pensamento eurocêntrico sobre o tema. Uma crítica da “teoria crítica” e de suas metodologias também está por se desenvolver.
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