Simone Rodrigues Pinto
A Comissão Nacional da Verdade, que iniciou seus trabalhos em maio desse ano, tirou o Brasil de uma posição de conservadorismo no que diz respeito à justiça de transição. O conceito de justiça de transição surgiu no final da década de oitenta e inicio da década de noventa principalmente em resposta às mudanças políticas ocorridas na América Latina e no Leste Europeu. Da junção de demandas por justiça e por transição democrática, o termo justiça transicional (ou justiça de transição) foi cunhado para expressar métodos e formas de responder a sistemáticas e amplas violações aos direitos humanos. Assim, justiça transicional não expressa nenhuma forma especial de justiça, mas diversas iniciativas que têm por intuito reconhecer o direito das vítimas, promover a paz, facilitar a reconciliação e garantir o fortalecimento da democracia.
Até então, o Brasil havia focado suas ações nas reparações às vítimas e seus familiares, resistindo a medidas de construção da memória e da verdade sobre o período e, principalmente, de justiça em relação aos agentes da violência estatal.
Na América Latina, a maioria dos países está revendo suas leis de anistia a fim de derrogá-las ou promovendo interpretações que permitem julgamentos penais para os crimes mais graves. Dentre os dezenove países da América Latina que passaram por ditaduras militares no final do século XX, dezesseis optaram por leis de anistia geral. Ainda assim, muitos estão encontrando meios de responsabilizar os principais perpetradores, como tem acontecido no Chile, na Argentina e no Uruguai. No cone sul, somente o Brasil reitera a validade da anistia para os crimes graves como tortura, desaparecimento forçado e execuções sumárias.
No Brasil, ainda prevalecem argumentos que favorecem o esquecimento e rechaçam a possibilidade de debate amplo e informado, acessado facilmente por todos os extratos da população. Os mitos a respeito da violência estatal jazem no discurso cotidiano, impedindo que as fragilidades de nossa democracia atual sejam enfrentadas a partir de um olhar crítico sobre o passado.
Por isso, a intenção da Universidade de Brasília de criar uma Comissão da Verdade paralela, anunciada pelo Magnífico Reitor na semana passada, vem somar a outras iniciativas muito bem-vindas neste momento. Câmaras legislativas, sindicatos, organizações não governamentais e outras entidades da sociedade civil têm criado comissões da verdade para compor o cenário mais amplo do período e contribuir com a responsabilização de pessoas e instituições envolvidas com os abusos aos direitos humanos impetrados pelo Estado. A revelação dos nomes e das circunstâncias que envolveram os crimes pode gerar uma comoção nacional pela responsabilização efetiva dos criminosos, que se escondiam atrás do manto do Estado. Quem são eles, como agiam e onde estão agora? Os abusos cometidos por agentes do Estado não constituem um tema do passado, mas continuam como um fantasma para a nossa democracia.
O Brasil precisa ter uma chance para reavaliar seu passado à luz das demandas presentes por uma democracia mais justa, fundada nos pilares do respeito às leis, aos direitos humanos e às diferenças políticas e sociais. Somos exemplos na tentativa de garantir o direito à reparação das vítimas do período militar, estamos avançando na busca pela verdade e pela memória, resta-nos decidir, enquanto sociedade, que tipo de justiça queremos alcançar.
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