Publicamos a Carta dos enamorados do Núcleo de Estudos de Direito Alternativo, lida na ocasião do encerramento do V Simpósio de Direito Alternativo, realizado de 25 a 27 de agosto de 2011, em Franca, São Paulo, no campus da UNESP.
Lembrando frase de Antonio Alberto Machado, na ocasião da inauguração da sala, em 23 de outubro de 2001, "O absurdo da condição humana nasce dos anseios do homem diante do silêncio despropositado do mundo, o absurdo do Direito nasce dos anseios por Justiça, Igualdade e Democracia diante do silêncio despropositado da lei".
Segue a íntegra da carta:
"Eis, então, que, no hemisfério sul do planeta, na América Latina, no Brasil, na barranca do rio grande, ousamos nos reunir para celebrar a loucura do desviante. À margem, conclamamos a coragem de realizar a travessia, num trajeto, que, como diria o poeta, só se faz a cada passo: um caminho que se faz ao caminhar. Mas tais passos não se dão sem as mãos, dadas com os oprimidos, com os marginais, e entre nós, num compartilhamento da utopia que sabemos ser possível. Não a metafísica utopia dos sonhos irrealizáveis, mas a utopia do não lugar, sonegada, erigida como não existente, porém insistentemente perseguida. Por isso, esta reunião, este concerto, este balé, este teatro é uma oportunidade de aprendizado, compartilhamento e fortalecimento mútuo, mas é também uma celebração da renitência do conjunto de caminhantes que parte da barranca do rio grande rumo a um mundo de Justiça e Igualdade, que pode até não ser alcançado, mas sua anunciação no horizonte movimenta a caminhada de uma luta que, por si mesma, devolve o retorno libidinal de não cedermos à frigidez e à anestesia do direito pálido.
Propusemos aqui um banquete de possibilidades sinestésicas entre seres reais, com cores, olores e sabores de gente que ousa se tocar e tocar o alijado. E o vinho que degustamos em nosso banquete possui o sabor de idéias. Estas idéias, confabuladas, nos experimentam no sabor da vida. A vida, como as posições da língua, tem uma pontinha doce, mas um fundo amargo. A vida, como a língua, em seus cantos é salgada, e no meio, no meio não é nada. De doce mesmo, a vida tem apenas uma pontinha. E quando a gente pisa na vida, no chão concreto do absurdo, a gente percebe que a qualquer momento a vida pode pisar na gente. Sim, nossa vida pisa nas gentes. Este tipo de vida que não queremos para nós, que temos que enfrentar cotidianamente, com democracia, em todos os lugares e a todo tempo, esta vida miserável que exige a riqueza dos verbos difíceis, esta vida é uma realidade.
Mas o real é suscetível de magia. E se eles são feiticeiros da hipocrisia, ou como se disse, que professam a técnica da mentira, talvez possamos ser feiticeiros de flores e alegrias. Não sem esforço, insistência, intermitência, obstinação, coragem, frustração, revigoração e continuidade, ainda que a história e a vida sejam feitas de descontinuidades, de cortes epistemológicos que nos castram direitos básicos, de atitudes desmedidas que nos caçam as escolhas mais sinceras e nobres, da usurpação diária que a ordem instaura em nosso pequenino mundo humano, que ainda estamos, a passos lentos, conhecendo aos poucos.
Ousamos negar. Ousamos profanar a apropriação perversa das relações humanas, divinizada pelo direito fálico, branquelo e opulento. Não aceitamos as metonímias totalitárias que nos forçam goela abaixo este pão de forma normativo e bolorento. Transformar a parte pelo todo é um barroco torto, obra de um direito putrefato. Queremos regurgitar. Tomamos um lado na luta de classes. Movemo-nos inversamente, inserindo em todas as partes os todos da vida.
A vida que é vivida nem sempre é feita de aplausos. Na maioria das vezes, é feita de fome, de choro, de olhos cabisbaixos, de órfãos, de violência, de Severinos, de Terezinhas, de crianças maltratadas, de idosos esquecidos, de índios massacrados, de negras usurpadas. Até quando silenciar as cantigas de roda e os direitos que brotam das sementes? São tantos e tantos lugares em que o amor foi amado sem sabor, amor amado sem amor, amor que se fez de rogado, amor que ficou calado, amor amarrado, torturado, estuprado. Suas patentes, seus rótulos, seus maquinários mercadológicos, seus aparatos militares, suas normatividades nos arrancaram o direito de amar a vida em sua pureza natural, em nossas colheitas, nas frutas da terra e nos frutos da consciência livre.
Então, viemos aqui lutar pelo direito de amar. Amar é um direito difuso, embora amar nos deixe tantas vezes confusos. O retorno do conteúdo ideológico ao direito de formas puras nada mais é do que o retorno do amor àquelas e àqueles que foram chamados operadores de direitos. Afinal, operadores de direitos necessariamente lidam com as dores dos sujeitos. Sendo assim, precisam estar juntos, tocando-se mutuamente, reconhecendo-se um no outro, procurando-se encontrar fora deste invólucro que denominaram de eu. Porque o eu só pode ser sendo nós. Podemos por fim lembrar os versos socialistas de Tiago de Mello:
É tempo sobretudo
de deixar de ser apenas
a solitária vanguarda
de nós mesmos.
Se trata de ir ao encontro.
(Dura no peito, arde a límpida
verdade dos nossos erros.)
Se trata de abrir o rumo.
Os que virão, serão povo,
e saber serão, lutando.
Franca, 27 de agosto de 2011.
Subscreve esta carta os enamorados do Núcleo de Estudos de Direito Alternativo (NEDA), da UNESP/Franca
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