Por Patricia Vilanova Becker*
A capa da edição digital do jornal Corriere della Sera traz a foto de sutiãs formando as cores da bandeira francesa em uma janela parisiense. A imagem me imobiliza. Me pergunto o que queria expressar o editor (um homem? Um grupo de homens?) quando escolheu a foto para estampar a notícia central. As mulheres, representadas de maneira estereotipada pelo simbolo da femme fatale, estariam engajadas na luta de Hollande quando afirma que “a França fara de tudo contra o terrorismo, sem piedade, para proteger os nossos filhos”? Ontem, os jornais italianos noticiavam que Paris amanheceu com as cores da bandeira francesa em suas janelas, e que o presidente François Hollande afirmou que “os autores das tragédias de Paris mataram em nome de uma causa louca e de um Deus traído.
Na noite de 13 de novembro, não demorou muito para que a noticia chegasse ao Whatsapp dos amigos que estavam comigo. E logo, ao Facebook. A rapidez com que a notícia chegou nas minhas redes brasileiras foi igual a que chegou nas minhas redes italianas. E a sensação era de que os atentados haviam ocorrido no quintal de todos nós. No quintal do "nosso" mundo pretensamente ocidental. Minhas redes, compostas por ativistas brasileiras, latinas e um punhado de europeias, foi inundada por um debate cada vez mais intenso e presente: quais são as mortes que merecem ser choradas? Entre análises dicotômicas, humanismos, (pós)colonialismos, eurocentrismos e relativismos vários, minha suspeita era apenas uma: o Sul do mundo quer reivindicar o seu próprio luto. As subalternas querem chorar pela morte dos seus irmãos e irmãs subalternizadas. Queremos chorar nossa própria dor.
Deste lado de cá, os jornais noticiam que Hollande encontrou o presidente Vladimir Putin em Moscou para definir as ações coordenadas entre Rússia e França. "Estamos prontos para este trabalho conjunto, o consideramos absolutamente necessário, e nesse sentido nossas posições coincidem”, afirma Putin. A Alemanha comunicou que mandará o seu caça “Tornado” e um navio de guerra. No Reino Unido, o premier David Cameron propôs ao parlamento o envio de misseis britânicos, já enviados ao Iraque, também para a Síria: “Seria equivocado para a Gra-Bretanha confiar sua própria segurança a outros países. Devemos combater estes terroristas agora”, noticiam os jornais. E na Itália, a mídia fala da posição frágil de Renzi, que não estaria oferecendo uma ajuda significativa à Paris. Mas não esqueçamos dos Estados Unidos de Obama, que desde o início não deixou duvidas de qual política imperaria: “França e EUA estão unidos, em total solidariedade para levar a justiça a esses terroristas”.
Na Itália, em uma Bologna progressista e estudantil, dias antes do atentado em Paris, a extrema direita do partido Lega Nord com Matteo Salvini e Berlusconi invadiu a Piazza Maggiore, que foi bravamente defendida pela esquerda antagonista, que por sua vez foi covardemente reprimida pela policia fascista. Uma corrente humana de jovens, estudantes, imigrantes, trabalhadoras reivindicavam que Bologna era “rossa” - vermelha nos muros e no espirito. Como resposta, gritos de ódio racista insultavam imigrantes, acompanhados de saudações do tempo de Mussolini. Os jornais italianos falam em “crise global”, como manda a cartilha eurocêntrica. Ao que tudo indica, os muros da Europa já não conseguem mais manter do lado de fora as vidas precarizadas pelas guerras que sustenta e pela desigualdade que gera. Ísis, muçulmanos, terrorismo, refugiados, segurança, imigrantes, religião, ódio. Palavras que estampam as capas dos jornais lado a lado sugerindo um mesmo universo semântico e contribuindo para a ignorância generalizada.
Voltamos às redes sociais e às mortes que merecem ser choradas: demonstrar solidariedade colocando um filtro da bandeira francesa na foto de perfil? Colocar um filtro representando a dor de Mariana? Comentaristas falaram em hierarquização das dores, em indiferença diante das mortes de Paris. De alguma forma, compartilhar notícias sobre pessoas mortas em países subalternos como Síria e Palestina parecia um manifesto de indiferença às mortes de Paris ou uma tentativa de ofender a dor francesa. O luto francês, por alguns dias, tornou-se o luto dos lutos. Chorar qualquer outra morte parecia uma afronta à dor francesa – a dor legitima. Judith Butler, filosofa estadunidense, lembra na obra Precarious Life que as vidas precárias são choradas por outras vidas precárias. Nossos mortos são chorados no fundo de nossos quintais subalternos, baixinho, para que nosso pranto não incomode o sono dos vizinhos do Norte. Entretanto, somos convocadas continuamente para fazer figuração no funeral dos patrões: precisam do nosso pranto para nos convencer de que sua dor é universal. E nossas lágrimas são utilizadas para justificar políticas transnacionais de medo e violência. Por ora, escolho chorar Mariana, Síria, Palestina, e todas as outras que são milhares.
*Patrícia Vilanova Becker integra o Grupo de Pesquisa O Direito Achado na Rua; mestranda em Direito pela UnB, participa atualmente do Programa Erasmus Mundus Master´s Degree in Women's and Gender Studies na Universidade de Bolonha e Universidade de Oviedo.
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