Fábio de Sá e Silva*
No título do último livro organizado por José Geraldo de Sousa Junior, encontra-se enunciada a promessa de obra voltada a examinar a “concepção” e a “prática” de O Direito Achado na Rua, escola de pensamento jurídico que há mais de três décadas ele fundou na Faculdade de Direito da UnB, na esteirado pensamento e da crítica do falecido professor Roberto Lyra Filho.
Ao abrir o livro, porém, leitores e leitoras se depararão com um pouco mais que a sugestão da capa. Isto porque, além de um registro sistemático dos fundamentos (“concepção”) e das iniciativas (“prática”) em torno dos quais a referida escola se constituiu, o livro também realiza a importante tarefa de confrontar as críticas que a ela foram opostas e mapear os desafios e possibilidades com os quais ela hoje se defronta.
Embora as críticas baseadas em má-compreensão (ou mesmo em má-fé) em relação a O Direito Achado na Rua sejam as que atraem maior visibilidade nas redes sociais ou mesmo em ambientes ditos acadêmicos, outras tantas, como reconhecem os autores, são produto do saudável confronto de posições a partir do qual o conhecimento científico é capaz de avançar. Ao examiná-las em profundidade, portanto, o livro confere densidade e atualidade a argumentos que desde sempre animam os que integrantes da escola à qual se refere.
Para os propósitos de uma resenha, talvez não seja impreciso dizer que todas estas críticas remetem a um mesmo elemento conceitual, o qual subjaz a O Direito Achado na Rua desde suas formulações iniciais por Roberto Lyra Filho: trata-se do pluralismo em sentido político e jurídico – ou seja, a compreensão de que diferentes expectativas normativas e, no limite, diferentes ordens jurídicas coexistem na sociedade, para além daquelas (estatais) que, em determinada configuração espaço-temporal, se afirmam como hegemônicas.
Os críticos alertam para os riscos de tal pluralismo, eis que nem sempre essas outras ordens político-jurídicas são regidas pelos mesmos compromissos democráticos que inspiram os estados modernos e que ganham especial representação na forma constitucional.
Mas contra esta legítima preocupação, os autores e as autoras esclarecem que O Direito Achado na Rua jamais manifestou preferência por ordens não estatais. Ao contrário, O Direito Achado na Rua cuida apenas de reconhecer essas ordens como dados sociológicos, vislumbrando, na tensão que elas estabelecem com as ordens estatais, desafio permanente às categorias e práticas enunciativas do que seja o direito posto.
Eis porque, em termos teóricos, O Direito Achado na Rua é plenamente compatível com diversas abordagens contemporâneas em direito e nas demais ciências sociais, tais como o novo constitucionalismo, a teoria dos sistemas, o procedimentalismo deliberativo, ou o pluralismo jurídico, no estrito sentido que lhe atribuem a sociologia e a antropologia do direito.
O que, todavia, não permite que O Direito Achado na Rua se dilua nas trivialidades das grandes teorias, ao mesmo tempo em que se lhe transforma em poderoso instrumento de política jurídica, é o compromisso genético que esta escola possui para com aqueles que lutam pela maximização das liberdades individuais e sociais. Tarefa esta que, em um país ainda marcado por imensas desigualdades, como o Brasil, situa-a no campo dos que aspiram por mudanças estruturais em nossa sociedade. Isto é nítido na história conceitual de O Direito Achado na Rua – onde se destacam, por exemplo, categorias como “práticas instituintes de direito” e “sujeito coletivo de direito” –, mas principalmente nas “exigências críticas” que ele impõe à prática universitária, voltadas, na pesquisa, no ensino, e na extensão, a aprender com os oprimidos.
Mas mesmo quando opera nesta tradicional zona de conforto de O Direito Achado na Rua, o livro apresenta reflexividade e inovação. Isto porque, se nos anos 1980 e 1990 a tônica de O Direito Achado na Rua recaía sobre a ação dos chamados “novos movimentos sociais”, a “concepção” e a “prática” desta escola nos anos 2010 se mostra sensível a novas formas de ação social (agency), tendo em vista novas demandas, como a democratização da mídia; novos meios de organização, como as redes sociais; e novas estratégias, que contemplam, por exemplo, a participação em espaços deliberativos no interior do Estado. Este quadro requererá novas abordagens, novos instrumentos, e novos contextos institucionais por parte dos candidatos a sujeitos cognoscentes, prefigurando uma nova agenda epistemológica, metodológica, e política para O Direito Achado na Rua.
Ainda é cedo para prever como essas proposições, especialmente nesta dimensão mais inovadora, repercutirão na renovação do direito brasileiro. É certo, porém, que representam expressão única de vitalidade de uma escola de pensamento jurídico no país, como resultado da pertinência de suas premissas, da competência de suas lideranças, e da energia das suas novas gerações de quadros – para os quais este novo livro será, sem sombra de dúvida, um recurso inestimável.*FABIO DE SÁ E SILVA, Research Fellow no Centro de Profissões Jurídicas da Harvard Law School SERVIÇO Roda de conversa sobre o livro O direito achado na rua: concepção e prática Coordenador: José Geraldo de Sousa Junior Editora: Rio de Janeiro/Lumen Juris, 2015. 268 páginas Dia: 23, no Balaio Café R$ 64,00 (preço de lançamento)
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