O Direito Achado na Rua: nossa conquista é do tamanho da nossa luta

quarta-feira, 27 de dezembro de 2023

 

O mercado de carbono e o direito dos povos xinguanos

Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito

Ewésh yawalapiti waurá. O mercado de carbono e o direito dos povos xinguanos. Dissertação de Mestrado defendida na Faculdade de Direito – Programa de Pós-Graduação em Direito. Brasília: UnB, 2023, 119 fls.

Participar da Banca Examinadora dessa dissertação, que teve a orientação do professor Antonio Escrivão Filho, representou para mim, a oportunidade de agregar ao repositório de temas sobre a questão indígena, camponesa, quilombola e de seus direitos autenticamente construídos, a amplificação da contribuição oferecida por O Direito Achado na Rua, sua concepção e prática.

A dissertação defendida por Ewésh Yawalapiti Waurá, vem juntar-se a relevantes trabalhos desenvolvidos sob a perspectiva de O Direito Achado na Rua (por isso mesmo uma expressão inscrita como palavra-chave no seu enunciado catalográfico.

Relaciono aqui, sem completar o rol, alguns desses trabalhos, indicando o modo como os resenhei a partir de minha Coluna Lido para Você, publicada semanalmente no Jornal Estado de Direito:

https://estadodedireito.com.br/29767-2/  (O RETORNO DE XAWARA NO TERRITÓRIO YANOMAMI: CONFLITO, LUTA E RESISTÊNCIA. SULIETE GERVÁSIO MONTEIRO (SULIETE BARÉ).

Incluo também, desde que fiz recensões no mesmo espaço crítico, outros estudos fundantes desse campo no contexto de O Direito Achado na Rua, que abrem perspectivas de localização conforme uma linha caracteristicamente singular de interpretação da realidade.

Assim, por exemplo, o livro de Ailton Krenak  https://estadodedireito.com.br/futuro-ancestral/ agora doutor honoris causa pela UnB cujo memorial ao Conselho Universitário foi elaborado por mim, juntamente com os professores, também doutores honoris causa de nossa universidade Boaventura de Sousa Santos e Marilena Chauí. Também a tese de doutoramento em direito de Eloy Terena, de cuja banca participei na Universidade Federal Fluminense: https://estadodedireito.com.br/o-campo-social-do-direito-e-a-teoria-do-direito-indigenista/.

Algumas ligações que julgo importante fazer, a propósito da dissertação de Ewésh, eu cuidei de estabelecer ao resenhar o completo estudo promovido pelo ISA – Instituto Socioambiental, conforme: https://estadodedireito.com.br/povos-indigenas-no-brasil-2017-2022/.

Entre trabalhos de aliados da causa, engajados na defesa dos direitos indígenas em sua enunciação mais emancipatória, também do ISA – https://estadodedireito.com.br/coronavirus-covid-19-tome-cuidado-parente/https://estadodedireito.com.br/mulheres-indigenas-genero-etnia-e-carcere/https://estadodedireito.com.br/as-teses-juridicas-em-disputa-no-stf-sobre-terras-indigenas/https://estadodedireito.com.br/luis-de-camoes-lima-boaventura-autodemarcacao-territorial-indigena-uma-analise-da-via-acionada-pelos-munduruku-face-o-abandono-das-demarcacoes/https://estadodedireito.com.br/nossa-historia-nao-comeca-em-1988-o-direito-dos-povos-indigenas-a-luz-da-justica-de-transicao/.

Não faltaram nesse catálogo, contribuições a partir de contexto continental, latino-americano, relevo para as iniciativas do IIDS – Instituto Internacional Derecho y Sociedad, dirigido por Raquel Yrigoyen Fajardo, cuja defesa dos direitos humanos internacionais dos povos originários a erigem em uma das vozes mais respeitadas nesse campo. Menciono, aliás, como testemunho e colaboração: https://estadodedireito.com.br/memoria-del-i-curso-internacional-interdisciplinario-e-intercultural-proteccion-internacional-de-los-derechos-humanos-de-pueblos-indigenas/;  e https://estadodedireito.com.br/crisis-de-representacion-politica-y-demandas-indigenas-para-la-descolonizacion-del-estado/.

Menciono por fim, por se constituir uma abordagem que tal como Ewésh quer fundamentar os modos próprios de apropriação segundo seus direitos próprios  dos bens econômicos e materiais no interesse dos direitos originários dos povos indígenas, dois importantes trabalhos, uma tese e uma dissertação, que tive a oportunidade de orientar.

A tese de Roberta Amanajás Monteiro. “Qual desenvolvimento? o deles ou o nosso?”: a UHE de Belo Monte e seus impactos nos direitos humanos dos povos indígenas. 2018. 375 f., il. Tese (Doutorado em Direito)—Universidade de Brasília, Brasília, 2018. A tese, conforme resumo lançado no repositório de teses da UnB (http://icts.unb.br/jspui/handle/10482/34052), “trata da tensão entre o desenvolvimentismo e os direitos humanos a partir do estudo de caso da usina hidrelétrica de Belo Monte e os seus impactos sobre os povos indígenas Arara da Terra Indígena (TI) Arara da Volta Grande e Juruna da TI Paquiçamba. A pergunta que norteia a tese interpela como ocorre a tensão entre projetos de desenvolvimento e os direitos humanos dos povos indígenas e se os conflitos se inscrevem na matriz colonial de poder. A análise do tema fundamenta-se na teoria da Colonialidade do Poder de Aníbal Quijano e nos autores do pensamento decolonial. A metodologia eleita implicou pesquisa empírica que forneceu os argumentos da incidência da ideia de raça no percurso do licenciamento ambiental do empreendimento. A partir dai são analisadas as tensões evidenciadas nas entrevistas que apontaram para a negação da condição de sujeito de direitos e de conhecimento aos povos indígenas e, consequentemente, do exercício dos seus direitos territoriais, à natureza, ao modo de vida e direito à participação e consulta prévia. Ao fim, são apresentados elementos a partir das narrativas dos indígenas e outros atingidos para pensar um outro desenvolvimento”.

E, muito pertinente pela proximidade de compreensão do interesse econômico e político da questão examinada por Ewésh, o estudo paradigmático de Renata Vieira: https://estadodedireito.com.br/povos-indigenas-povos-e-comunidades-tradicionais-e-agricultores-e-familiares-a-disputa-pelo-direito-no-conselho-de-gestao-do-patrimonio-genetico-cgen/.

Encontro o próprio Ewésh pontificando em estudos de alta relevância, envolvendo temas desafiadores para a afirmação desses direitos. Eu o encontro, em boa companhia jurídica e acadêmica, em Entender para implementar: Caminhos para uma hermenêutica segura quanto à consulta prévia aos povos e comunidades tradicionais Bruno Walter Caporrino; Ewésh Yawalapiti Waurá; José Heder Benatti; Felício Pontes Júnior, publicado em Tribunais brasileiros e o direito à consulta prévia, livre e informada. SILVA, Liana Amin Lima da et al (Coord.). São Paulo: Editora Instituto Socioambiental/CEPEDIS, 2023, 322 p. (para download: https://acervo.socioambiental.org/acervo/publicacoes-isa/tribunais-brasileiros-e-o-direito-consulta-previa-livre-e-informada).

Note-se que aqui apenas recortei abordagens que se referem ao tema indígena. Não aludi às que focalizam as perspectivas camponesas e quilombolas. Embora, nesse aspecto, considerando a questão estudada por Ewésh – questões de mercado de crédito carbono e sua incidência nos Territórios Indígenas – eu devesse por em relevo essa capacidade protagonista de novos sujeitos coletivos de direito – indígenas, quilombolas, camponeses – que se empoderam politicamente de força instituinte e simultaneamente constituinte para afirmação de direitos, em temas de radical convocação.

Tratei disso, em co-organização editorial, em livro da Série O Direito Vivo (O Direito Achado na Ruahttps://estadodedireito.com.br/sujeitos-coletivos-so-a-luta-garante-os-direitos-do-povo/, aqui mencionado para chamar a atenção do artigo de pesquisador sem-terra egresso dos programas de educação do campo (Pronera) – O Dia em que o Sujeito Coletivo de Direito Ocupou a Bolsa de Valores: o Encontro Inusitado entre a CVM e o MST, no qual Diego Vedovatto, a partir dos pressupostos teóricos e metodológicos de O Direito Achado na Rua, descreve e analisa o “encontro inusitado” entre a Comissão de Valores Mobiliários – CVM e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra – MST, durante a emissão do primeiro título de crédito na modalidade de Certificado de Recebíveis do Agronegócio – CRA, aberto ao público geral na bolsa de valores brasileira, por cooperativas constituídas por agricultores sem-terra e sediadas em assentamentos de reforma agrária.

Chamo a atenção para o Resumo da Dissertação:

Esta pesquisa objetivou analisar as questões de mercado de crédito carbono e sua incidência nos Territórios Indígenas. Mercado esse que tem cobiçado cada vez mais a implementação de seus projetos nos territórios tradicionais como suposta solução para reduções de emissões de gases de efeito estufa. A problemática que se apresenta neste trabalho refere-se aos assédios crescentes das empresas de consultorias ou desenvolvedoras dos projetos Locais de REDD+, aqueles que incidem diretamente sobre os territórios ou comunidades. Isto porque está ocorrendo agora uma “segunda onda em contratos de carbono” nas comunidades indígenas, sem conhecer direito o que é mercado de carbono, os riscos que ele oferece, muito menos sobre conteúdo dos contratos que determinada comunidade está assinando. Em face disso, o presente trabalho buscou entender e compreender: 1) o que é mercado de carbono, quais as bases jurídicas e normas de sua regulamentação; 2 ) como se dá a prática com contratos de carbono envolvendo povos indígenas, quais os riscos, os requisitos e os tipos de contratos envolvidos; 3) como os povos indígenas vem se organizando para defesa dos direitos na temática de mercado de carbono, quais são os sistemas da Governança Geral do Território Indígena do Xingu e sua compreensão sobre o tema. Para tanto, metodologia para atingir os objetivos da proposta partiu de uma revisão bibliográfica sobre a temática do mercado de carbono no âmbito do direito, e para saber como se dá a celebração do contrato na prática foi realizado um estudo de caso do Projeto Florestal Carbono Suruí, dos povos Paiter Suruí, através de revisão bibliográfica e utilizando fontes secundarias como matérias jornalísticas e documentos de entidades que atuam no tema, além de fontes primárias como depoimentos dos envolvidos no projeto. Para análise do modo como os povos do Território Indígena do Xingu se organizam em relação ao tema foi utilizada essencialmente observação principalmente como o membro do mecanismo de Governança Geral do TIX, além de documentos produzidos no seu ambiente. Concluiu-se, finalmente, depois de tudo analisado sobre o tema do mercado de carbono, que os xinguanos estão no momento de entendimento melhor, ou seja, não é momento ainda de aderir ao projeto de carbono no Território Indígena do Xingu.

E logo o seu Sumário:

INTRODUÇÃO

CAPÍTULO 1. MERCADO DE CRÉDITO DE CARBONO

1.1 O que é crédito de carbono1.2 Mercado Regulado do Crédito de Carbono

1.3 Mercado voluntário do crédito de carbono

1.4 Histórico de Negociações do REDD+ e Conceito

1.4.1 Mercado de carbono e direito dos povos indígenas

1.4.2 Projetos de REDD+

1.4.3 REDD+ Jurisdicional

1.4.4 Projetos de REDD+ Local

CAPÍTULO 2 – O CASO DOS POVOS PAITER SURUÍ: PLANO DE VIDA PROJETO CARBONO SURUÍ

2.1 Os Paiter Suruí e suas organizações sociais antes de depois do contato oficial

2.1.1 Os Paiter Suruí e o pioneiro Projeto de Crédito de Carbono Local

2.1.2 Outras versões e opiniões sobre o REDD+ e o Projeto de Carbono Suruí

2.2 Noções gerais e tipos de contrato de carbono

2.2.1 Noções gerais para compreender os contratos de crédito de carbono

2.2.2 Algumas espécies de contrato de crédito de carbono

2.3 Espécies de contratos assinados pelos Paiter Suruí

CAPÍTULO 3 – GOVERNANÇA GERAL DO TIX EM FACE DO MERCADO DE CARBONO

3.1 Governança Geral do Território Indígena do Xingu

3.1.1 Estrutura da GGTIX

3.2 Plano de Gestão do Território Indígena do Xingu

3.3 Protocolo de Consulta dos Povos do Território Indígena do Xingu CONSIDERAÇÕES FINAIS

FONTES E REFERÊNCAIS BIBLIOGRÁFICAS

ANEXOS – ASSOCIAÇÃO DO TERRA INDÍGENA XINGU

Esclarecendo a motivação da pesquisa, o Autor parte da constatação de que “os povos indígenas têm recebido várias propostas das empresas de consultarias ou desenvolvedoras dos projetos de carbono, oferecem coisas e benefícios promissores. Mas o que é mercado de carbono? O que é preciso saber sobre o mercado de carbono no ponto de vista dos povos xinguanos? Quais os tipos de contrato e o que a comunidade precisa saber e fazer para se posicionar sobre o contrato de carbono na defesa dos seus direitos? Quais os riscos que esse cenário apresenta para a promoção e defesa dos direitos para os Povos Indígenas do Xingu, e como os povos do TIX vem se posicionando em relação ao tema?”. Por isso ele considera que essas são questões que deram ensejo a pesquisa.

Nesse passo, ele se posiciona estabelecendo como objetivos do seu estudos “entender e compreender: 1) o que é mercado de carbono, quais as bases jurídicas e normas de sua regulamentação; 2 ) como se dá na prática com contratos de carbono envolvendo povos indígenas, quais os riscos, os requisitos e os tipos de contratos de crédito de carbono; 3) como os povos indígenas vem se organizando para defesa dos direitos na temática de mercado de carbono, quais são os sistemas da Governança Geral do Território Indígena do Xingu e sua compreensão sobre o tema”.

Seguindo o seu roteiro para a Dissertação, no Capítulo 1 ele realiza uma revisão bibliográfica sobre a temática do mercado de carbono no âmbito do direito para saber como se dá a celebração do contrato, e foi utilizada a observação e participações em eventos especializados no tema, além de participar em reuniões em âmbito nacional sobre a temática e análise de fontes primárias, como os Contratos Florestal Suruí.

De acordo com a sua proposta, “para entender como se dá o contrato de carbono na prática, e para conhecer os riscos e compreender os tipos de contratos foi realizado o estudo de caso do Projeto Florestal Carbono Suruí, desenvolvido pelos povos Paiter Suruí, através da revisão bibliográfica e utilização de fontes secundarias como matérias jornalísticas e documentos de entidades que atuam no tema, além de fontes primárias como depoimentos dos envolvidos no projeto. Para análise do modo como os povos do TIX se organizam em relação ao tema, foi utilizada essencialmente observação participante, principalmente como membro do mecanismo de Governança Geral do TIX, e análise dos documentos produzidos no seu ambiente, além de revisão bibliográfica sobre direitos dos povos indígenas”.

Portanto, nesse primeiro capítulo procura o Autor “compreender sobre mercado de carbono em geral, nas perspectivas da Convenção-quadro das Nações Unidas sobre as Mudanças Climática (UNFCCC) e Protocolo de Quioto, bem como nos outros acordos firmados no âmbito da Convenção, Acordos de Paris entre outros, posteriormente sobre as modalidades dos mercados regulado e voluntário. Depois debruça-se um pouco sobre o histórico de negociação do REDD+, com a participação dos indígenas e trazer também conceito básico sobre REDD+. Em seguida aborda-se sobre programas de REDD+, como as metodologias dos programas de REDD+ jurisdicional e local”.

No Capítulo 2 apresenta o caso dos Povos Paiter Suruí.  O Autor toma “o Plano de Vida Projeto Carbono Florestal Suruí, onde analisa-se suas organizações sociais antes e depois do contato oficial. Depois procura compreender do porquê deles serem os pioneiros no projeto local de REDD+, procura também entender sobre outras versões e opiniões sobre o REDD+ e o Projeto de Carbono Suruí. E depois procura compreender noções gerais sobre contrato de crédito de carbono, bem como das espécies de contrato de carbono. E por fim, espécies de contratos assinados pelos Paiter Suruí”.

Finalmente, no Capítulo 3 volta-se para a “Governança Geral do Território Indígena do Xingu (GGTIX) enquanto organização política dos povos xinguanos, abordando sobre Plano de Gestão Territorial como seu instrumento político e o Protocolo de Consulta do TIX como ferramenta para efetivação de direitos no que tange aos direitos de consulta livre, prévia e informada, por fim, para concluir abordar finalmente sobre o posicionamento do povo TIX em relação ao mercado de carbono”.

De toda a análise elaborada pelo Autor, destaco, nas suas conclusões, ainda seguindo a linha interpretativa do Autor:

Além de buscar compreender o mercado de carbono no aspecto geral como suposta solução das reduções emissões de gases de gases de efeitos estufa (GEEs) para conter a temperatura do planeta, era estudar sobre o projeto dos Paiter Suruí, como foi construído ou desenvolvido, se de fato deu certo, até onde esse projeto chegou, o que deu certo, então o que deu errado, quem financiou esse projeto, quem eram os parceiros, compradores, como ocorreu as vendas e compras dos créditos de carbono, quais os contratos foram firmados, se esse projeto ainda está funcionando atualmente, ou seja, compreender melhor como esse projeto Local de REDD+ incide nos territórios indígenas, sobretudo no TIX. Isso porque, como já explicitado em várias passagens do texto, os assédios das empresas desenvolvedoras de projetos estão mais fortes. E nós xinguanos precisamos compreender melhor o que é isso, nós representantes das nossas organizações e institucionais representativas, nós temos obrigação de alertar nossos caciques para não caírem na conversa desses assediadores.

Por isso, foi necessário trabalhar sobre a organização política dos povos xinguanos, abordando a Governança Geral ou interna dos xinguano enquanto espaço político, onde os xinguanos tomam decisões coletivas sobre temas sensíveis ao TIX, como mercado de carbono, se aquilo possa afetar a vida tradicional dos povos, Plano de Gestão Territorial como instrumento da GGTIX, nas orientações sobre convivências interna e/ou externa dos povos, e Protocolo de Consulta enquanto ferramenta de efetivação de direitos de participação e consultas nas tomadas de decisões dos governos ou terceiros.

A sua conclusão é radical: “depois de tudo analisado sobre o como esse mercado de carbono se comporta, dizer que os xinguanos estão no momento de entendimento melhor, ou seja, não é momento ainda de aderir o projeto de carbono no Território Indígena do Xingu”.

A conclusão de Ewésh coincide com o posicionamento formal dos caciques e lideranças do povo Suruí, em audiência promovida pela 6ª Câmara do Ministério Público Federal, pedindo “a suspensão imediata desse projeto de carbono, que está matando o povo Surui” (https://www.ihu.unisinos.br/540189-os-surui-e-o-projeto-carbono-para-que-o-mundo-saiba).

Sobre esse polêmico projeto Carbono Florestal Suruí, iniciado em 2007, considerado o primeiro do gênero implantado em terra indígena em nosso país, e para os Suruí e para a delegação dos povos indígenas de Rondônia, deveria ser o último, na expectativa de que nãonão se repita em nenhuma terra indígena.

Para o CIMI – Conselho Indigenista Missionário, presente na audiência, esse tipo de projeto é parte de uma política do capitalismo verde e neocolonialismo. O Cimi, em nota de fevereiro de 2012, denunciou veementemente a insistência de implantação de projetos de REDD nos territórios indígenas, a partir dos direitos e da visão desses povos “esses projetos transformam a natureza em mercadoria, a gratuidade em obrigação, a mística em clausula contratual o bem estar em supostos ‘benefícios do capital’. É a mercantilização do sagrado e a coisificação das relações humanas em interface com o meio ambiente” por isso “quer juntar-se aos demais setores organizados que dizem NÃO à financeirização da natureza, NÃO à economia verde e NÃO ao mercado de carbono” (Porantim, setembro de 2014).

Por isso que, tal como Ewésh, em sua conclusão, o documento entregue ao Ministério Público Federal é taxativo em seu apelo: “Nossa preocupação é dobrada quanto aos projetos de REDD (captura de gás carbono), que vem ameaçando a existência dos povos indígenas, em especial o povo Suruí, que já se encontra com projeto implementado, autorizado pela FUNAI, em parceria com a ONG Canindé que articula o projeto em terras indígenas, o IDESAN, que faz o levantamento do carbono, o ECAN, e a Forest Trand – organização norte-americana; Esses projetos ameaçam a vida e a existência dos povos que ficam impossibilitados de realizar a produção agrícola, a coleta de mel, a caça, a pesca, bem como a reprodução cultural. Esse projeto já em andamento no território Suruí e tem provocado uma divisão e uma fatal destruição da organização social do povo, acarretando inclusive riscos de violência entre os povos

Tem lastro a fundamentação proposta na Dissertação? Os argumentos de Ewésh ancoram esses fundamentos? Creio que sim. Para tanto, valendo-me do mais recente livro do agudo Pedro Brandão – Colonialidade do Poder, Biodiversidade e Direito. Raça, classe e capitalismo na construção da legalidade. Pedro Brandão. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2023, tudo se arrima na densidade de uma afirmação de base política.

Com efeito, em seu livro (https://estadodedireito.com.br/colonialidade-do-poder-biodiversidade-e-direito-raca-classe-e-capitalismo-na-construcao-da-legalidade/) Pedro Brandão avança, tal como Ewésh, sobre uma questão que ele acentua, como hipótese para o caso concreto que estuda, retomando uma perspectiva que já havia sido proposta em trabalho seu anterior, entretanto, “numa deriva para uma leitura estrutural sobre a própria formação da legalidade, levando a uma conclusão que é resultado da reflexão central para os dois trabalhos: “a legalidade como fruto de uma disputa assimétrica e violenta de poder, articulada mutuamente pelos diferentes eixos da colonialidade, confrontando a leitura comum de que a legitimidade da legislação reside, necessariamente, na sua natureza ‘democrática’, ‘racional’, ‘legítima’ e ‘mediada’ entre os interesses em disputa”.

A minha questão acerca do lastro procede das nuances do que tem sido assimilável como condição de transição entre paradigmas de desenvolvimento. A ministra dos Povos Indígenas, Sônia Guajajara, por exemplo, em manifestação recente, voltou a expressar preocupação, no caso, com a exploração de petróleo e gás na Bacia do Amazonas, pouco antes da Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP) leiloar 38 blocos exploratórios de 11 bacias sedimentares: Espírito Santo, Paraná, Pelotas, Potiguar, Recôncavo, Santos, Sergipe-Alagoas, Tucano, Santos e Campos, além da Amazonas.

E ela especificou sua preocupação (https://www.ihu.unisinos.br/635223-ministra-diz-que-exploracao-de-petroleo-na-amazonia-preocupa-indigenas), afirmando que os povos indígenas são “povos resistentes e vamos continuar lutando, fazendo a resistência que precisa ser feita para evitarmos a exploração dentro dos territórios indígenas”, acrescentou a ministra, destacando o fato do leilão ocorrer no último dia da Conferência das Nações Unidas sobre Alterações Climáticas (COP28), evento realizado em Dubai, nos Emirados Árabes, e cujos participantes aprovaram incluir, no documento final, menção à importância do mundo alcançar a “neutralidade carbônica” até 2050, por meio de uma transição da era dos combustíveis fósseis, principais causadores das mudanças climáticas”.

Ela justificou que “Na Conferência do Clima [COP28], que termina hoje, acabaram de apresentar um documento em que a maioria dos países entende que é preciso fazer uma transição energética urgente ou não vamos conseguir evitar chegar ao ponto de não retorno [ponto a partir do qual os danos causados ao planeta serão irreversíveis, passando a ameaçar a vida humana e de outras espécies]”, afirmou a ministra, classificando como “lamentável que muitos países necessitem fazer esta transição energética a longo prazo”.

Para estabelecer o entendimento de que “Precisamos muito dessa consciência também por parte da sociedade, de entender esta emergência que vivemos para, inclusive, ajudar a pressionar os governos. Temos que sair deste modelo [energético, baseado no uso de combustíveis fósseis]; uma transição é realmente necessária.”

A questão é estabelecer as condições, as mediações, os limites, e as possibilidades dessa transição. No caso do mercado de carbono, isso está dado? Os povos xinguanos também assim se posicionam?

quinta-feira, 21 de dezembro de 2023

 

Tribunais brasileiros e o direito à consulta prévia, livre e informada

Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.

 

Tribunais brasileiros e o direito à consulta prévia, livre e informada. SILVA, Liana Amin Lima da et al (Coord.). São Paulo: Editora Instituto Socioambiental/CEPEDIS, 2023, 322 p. (para download: https://acervo.socioambiental.org/acervo/publicacoes-isa/tribunais-brasileiros-e-o-direito-consulta-previa-livre-e-informada)

 

                  

 

 

A publicação é composta por coletâneas de decisões relativas ao direito de consulta livre, prévia e informada obtida junto aos Tribunais Regionais Federais (TRFs) de todas as regiões do país, bem como em decisões do Superior Tribunal de Justiça (STJ), do Supremo Tribunal Federal (STF) e da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Além da coletânea de decisões, o livro traz um texto analítico por tribunal, onde especialistas avaliam a atuação dos tribunais no tema.

Essa nota editorial está na página do ISA – Instituto Socioambiental, responsável pela publicação da obra (https://www.socioambiental.org/noticias-socioambientais/livro-apresenta-coletanea-comentada-de-decisoes-de-tribunais-brasileiros).

A notícia cuida de estabelecer a origem do projeto, a organização do livro e seu escopo (fundamentos e objetivos. Remeto a essa nota para guardar autenticidade relativamente à obra. Contudo, a versão digital do livro, está acessível para os interessados na jurisprudência brasileira no direito de consulta a povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais

Conforme essa nota, “a publicação é composta por coletâneas de decisões relativas ao direito de consulta livre, prévia e informada obtida junto aos Tribunais Regionais Federais (TRFs) de todas as regiões do país, bem como em decisões do Superior Tribunal de Justiça (STJ), do Supremo Tribunal Federal (STF) e da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Além da coletânea de decisões, o livro traz um texto analítico por tribunal, onde especialistas avaliam a atuação dos tribunais no tema”:

Cada capítulo, elaborado por um grupo dedicado de autores e autoras, mergulha em análises específicas, desde metodologias de pesquisa até discussões aprofundadas sobre jurisprudência socioambiental, racismo estrutural, efetividade do direito de consulta à luz da Convenção nº 169 da OIT, entre outros temas fundamentais para a compreensão desse direito no contexto do sistema jurídico da justiça federal no Brasil.

Assessora jurídica e coordenadora do Programa Xingu do ISA, Biviany Rojas conta que a arte de capa foi cedida pela artista Daiara Tukano e simboliza a força e a harmonia entre uma mulher indígena e a natureza, representando a luta coletiva e a união na defesa dos direitos humanos socioambientais.

“Este livro não apenas desvela o intrincado contexto das decisões judiciais relacionadas ao direito à consulta prévia, mas também aponta caminhos para promover decisões judiciais que contribuam com um futuro mais inclusivo e respeitoso aos direitos dos povos indígenas e as comunidades tradicionais”, ressalta a advogada.

Fernando Prioste, assessor jurídico do ISA, reforça que “sua importância transcende o campo jurídico, colocando em pauta um debate fundamental para o futuro da sociedade brasileira, instigando reflexões sobre diversidade, justiça socioambiental, participação social e garantia de direitos para as próximas gerações”.

A publicação desta obra não marca um ponto final, mas sim um convite para a continuidade desse diálogo, da busca por uma justiça mais ampla e inclusiva, em que a diversidade seja não apenas reconhecida, mas celebrada e protegida em todos os âmbitos da vida nacional.

Entre as propostas apresentadas no documento está o “aperfeiçoamento do marco regulatório do licenciamento ambiental”. Ou seja, o Governo quer mudar a forma de fazer o licenciamento ambiental. Entre essas medidas está a proposta de regulamentação do direito de consulta livre, prévia e informada.

A regulamentação da Consulta já existe em alguns estados, e em alguns órgãos do Governo Federal, como no caso do INCRA para quilombolas. Mas até agora não existe uma regulamentação nacional que se aplique igualmente para todos os casos. É justamente por isso que o Governo Federal disse que vai fazer a regulamentação do direito de consulta.

As experiências da Bolívia, Venezuela, Colômbia e Equador ensinaram que a regulamentação do direito à consulta prévia é feita através de decisões políticas que, na maioria dos casos, não garantem direitos a povos indígenas e povos e comunidades tradicionais.

Confira os principais riscos de uma possível regulamentação do direito de consulta:

  1. Risco de retirar das comunidades tradicionais o direito à consulta;

Essa restrição poderia acontecer:

(I) Pelo reconhecimento de que apenas indígenas e quilombolas deveriam ser consultados, excluindo-se as comunidades tradicionais de todo o Brasil;

(ii) Pelo estabelecimento de critérios que impeçam ou limitem o direito de consulta, como fazer diferenças entre área diretamente afetada e área indiretamente afetadas nos casos de licenciamento de empreendimentos;

(iii) Pela desconsideração das várias formas de representação que cada povo indígenas, comunidade quilombola ou outras tradicionais tem;

  1. Risco de alteração da responsabilidade de quem pode e deve conduzir o processo de consulta;

Este risco está relacionado com o fato do Governo poder:

(i) Colocar a responsabilidade pela realização da consulta a órgãos públicos que não são os responsáveis pela decisão que será tomada pelo Governo;

(ii) permitir que empresas privadas com interesses nos empreendimentos possam realizar os procedimento de consulta, indo contra o estabelecido pela Convenção 169 da OIT;

  1. Risco de limitar as medidas e ações que devem ser objeto de Consulta;

Essa restrição poderia acontecer:

(i) Caso sejam criadas regras em que a consultas só devem ocorrer nos casos de empreendimentos de infraestrutura e mineração, excluindo outras decisões importantes, como projetos de lei e políticas públicas direcionadas a comunidades tradicionais e povos indígenas.

(ii) Pela definição de uma única consulta sobre um empreendimento que tem várias fases de licenciamento ambiental e de decisões de governo. Como, por exemplo, determinar que a consulta sobre empreendimentos ocorra uma única vez no licenciamento ambiental, ignorando as etapas de planejamento, ou vice-versa;

  1. Risco de padronização ou generalização dos procedimentos de Consulta;

Esse risco pode acontecer:

(i) Pelo descumprimento dos Protocolos Autônomos de Consulta, substituídos pela regulamentação geral que se aplicaria de forma igual a todos os povos e comunidades;

(ii) Por imposição de prazos rígidos para a realização do processo de consulta, incompatíveis com os tempos necessários para a realização do procedimento por cada povo e comunidade tradicional;

  1. Risco do Governo não considerar a decisão tomada no processo de consulta;

Esse risco poderia acontecer:

(i) Se não for respeitada a necessidade de que a tomada de decisão do Governo deve levar em consideração, obrigatoriamente, os resultados do processo de consulta;

(ii) Se o Governo alterar decisões sem considerar os processos de consulta, desrespeitando sua eficácia.

 Folgo identificar entre os Coordenadores da publicação: Liana Amin Lima da Silva, Biviany Rojas Garzón (Assessora jurídica e coordenadora do Programa Xingu do ISA, que conheci em encontros para discutir a questão da salvaguarda dos direitos indígenas em face de impactos de empreendimentos econômicos e traçados rodoviários em território caiapó; revi Biviany por ocasião da defesa de dissertação de Ewésh Yawalapiti Waurá, agora ao final de dezembro na UnB). E ainda, Fernando Gallardo Vieira Prioste, Rodrigo Magalhães de Oliveira, a minha caríssima e competentíssima pesquisadora Isabella Cristina Lunelli, que também se incumbiu de traduzir o prefácio, preparado por César Rodríguez-Garavito, da Universidade de Nova York.

Rodríguez-Garavito, nesse prefácio, indica os desafios complexos para interpretar a Consulta Livre, Prévia e Informada, para a sua rigorosa aplicação, mesmo quando possa afetar, ou mesmo impedir, grandes projetos econômicos ou estratégicos de interesse inclusive governamental.

De fato, diz ele, “Como fazer a ponderação jurídica entre o princípio da participação dos povos indígenas e o direito à CLPI, de um lado, e princípios como a proteção da ordem econômica, de outro? Que tipo de recursos e ordens judiciais podem ajudar a conciliar esses imperativos conflitantes? Desde uma perspectiva internacional, é muito surpreendente que boa parte das decisões sobre CLPI no Brasil, incluindo as do STF, concluam sumária e categoricamente que o direito indígena à consulta deve ceder ante razões de ordem econômica ou de ordem pública. Ao invés de um exercício de ponderação cuidadosa destas considerações opostas uma à outra, é comum que as decisões estudadas nesse livro adotem uma interpretação expansiva da ordem econômica, segundo a qual tal ordem se vê afetada até mesmo por interrupções temporárias ou parciais de obras, como usinas hidrelétricas”.

Ele toma como referência para essa questão difícil, no Brasil, “o caso emblemático da Usina Hidrelétrica de Belo Monte”, para destacar o quanto “os juízes tenderam a afirmar a prevalência categórica da ordem econômica sobre os direitos indígenas, inclusive quando há estudos científicos que mostram que o projeto econômico questionado pode ser contraproducente ou destruir ecossistemas e comunidades inteiras”.

Para ele, sem dúvida, “as interpretações desequilibradas da CLPI têm sido facilitadas pelo uso da figura processual da suspensão de liminar. Sob a ótica do direito comparado de regimes democráticos, a suspensão de liminar é uma figura exótica, na medida em que permite ao titular de um tribunal superior revogar a decisão fundamentada de um juiz inferior simplesmente invocando, sem maior argumentação, a violação do interesse ou da ordem pública. Disso, os autores deste livro concluem que a suspensão de liminar tem sido o obstáculo jurídico mais interessante à proteção efetiva dos direitos dos povos indígenas e comunidades tradicionais no Brasil”.

Retenho essa observação de Garavito porque a propósito do que ele assinala, tenho aludido, por exemplo, à observação feita pelo notável jurista Antonio Augusto Cançado Trindade, por dois mandatos Presidente da Corte Internacional de Justiça,  também juiz em  Haia, recentemente falecido. Com efeito,  Cançado  Trindade  se  referia  ao  obstáculo epistemológico do positivismo  jurídico, na  sua versão  mais vulgarizada e empobrecida, responsável por impedir relativamente à proteção dos direitos humanos, um entendimento jurisprudencial  mais  avançado  contido  em  interpretações  dinâmicas  ou  evolutivas  dos tratados  internacionais,  baldas  de  respostas  criativas  da  própria  ciência  do  direito impossibilitada  de  libertar-se  das  amarras  daquele  pressuposto  explicativo  do conhecimento jurídico. Conferir em  https://www.researchgate.net/publication/318077510_Concepcao_e_pratica_do_O_Direito_Achado_na_Rua_plataforma_para_um_Direito_Emancipatorio.

Por isso, ele diz no Prefácio, que o livro quer contribuir para oferecer uma “oportunidade e o desafio para o judiciário e a comunidade jurídica brasileira consiste em aprofundar e refinar as respostas a esse complexo embate de princípios constitucionais. Com esse fim, em vez da aplicação unilateral e sumária de mecanismos como a suspensão de liminar, os juízes e juristas encontrarão elementos de julgamento muito úteis na doutrina e na jurisprudência internacional discutida neste livro. Por meio de argumentos e decisões judiciais variadas e ajustadas a casos e contextos concretos, o direito internacional e comparado tem conseguido soluções equilibradas para tais choques de princípios e normas, que poderiam ser igualmente úteis no contexto brasileiro”.

Assim, ele arremata seu Prefácio, dizendo acreditar “que a lição que devemos aprender do que têm acontecido no Brasil e no mundo nos últimos dez anos é a seguinte: o que realmente está em jogo na consulta prévia não são os interesses particulares de povos ou comunidades específicas. No fundo, o que está em disputa é a própria vida: a dos indígenas e populações tradicionais, mas também a do resto do país, da humanidade e do planeta. Estou confiante de que este valioso livro dará aos juristas e aos juízes as ferramentas para estar à altura desse desafio nos próximos dez anos, antes que seja tarde demais”.

Outra boa surpresa foi identificar, o que já foi mencionado acima, na arte da capa, a criação de Daiara Tukano (A obra compõe um diptico de duas imagens: Bora Lutar e Bora Pra Roça. Pintadas no museu da República de Brasília para a exposição Brasil Futuro, curadoria de Lilia Schwarcz e Rogério Carvalho em 2023. Acrílica sobre alvenaria 2mx3m). Daiara, ex-aluna de arte na minha universidade, a UnB (quando fui Reitor ela era uma ativista sempre presente nas mobilizações que interpelavam o reitorado), já se afirma como uma artista nas artes plásticas, figurando em importantes mostras, inclusive internacionais, e catálogos.

Mas ela tem a densidade de uma intelectual leal a sua ancestralidade. Na UnB, no Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania (CEAM-Centro de Estudos Avançados Multidisciplinares), ela demonstrou essa autenticidade, ao desenvolver e defender sua dissertação de mestrado TUKANO, UKUSHE KITI NIISHE. Direito à memória e à verdade na perspectiva da educação cerimonial de quatro mestres indígenas. 2018. (Mestrado em Direitos Humanos e Cidadania), Centro de Estudos Avançados Multidisciplinares, Universidade de Brasília, Brasília). Aliás, assisti a defesa e de certo modo, acompanhei o desenvolvimento do trabalho, professor que sou do Programa, tendo sido a orientação da dissertação conduzida por minha esposa a professora Nair Heloisa Bicalho de Sousa.

Na Apresentação, os coordenadores expõem o processo de elaboração da obra, destacando que ela pretende suprir “escassez de pesquisas e análises sobre decisões judiciais que contribuíssem para a consolidação da jurisprudência no que diz respeito ao direito de consulta e consentimento prévio, livre e informado como garantia dos direitos coletivos, territoriais e culturais dos povos e comunidades tradicionais no Brasil”, procurando atender “um dos escopos do Observatório de Protocolos”, qual seja: “demonstrar o caráter vinculante e a juridicidade dos chamados protocolos próprios, protocolos autônomos, protocolos comunitários de consulta prévia, que surgiram como exercício da livre determinação dos povos para apontar os caminhos da consulta prévia, mostrar como o Estado deve consultar os povos, em resposta à omissão estatal em garantir efetividade à Convenção n.º 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e demais instrumentos jurídicos”.

Em seguida, é apresentado o conteúdo do livro:

No primeiro texto, Isabella Cristina Lunelli e Fernando Gallardo Vieira Prioste apresentam didaticamente a metodologia utilizada na pesquisa jurisprudencial sobre o direito à consulta prévia, livre e informada em jurisprudência socioambiental. O capítulo seguinte, de Bruno Walter Caporrino, Ewésh Yawalapiti Waurá, José Heder Benatti e Felício Pontes Júnior, se dedica à extensa jurisprudência do Tribunal Regional Federal (TRF) da 1ª Região e busca caminhos para uma hermenêutica segura quanto à consulta prévia aos povos e comunidades tradicionais. No terceiro capítulo, Júlio José Araújo Junior e Maira de Souza Moreira analisam as decisões do TRF da 2ª Região e discutem a ausência tão presente do direito à consulta prévia nessa região.

No quarto capítulo, Andrew Toshio Hayama, Inês Virginia P. Soares e Maria Luiza Grabner analisam a efetividade do direito de consulta nos julgamentos do TRF da 3ª Região à luz da Convenção n.º 169 da OIT. Já o capítulo quinto, escrito por Carlos Frederico Marés de Souza Filho e Isabela da Cruz, discute o racismo estrutural nos estados do sul do Brasil e sua relação com a jurisprudência do TRF da 4ª Região. No capítulo seguinte, Jeferson Pereira, Clarissa Marques e André Carneiro Leão analisam a aplicação do direito à consulta prévia e do critério de autoatribuição em decisões do TRF da 5ª Região. O sétimo capítulo, escrito por Renan Sotto Mayor, Silvano Chue Muquissai, Loyuá Ribeiro Fernandes Moreira da Costa e Tiago Cantalice, apresenta uma análise decolonial da atuação do Superior Tribunal de Justiça no que diz respeito ao direito à consulta. e Prof. Dr. Joaquim Shiraishi. Agradecemos, especialmente, o apoio da Ford Foundation concedido ao Observatório de Protocolos Comunitários, que nos oportunizou o fomento de bolsas de pesquisa (convênio Ford Foundation/PUCPR) entre os anos de 2020 e 2022, fundamental para a concretização desta pesquisa.

No oitavo capítulo, Juliana de Paula Batista, Luiz Eloy Terena, Luiz Henrique Reggi Pecora e Vercilene Francisco Dias discutem a relação do Supremo Tribunal Federal com a consulta prévia, livre e informada. Daniel Lopes Cerqueira e Biviany Rojas Garzón, no nono capítulo, apresentam uma coletânea e sistematização analítica de decisões da Corte IDH sobre o direito à consulta e consentimento prévio, livre e informado de povos indígenas e tribais. Por fim, no capítulo conclusivo, Rodrigo Magalhães de Oliveira, Liana Amin Lima da Silva e Joaquim Shiraishi Neto tecem, juntos, a análise sistemática e um balanço crítico da jurisprudência brasileira.

A obra tem caráter único, enquanto repositório crítico de jurisprudência de tribunais. Atualmente há todo um esforço acadêmico, organizacional e funcional no sentido de dar evidência ao alcance da Convenção 169, da OIT, que trata da Consulta. Anoto, por exemplo, Convenção n. 169 da OIT e os Estados Nacionais/Organizadora: Deborah Duprat. – Brasília: ESMPU, 2015, resultado de seminário realizado em 2014, pela 6ª Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal, e que dá origem à presente obra, teve por eixo os contextos nacionais na aplicação da Convenção n. 169. Seu propósito foi fazer avançar, no nosso âmbito interno, a concretização desse documento, colhendo da experiência de outros países os avanços obtidos e, com eles, exercitar uma reflexão que possibilite superar as dificuldades que nos são comuns.

Ponho em relevo nesse aspecto, toda a tradição de estudos de assessoramento aos povos originários desenvolvidos no Peru, pelo Instituto Internacional Derecho y Sociedad, dirigido por Raquel Yrigoyen Fajardo. Destaco o que a respeito escrevo aqui neste espaço Lido para Você (https://estadodedireito.com.br/memoria-del-i-curso-internacional-interdisciplinario-e-intercultural-proteccion-internacional-de-los-derechos-humanos-de-pueblos-indigenas/), a propósito da Memoria del “I Curso Internacional, Interdisciplinario e Intercultural: Protección Internacional de los derechos humanos de pueblos indígenas. Derechos Territoriales y Consulta Previa”, desarrollado en Lima, del 7 al 12 de octubre de 2019. © Raquel Yrigoyen Fajardo, IIDS (coord.) Esta Memoria ha sido elaborada con la asistencia de Briggitte Jara (IIDS), y el apoyo de Renata Carolina Corrêa Vieira (UnB), en coordinación con Raquel Yrigoyen Fajardo, Coordinadora General del Curso. Las fotografías que aparecen en esta Memoria son parte del archivo fotográfico del Instituto Internacional de Derecho y Sociedad-IIDS. Participei intensamente dessa rica experiência.

Penso que todos esses esforços, incluindo o livro ora Lido para Você, vêm reforçar estratégias que contribuem para designar – eu o disse em outro texto (https://estadodedireito.com.br/povos-indigenas-no-brasil-2017-2022/), o alcance insurgente das lutas dos povos indígenas, para as quais chamo a atenção, para que sejam lidas em matérias, artigos, entrevistas e palavras indígenas que dão atualidade à obra, entre outras manifestações que logo procurei examinar: É a Hora de Ouvir: Protocolos Autônomos de Consulta e Consentimento, de Biviany Rojas Garzón e Luíz Donisete Benzi Grupioni; Retomar e Fortalecer a Funai, de Fernando Vianna (Fedola), Luana Almeida e Mitia Antunha; Protocolo de Consulta e Fortalecimento do Movimento Indígena no Rio Negro, de Renata Carolina Corrêa Vieira e Renato Martelli Soares; Comunidades Indígenas Engajam-se na Autodemarcação,  de José Cândido Ferreira, Patrícia Carvalho Rosa e João Bento Ramos; “Autodemarcação é Ato Político. É a Nossa Forma de Dizer que essa Terra é Nossa”, Entrevista concedida à equipe de edição; Desintrusão da TI Pankararu (PE) e Covid-19 no Real Parque (SP), de Arianne Rayis Lovo; A Autodemarcação do Povo Nawa, de Fábio Pontes e Alexandre Noronha; Povo Pataxó Retoma Territórios Tradicionais, de Tiago Miotto; Território Insurgente – o Uso da Terra nas Retomadas Terena, de Carolina Perini de Almeida e Gilberto Azanha; O Conselho do Povo Terena como Instância de Consolidação das Retomadas, box; Os Avá Guarani e as Retomadas pela Terra e pela Vida, de Rafael Nakamura e Júlia Navarra.

Incluo ainda, como leitura necessária, o artigo de Eloy Terena e Roberta Amanajás – “O Direito Constitucional à Retomada de Terras Indígenas Originárias”. Este texto está lançado em obra coordenada pela FIAN Brasil e pelo Grupo de Pesquisa O Direito Achado na Rua (O Direito Humano à Alimentação e à Nutrição Adequadas: enunciados jurídicos / Organização Valéria Torres Amaral Burity, Antonio Escrivão Filho, Roberta Amanajás Monteiro, José Geraldo de Sousa Junior. 1ª edição. Brasília: FIAN Brasília; O Direito Achado na Rua, 2020). Para os autores, “as retomadas dos territórios tradicionais podem ser entendidas como atos de resistência em defesa dos direitos humanos” e por essa via, inseridos constitucionalmente e convencionalmente ao direito dos povos indígenas ao “Território tradicional, do Direito à Identidade Cultural e da inadequação ou omissão de políticas públicas articuladas e específicas”.

Encontro nesses textos, a força daquela disposição que procurei levar para com ela aferir o alcance insurgente e constituinte que encontrei na dissertação de Luís de Camões Lima Boaventura. Autodemarcação Territorial Indígena: uma análise da via acionada pelos Munduruku face o abandono das demarcações. Dissertação de Mestrado defendida no Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade de Brasília – UnB, 2023, quando a examinei (https://estadodedireito.com.br/luis-de-camoes-lima-boaventura-autodemarcacao-territorial-indigena-uma-analise-da-via-acionada-pelos-munduruku-face-o-abandono-das-demarcacoes/).

Uma nota final, aliás, de regozijo.

Além de Isabella Lunelli, autora e também co-coordenadora da edição, é uma satisfação pessoal encontrar na publicação expressões fortes do campo político-epistemológico, com os quais tenho partilhado pensamento e ações, em muitas circunstâncias, para o fortalecer.

Desde logo, por precedência, o caríssimo Carlos Frederico Marés Souza Filho. Também André Carneiro Leão, atual presidente do Conselho Nacional de Direitos Humanos, meu parceiro no Comitê Facilitador do Forum Social Mundial Temático Justiça e Democracia, que vem se empenhando em abrir perspectivas de avanço para o alargamento democrático do acesso à Justiça e sobre novos alcances para a Justiça a que se quer acesso. José Heder Benatti, professor e ativista. Tive o privilégio de participar como membro da Banca Examinadora de sua Titulação – coroamento de uma carreira brilhante – na UFPA (cf. https://estadodedireito.com.br/uma-trajetoria-academica-do-agrarismo-aos-direitos-socioambientais/). 

Distingo ainda Luiz Eloy Terena, atual Secretário Executivo do Ministério dos Povos Indígenas. Brilhante intelectual, tive ensejo de participar de sua banca de doutoramento em Direito, na Universidade Federal Fluminense (sobre, cf. https://estadodedireito.com.br/o-campo-social-do-direito-e-a-teoria-do-direito-indigenista/).

Eloy foi responsável por um grande evento levado a cabo pelo MPI. Para marcar os 35 anos da Constituição Federal, o Ministério dos Povos Indígenas promoveu no dia 9 de outubro um seminário nacional para destacar e discutir a importância da constitucionalização dos direitos indígenas na carta promulgada sob grande participação popular após a redemocratização do país em outubro de 1988 e da construção de uma constituição pluriétnica, que reconhece o direito à diferença.

No entendimento da organização, “A Constituição Federal de 1988 foi a primeira a contar com a participação efetiva dos povos indígenas. À época, várias lideranças e caciques ficaram acampados em Brasília promovendo debates e articulações para apresentar propostas ao textos que estabeleceu pontos importantes relativo aos povos indígenas como o direito originário às terras que tradicionalmente ocupam, o direito à diversidade étnica e cultural, previstos no art. 231, e ainda o direito ao pleno exercício de sua capacidade processual para defesa de seus interesses, no art. 232. Os dois artigos alteraram a relação entre os povos indígenas e o Estado, rompendo com a lógica tutelar que considerava os indígenas incapazes para vida civil e para o exercício de seus direitos e os reconhecendo como sujeitos plenos de direito, inaugurando assim, um estado pluriétnico”.

A primeira mesa do seminário, coordenada pela presidenta da Funai Joenia Wapichana, reuniu os advogados Paulo Pankararu, Fernanda Kaingang, e Paulo Machado Guimarães para discutirem as perspectivas de construção e uma Constituição Pluriétnica. Fiz parte dessa mesa.

A segunda mesa, sob coordenação do próprio Eloy Terana, na qualidade de Secretário Executivo do MPI, debateu a Constitucionalização do Direito dos Povos Indígenas na CF/88, com o jurista Conrado Hubner, e as advogadas Melina Fachin e Samara Pataxó (ver https://estadodedireito.com.br/povos-indigenas-no-brasil-2017-2022/).

A rica discussão pode ser revista em Seminário Nacional Povos Indígenas e Direito Originário: 35 anos da Constituição Federal – Parte 1 (https://www.youtube.com/watch?v=a9PCnsmrZPA&t=1273s); e Parte 2 (https://www.youtube.com/watch?v=obSJ1wWQxOE&t=1134s).

Uma satisfação enorme encontrar entre os autores Felício Pontes Júnior, Procurador Regional da República, no livro em análise da extensa jurisprudência do Tribunal Regional Federal (TRF) da 1ª Região. Felício é meu colega na Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de Brasília, onde exercita uma dimensão peculiar de sua militância pastoral, ele que foi auditor do Sínodo Panamazônico, no Vaticano.

 E entre tantos, Vercilene Francisco Dias, minha orientanda no doutoramento em direito da Universidade de Brasília (Faculdade de Direito). Vercilene é co-autora no livro que co-organizei com pesquisadores do Grupo de Pesquisa O Direito Achado na Rua. Na obra, temas que ela desenvolve na obra do ISA, Vercilene com seus colegas desenvolve um interessante artigo: “O território achado na aldeia e no quilombo: a antítese da mercantilização neoliberal” de autoria de Carlos Henrique Naegeli Gondim, Joanderson Pankararu, Luís de Camões Lima Boaventura e Vercilene Francisco Dias, onde procuram abordar a complexidade de significados que o território tem na cultura indígena e quilombola, assumindo uma feição de condensador de direitos, “os territórios extrapolam a esfera meramente patrimonial, sendo indispensáveis à subsistência e reprodução das culturas e identidades coletivas desses grupos” (GONDIN, Carlos Henrique; PANKARARU, Joanderson; BOAVENTURA, Luis de Camões; DIAS, Vercilene Franscisco) e porque, diversos outros direitos humanos e fundamentais desses grupos étnicos guardam relação direta como território, tais como educação, saúde, liberdade de culto, e a própria identidade. (GONDIN, Carlos Henrique; PANKARARU, Joanderson; BOAVENTURA, Luis de Camões; DIAS, Vercilene Franscisco). Conferir para leituras relacionadas: https://estadodedireito.com.br/o-direito-achado-na-rua-questoes-emergentes-revisitacoes-e-travessias/.

Por fim, encontro Ewésh Yawalapiti Waurá, em texto publicado às vésperas da conclusão de seu mestrado em direito na UnB, entretanto, já assimilado em fundamento de conclusões que apresenta na dissertação, convocando a importância da Consulta para a determinação da questão limite que ele estuda na dissertação (O Mercado de Carbono e o Direito dos Povos Xinguanos), conforme páginas 101-102 da Dissertação) Participei como membro de sua banca examinadora realizada agora dia 15/12, trabalho plenamente aprovado, por sua pertinência e fundamentos, sobre a qual publicarei na próxima Coluna Lido para Você, minha arguição, já na forma de uma recensão para indicação a pesquisadores e a editores.

 

 

José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil,  Professor Titular, da Universidade de Brasília,  Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.55

 

segunda-feira, 18 de dezembro de 2023

 

Comércio de Armas e Cultura de Paz: Quando Lucrar se Torna Cumplicidade

  •  em 



Uma notícia publicada na página do Instituto Humanitas, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS) – https://www.ihu.unisinos.br/635234-grupo-de-freiras-processa-fabricante-de-armas-smith-wesson-por-armas-de-assalto, dá conta de que quatro congregações de religiosas consagradas entraram com uma ação contra o conselho da fabricante de armas Smith &Wesson em 5 de dezembro em um tribunal de Las Vegas, no dia anterior a um atirador matar três pessoas e ferir gravemente uma quarta no campus da Universidade de Nevada, em Las Vegas, a 8 quilômetros de distância.

 

 

Segundo a reportagem de Dan Stockman, publicada por America, 13-12-2023, as dominicanas de Adrian, Irmãs de Bon Secours, Irmãs de São Francisco de Filadélfia e as Irmãs dos Santos Nomes de Jesus e Maria entraram com o que é conhecido como um processo derivado, que, conforme explicado ao site Global SistersReport, é quando acionistas da empresa processam conselhos corporativos por supostamente falharem em suas responsabilidades com os acionistas. As irmãs afirmam que os diretores corporativos da Smith &WessonBrands expuseram a empresa a passivos enormes pela fabricação, venda e marketing de rifles estilo AR-15.

 

 

A perspectiva que se abre com o processo, se bem-sucedido, é a responsabilizaçãodos diretores da empresa por quaisquer custos associados ao marketing supostamente ilegal de rifles de assalto e quaisquer danos seriam pagos à Smith &Wesson, não aos autores da ação. O advogado das irmãs disse que este processo é o primeiro caso derivado contra um conselho corporativo sobre rifles de assalto: “Assim como as empresas farmacêuticas sendo castigadas por julgamentos civis e multas depois de anos de lucros com a venda de opioides perigosos, o conselho da Smith &Wesson ignora voluntariamente a exposição potencialmente arruinante que a empresa enfrenta por seu marketing e venda de armas projetadas especificamente para matanças em massa”, disse o advogado Jeffrey Norton em um comunicado anunciando o processo. “Estamos orgulhosos de nos associar a essas congregações de irmãs católicas que há muito buscam responsabilidade corporativa por meio de sua atividade acionista”.

 

 

A arma usada no tiroteio na UNLV acabou sendo uma pistola Taurus PT92, segundo a polícia, mas o processo das irmãs lista vários tiroteios em massa que envolveram rifles estilo AR-15 da Smith &Wesson.

 

 

Protocolado em um tribunal do distrito de Nevada, onde a empresa está registrada, o processo observa que cinco tiroteios em massa amplamente divulgados envolvendo rifles estilo AR-15 da Smith &Wesson foram perpetrados por homens entre 19 e 28 anos, alegando que a empresa os comercializou especificamente “para aproveitar o comportamento impulsivo e a falta de autocontrole de jovens homens”, apesar de um acordo anterior. O processo é o mais recente de uma série de ações movidas por freiras católicas; geralmente, elas se apresentam na forma de resoluções acionárias.

 

 

A ação das dominicanas segue uma linha de formulação político-moral que a partir da sociedade civil, sobretudo nos Estados Unidos, vêm propugnado porfimà violência com medidas que valorizem cultura de paz. Cidades norte-americanas entram na Justiça para receber de volta gastos com danos provocados por armamentos. Não só para buscar reparações (EUA processam fabricantes de armashttps://www1.folha.uol.com.br/fsp/mundo/ft28069905.htm); mas até para fazer incidir em co-autoria, o fabricante que descuida de salvaguardas para prevenir o excesso letal do uso de armas (https://www.estadao.com.br/internacional/em-decisao-inedita-fabricante-de-armas-e-condenado-nos-eua/).

 

 

No Brasil, já temos a demarcação dessas salvaguardas. Também da página do IHU -https://www.ihu.unisinos.br/categorias/632432-justica-determina-retirada-de-propaganda-on-line-de-armas-da-taurus-apos-acao-civil-publica-movida-por-comissao-arns-idec-rede-liberdade-e-intervozes, recupero decisão que define que a veiculação de anúncios publicitários de armas de fogo na internet e nas redes sociais viola a Constituição, o Estatuto do Desarmamento e o Estatuto da Criança e do Adolescente.

 

 

A iniciativa foi da Comissão Arns, que levou a 27ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) a decidir que a propaganda online de armas de fogo é ilegal e determinou a retirada “imediata e incondicional” de anúncios publicitários de armamentos da fabricante Taurus no Instagram e em seu site, sob pena de multa diária. A decisão foi tomada em recurso contra a fabricante de armas interposto por Comissão de Defesa dos Direitos Humanos D. Paulo Evaristo Arns – Comissão Arns, Idec (Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor) e Intervozes, com advogados da Rede Liberdade.

 

 

O acordão foi elaborado pelo desembargador Alfredo Attié, relator designado para o caso. O voto de Attié (com Alfredo Attié e outros colegas participamos de iniciativa judicial no STF para estabelecer a incapacidade de governar de Jair Bolsonaro e sua necropolítica – ver aqui no Jornal Brasil Popular: https://www.brasilpopular.com/o-judiciario-poderia-ter-definido-a-incapacidade-de-bolsonaro-para-governar/).

 

 

O acórdão sustenta que a publicidade de armas de fogo viola não só a definição constitucional de paz e segurança, mas também o Estatuto do Desarmamento e o Estatuto da Criança e do Adolescente. Assim, diante de anúncios publicitários de armas de fogo na internet, “fica o público exposto em larga extensão e profundidade a essa propaganda, sobretudo ilegal, o que prejudica sua formação e o futuro da sociedade livre, igual e solidária desejada pela Constituição”.

 

 

Não descuido das exigências de segurança na sociedade democrática. Já manifestei em artigo – Segurança, Democracia e Cidadania, in SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. Ideias para a Cidadania e para a Justiça. Porto Alegre: Sergio Fabris Editor, 2008, p. 57-58 – lembrando o papel da polícia, qualquer polícia, de prevenir e gerenciar conflitos. Mas acentuando que a ação da polícia numa democracia tem como pressuposto o estado de direito, no qual, como condição democrática, os cidadãos ou os seus representantes têm ascendência sobre as ações das instituições e dos agentes públicos.

 

 

Todos os dias o noticiário exibe ocorrências de altíssima gravidade envolvendo atitudes letais facilitadas pela disponibilidade de armas de fogo. Enquanto escrevo localizo matéria atual – https://www.terra.com.br/noticias/brasil/cidades/quem-e-e-como-agiu-empresario-que-atirou-em-policiais-nos-jardins-segundo-policia,cf6cb89eb8af2f4b6f1deadec0888b36dbqkjqpg.html# – dando conta de homicídio duplo e morte decorrente de intervenção policial pelo Departamento Estadual de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP), unidade da Polícia Civil acionada quando o caso envolve a morte de agentes da corporação. Segundo o boletim de ocorrência inicial, a perícia encontrou na casa duas pistolas de calibre .45 e .380, usadas pelo dono da casa durante a reação à abordagem.

 

 

Mas o quadro geral da violência pela facilitação de acesso a armas de fogo, hoje sabidamente, uma intencional política para a formação de milícias, não só urbanas mas também rurais, ao limite engajáveis em mobilizações golpistas contra a democracia, a constituição e ao estado de direito democrático, está configurado em estudos e pesquisas que dão uma medida visível de sua resultante. Para números gerais ver o estudo do IPEA – https://www.ipea.gov.br/atlasviolencia/filtros-series/5/bitos-por-armas-de-fogo.

 

 

Na mesma linha, levantamentos oficiais – https://forumseguranca.org.br/publicacoes_posts/armas-de-fogo-e-homicidios-no-brasil/. Nesse estudo específico, a conclusão é a de que “a violência letal no Brasil atingiu o recorde histórico em 2017, quando mais de 64 mil pessoas foram assassinadas e a taxa de mortalidade chegou a 30,9 por 100 mil habitantes. Desde 2018, no entanto, o país tem reduzido anualmente a taxa de mortes violentas intencionais, chegando a 22,3 em 2021. A partir de 2019 o Governo Federal passou a afrouxar a legislação sobre armas e munições, fazendo com que houvesse crescimento vertiginoso nos registros e compras de armas em todo o país. O objetivo principal desse trabalho foi investigar se a redução da letalidade violenta seria consequência da mudança na legislação. Para tanto, desenvolvemos uma análise econométrica de dados em painel com o uso de variável instrumental, como forma de resolver os problemas de endogeneidade presentes. Os resultados robustos e estatisticamente significantes indicaram que quanto maior a difusão de armas, maior a taxa de homicídios. Isso implica dizer que se não fosse a legislação permissiva quanto às armas de fogo, a redução dos homicídios (provocada por outros fatores, como o envelhecimento populacional e o armistício na guerra das facções criminosas após 2018) teria sido ainda maior do que a observada. Com base nesse cálculo aproximado, estimamos que se não houvesse o aumento de armas de fogo em circulação a partir de 2019, teria havido 6.379 homicídios a menos no Brasil. Ou seja, o aumento da difusão de armas terminou por impedir, ou frear uma queda ainda maior das mortes”.

 

 

Uma escalada, aliás, já antevista pela UNESCO, desde 2015, conforme https://brasil.un.org/pt-br/69515-unesco-mapa-da-viol%C3%AAncia-revela-que-116-brasileiros-morrem-todos-os-dias-por-arma-de-fogo.

 

 

E olha que nem estou recortando os dados no sentido da violência como ação política em sua aplicação neocolonial (ou decolonial), racista, misógina, de classe, que se institucionaliza e se faz estrutural, contra negros, mulheres, indígenas, camponeses, trabalhadores, presidiários.

 

 

Já me debrucei sobre esses enfoques ao resenhar estudos muito qualificados, aos quais remeto, conforme https://estadodedireito.com.br/comissao-pastoral-da-terra-conflitos-no-campo-brasil-2022/, a propósito de Comissão Pastoral da Terra. Conflitos no Campo Brasil 2022. Centro de Documentação Dom Tomás Balduino (Cedoc-CPT). Goiânia: CPT Nacional, 2023, 254 p.

 

 

Também tratei disso na minha Coluna O Direito Achado na Rua, aqui no Brasil Popular ao comentar a recente publicação do Relatório do CIMI – Conselho Indigenista Missionário, organismo da CNBB – Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, conforme https://www.brasilpopular.com/as-chamas-do-odio-e-a-continuidade-da-devastacao-relatorio-do-cimi-sobre-violencia-contra-os-povos-indigenas/.

 

 

Nessa direção caminhava o esforço dos segmentos mais democráticos e politizados do país, quando o Congresso Nacional estabeleceu a realização, em 23 de outubro de 2005, um referendo popular, previsto no Estatuto do Desarmamento, como instrumento de consulta democrática, para que a população, com o voto obrigatório dos eleitores, decida se é ou não favorável à “proibição da comercialização de armas de fogo, acessórios e munições”.

 

 

Com o Estatuto do Desarmamento, procurava-se estabelecer mecanismos de restrição à posse de armas tanto para os cidadãos como para policiais e militares; controle de armas de fogo com a centralização dos registros e portes e de munições. Com a Campanha, busca-se a adesão da população para os fundamentos morais dessa política, voltados para o desenvolvimento de uma cultura de paz.

 

 

Precisamos retomar esse imperativo político-democrático, pois essa é uma questão que se coloca na perspectiva ética que busca desenvolver e aperfeiçoar sistemas alternativos de produção, fundados em concepções de comércio justo, que reclamam regimes jurídicos especiais para atribuir condições justas às suas práticas, inspiradas em movimentos que se põem contra toda forma de mercadorização e trivialização da vida no social.

 

 

 

 

 

(*) José Geraldo de Sousa Junior é professor titular na Faculdade de Direito e ex-reitor da Universidade de Brasília (UnB)


José Geraldo de Sousa Junior é graduado em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal – AEUDF, mestre e doutor em Direito pela Universidade de Brasília – UnB. É também jurista, pesquisador de temas relacionados aos direitos humanos e à cidadania, sendo reconhecido como um dos autores do projeto Direito Achado na Rua, grupo de pesquisa com mais de 45 pesquisadores envolvidos.

 

Professor da UnB desde 1985, ocupou postos importantes dentro e fora da Universidade. Foi chefe de gabinete e procurador jurídico na gestão do professor Cristovam Buarque; dirigiu o Departamento de Política do Ensino Superior no Ministério da Educação; é membro do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB, onde acumula três décadas de atuação na defesa dos direitos civis e de mediação de conflitos sociais.

 

Em 2008, foi escolhido reitor, em eleição realizada com voto paritário de professores, estudantes e funcionários da UnB. É autor de, entre outros, Sociedade Democrática (Universidade de Brasília, 2007), O Direito Achado na Rua. Concepção e Prática 2015 (Lumen Juris, 2015) e Para um Debate Teórico-Conceitual e Político Sobre os Direitos Humanos (Editora D’Plácido, 2016).