O Direito Achado na Rua: nossa conquista é do tamanho da nossa luta

quarta-feira, 31 de março de 2021

 

O Direito Humano à Alimentação e à Nutrição Adequadas

Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.

 

 

 

 

 

O Direito Humano à Alimentação e à Nutrição Adequadas: enunciados jurídicos. Organizadoras e organizadores Valéria Torres Amaral Burity, Antonio Escrivão Filho, Roberta Amanajás Monteiro, José Geraldo de Sousa Junior (Organizadores). Brasília: FIAN Brasil e O Direito Achado na Rua, 2021, 195 p.

 

          O livro ora Lido para Você, cujo lançamento seguirá um programa de debates em breve anunciado, pode ser antecipado em seu contexto, seus pressupostos e intencionalidade, a partir do Sumário que o organiza e expõe a medida de sua pretensão política, agudamente interpelante. Em todo caso, no marco de 20 anos da FIAN Brasil, vem fortalecer o escopo de sua missão institucional: “Exigir Direitos, Alimentar a Vida”.

          Abre com uma Apresentação, assinada pela  FIAN (Organização pelo Direito Humano à Alimentação e à Nutrição Adequadas) e pelo Coletivo (Grupo de Pesquisa) O Direito Achado na Rua, os Organizadores Valéria Burity, Antonio Escrivão Filho,  Roberta Amanajás e eu próprio.

          Segue-se o Prefácio, assinado por Carlos Marés e os Contextos: Da expansão judicial à decadência de um modelo de justiça, por Boaventura de Sousa SantosConceito e base legal do Direito Humano à Alimentação e à Nutrição Adequadas (DHANA), por Valéria Burity;  O Direito à Alimentação como um Direito Humano Coletivo dos Povos Indígenas, por  Raquel Fajardo e Renata Vieira (colaboração); O Direito Humano à Alimentação e à Nutrição Adequadas em tempos de expansão judicial, por Antonio Escrivão Filho, José Geraldo de Sousa Junior e Renata Vieira.

Créditos: PixaBay/ikon

          Em sequência, com a designação de Enunciados Jurídicos para o Direito à Alimentação e à Nutrição Adequadas, os textos que constituem o núcleo da obra com assinaturas simultaneamente orgânica (representação de conceitos politicamente estabelecidos) e autoral (sentido interpretativo, em estilo e enunciativo de seus redatores): Terra e território como elementos centrais para a garantia do Direito Humano à Alimentação e à Nutrição Adequadas de Povos Indígenas e Povos e Comunidades Tradicionais, UCL e FIAN – Olivier De Schutter, Valéria Burity e Felipe Bley Folly; O direito constitucional à retomada de terras indígenas originárias, APIB e FIAN – Eloy Terena e Roberta Amanajás;  A agroecologia como meio para a promoção efetiva do Direito Humano à Alimentação e à Nutrição Adequadas,  FIAN e UFF – Valéria Burity e Gladstone Leonel;  Os índios e o direito ao processo justo,  CIMI – Rafael Modesto;  A demarcação de terras indígenas como imperativo constitucional,  CIMI – Rafael ModestoA responsabilização sobre danos causados por agrotóxicos e a aplicação da teoria do risco integral (socio)ambiental;  Terra de Direitos – Naiara Bittencourt e Eduarda DominguesDo direito fundamental a uma educação quilombola de qualidade, nos quilombos urbanos e rurais,  CONAQ e Terra de Direitos – Givânia Silva, Vercilene Francisco Dias e Camila Cecilina Martins;  Dos desafios para efetivação do direito ao território quilombola,  Terra de Direitos e CONAQ – Vercilene Francisco Dias;  Militarização dos territórios quilombolas Rio dos Macacos, Marambaia e Alcântara,  AATR e CONAQ – Joice Silva Bonfim, Carlos Eduardo Lemos Chaves e Vercilene Francisco Dias;  A prioridade convencional e constitucional dos territórios tradicionais em face da sobreposição no Cadastro Ambiental Rural,  GRAIN – Larissa Packer;  O direito à posse: Acampamento Quilombo Campo Grande – Fazenda Ariadnópolis/MG,  MST – Letícia Santos Souza e Diego Vedovatto;  A luta Sem Terra MST – Edgar Menezes Mota e Euzamara de Carvalho;  A prioridade da preservação dos costumes e conhecimentos tradicionais em face das regras de vigilância sanitária,  UFF – Gladstone Leonel e Victoria Gonçalves.

          Na Apresentação, a justificativa da obra, construída em oficinas instaladas por ocasião do Seminário Internacional O Direito como Liberdade: 30 Anos de O Direito Achado na Rua, momento em que os autores e autoras submeteram a debate seus esquemas e conceitos enunciativos posteriormente completados para compor o miolo da obra.

          Assim dissemos os organizadores: “Embora se vivencie, desde as eleições de 2018, um ambiente de rápido e intenso retrocesso no que tange ao reconhecimento e ao respeito aos direitos humanos em suas múltiplas dimensões, é possível observar e afirmar que no Brasil desenvolvem-se também, desde o advento da Constituição de 1988, agudas tendências de expansão e interferência judicial nas temáticas do Direito Humano à Alimentação e à Nutrição Adequadas (DHANA), hoje talvez associadas ao ascenso do conservadorismo e ao retorno do neoliberalismo, entendido em perspectiva política e econômica.

          Diante disso, a FIAN Brasil – Organização pelo Direito Humano à Alimentação e à Nutrição Adequadas e O Direito Achado na Rua reuniram esforços para fomentar uma agenda de discussão sobre os impactos do sistema de justiça na garantia, proteção, efetivação ou violação do DHANA no Brasil e na América Latina, a partir das experiências e concepções de movimentos sociais, entidades de direitos humanos e advocacia popular, juristas e intelectuais, com vistas a produzir uma obra coletiva que debata, com base nessas experiências e concepções, enunciados jurídicos orientados conduzir a uma interpretação e aplicação do direito que sirva à proteção e à efetivação do Direito Humano à Alimentação e à Nutrição Adequadas. Tais enunciados expressam, portanto, o olhar de advogados/as populares, movimentos sociais e pesquisadores/as sobre o tema, que buscam dizer como esse direito pode e deve ser garantido e, com isso, criar novos entendimentos que permitam sua realização”.

          Ainda na perspectiva dessa construção, em metodologia ativa e participativa, os organizadores e animadores das oficinas e das reuniões virtuais que se seguiram para finalizar o conjunto autoral, cuidaram de “fomentar uma agenda de debates acerca do Direito Humano à Alimentação e à Nutrição Adequadas em suas múltiplas e diferentes dimensões, sob o ponto de vista das suas experiências de (des)encontros com a via judicial e o sistema de justiça. Os enunciados e os textos que os explicam tratam dos limites e possibilidades de (i) proteção, garantia e reparação a direitos violados ou ameaçados; (ii) efetivação de direitos sonegados; (iii) implementação de políticas públicas e (iv) reconhecimento jurídico e institucional de modos de ser e viver relacionados ao Direito Humano à Alimentação e à Nutrição Adequadas, com especial atenção para o modo como esses direitos – em suas dimensões de posse, territorialidades e agroecologia, considerando o protagonismo das mulheres, as perspectivas étnicas e raciais, além a incidência de tratados internacionais e o impacto da atuação de empresas – são efetivados ou negados, quando se deparam com a via judicial e as diferentes instituições do sistema de justiça”.

          Ainda na Apresentação, que autêntica e pertinentemente expõe a obra, encontra-se a indicação de como o livro foi organizado, em suas duas seções.

           “A Seção I, intitulada “Contextos”, apresenta três textos de cunho analítico e conceitual que projetam o pano de fundo do debate aqui proposto: o primeiro, de autoria do professor Boaventura de Sousa Santos, traz uma compreensão do cenário atual de expansão judicial no Brasil e se alinha à análise dos elementos que compõem a noção expandida de Direito Humano à Alimentação e à Nutrição Adequadas, presente no texto de autoria de Valéria Burity, secretária-geral da FIAN Brasil. Ambos são complementados pelo texto de Raquel Yrigoyen Fajardo com a colaboração e a tradução para o português de Renata Vieira – sobre o direito à alimentação como um direito humano coletivo dos povos indígenas, concluindo a seção com uma abordagem que busca observar as expressões do Direito Humano à Alimentação e à Nutrição Adequadas em tempos de expansão judicial no Brasil, de autoria de Antonio Escrivão Filho, José Geraldo de Sousa Junior e Renata Corrêa Vieira. A partir daí, a Seção II é intitulada (e dedicada à apresentação dos) “Enunciados Jurídicos para o Direito à Alimentação e à Nutrição Adequadas”. Primeiramente verificam-se três enunciados formulados e desenvolvidos no âmbito da FIAN Brasil: o primeiro, elaborado por Valéria Burity e Felipe Bley Folly, advogado coordenador do Programa de Justiciabilidade da FIAN Internacional, em parceria com Olivier De Schutter, ex-Relator Especial da ONU sobre o Direito à Alimentação, associa o DHANA ao direito ao território dos povos indígenas e povos e comunidades tradicionais; o segundo, escrito pelo advogado indígena Eloy Terena, membro da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), em parceria com Roberta Amanajás, então assessora de Direitos Humanos da FIAN Brasil, trata do direito indígena à retomada de suas terras frente à omissão estatal; finalmente, o terceiro enunciado, construído por Valéria Burity, em parceria com Gladstone Leonel Júnior, professor da Universidade Federal Fluminense (UFF), analisa a relação entre o DHANA e a agroecologia. O Conselho Indigenista Missionário (CIMI) contribuiu com dois enunciados formulados por seu advogado, Rafael Modesto. O primeiro trata do direito indígena ao acesso à justiça, fundamentado na vedação ao uso do regime tutelar, em face de sua não recepção pela Constituição de 1988. O texto refere-se, em especial, aos processos de demarcação de terras indígenas. O segundo enunciado refere-se à inaplicabilidade da discricionariedade e do marco temporal, em face do caráter de imperativo constitucional associado aos procedimentos de demarcação de terras indígenas.  A Terra de Direitos em parceria com a Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ) contribuem com os três enunciados seguintes. O primeiro, formulado por Naiara Bittencourt e Eduarda Domingues, trata da inversão do ônus da prova em casos de intoxicação e contaminação por agrotóxicos, considerando a teoria do risco integral e a perspectiva da responsabilização objetiva e solidária dos agentes violadores por ação ou omissão. O segundo, de autoria de Givânia Silva, Vercilene Dias e Camila Martins, trata do direito e garantia a uma educação quilombola fundada respeito às formas culturais e memórias coletivas, de modo a contribuir para o reconhecimento, valorização e continuidade quilombola. O terceiro, de autoria de Vercilene Francisco Dias, trata do direito ao território coletivo, ancestral, uno e indivisível como fonte de subsistência e alimentação dos povos quilombolas. A Associação de Advogados/as de Trabalhadores/as Rurais no Estado da Bahia (AATR), representada por Joice Bonfim e Carlos Chaves, em parceria com Vercilene Dias, da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ), apresentam um enunciado sobre o direito de livre acesso e utilização, pelas comunidades quilombolas, dos bens naturais resguardados em seus territórios, ante ofensivas militares que repreendem e desarticulam as redes comunitárias que caracterizam o modo de viver tradicional do povo quilombola. O décimo primeiro enunciado foi formulado por Larissa Packer, advogada responsável pelo escritório da GRAIN Brasil, e trata da vinculação do Cadastro Ambiental Rural (CAR) para povos e comunidades tradicionais aos tratados internacionais de direitos humanos e da prioridade do cadastro de povos e comunidades tradicionais, na hipótese de sobreposição de cadastros, com especial atenção à incidência do direito à consulta livre, prévia e informada no cadastramento dessas comunidades. Na sequência, temos dois enunciados formulados por advogadas e advogados do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). O primeiro, redigido por Letícia Santos Souza e Diego Vedovatto, trata da necessária associação da hermenêutica do direito agrário aos conflitos fundiários coletivos, em oposição à aplicação do Código Civil, cujos paradigmas são eminentemente privatistas. O segundo, formulado por Edgar Menezes Mota e Euzamara de Carvalho se refere ao caráter ampliado da luta pela terra no acesso a direitos econômicos, sociais e culturais diretamente associados ao acesso à terra. Finalmente, encerrando a obra, temos o enunciado redigido por Gladstone Leonel e Victoria Gonçalves, professor e mestranda da Universidade Federal Fluminense, que discute o direito à prioridade do respeito às práticas tradicionais, com caráter de normas consuetudinárias, na aplicação de normas de vigilância sanitária, determinando-se o ônus da prova, em caso de eventual proibição de circulação de produtos provenientes desses grupos, à Anvisa”.

          Produzido poucos meses antes que a pandemia do Covid19 se abatesse sobre o mundo e explicitasse toda a limitação decorrente do modelos de produção da existência social e até dos sentidos civilizatórios que designavam nosso campo de visão, pondo a nu a incapacidade governante – com muito raras exceções, em relevo as exercitadas por mulheres enfim projetadas em novos modos de construir políticas – a construção da obra investiu-se também de uma interpelação à capacidade social orientada por outras dimensões da política de apresentar alternativas para um futuro possível, a travessia enfim, para um outro mundo possível, mais solidário, leal ao planeta e apto a concretizar o princípio esquecido da antevisão de direitos humanos plenamente realizáveis: o princípio da fraternidade.

          Para essa travessia aponta o prefácio de Carlos Marés: “A alimentação adequada – a vida –, que não deveria ser mais do que uma realidade concretizada pela sociedade, está de variadas formas negada. Por essa razão, foi necessário erigir essa compreensão do Direito à Alimentação e à Nutrição Adequadas, porque quando o direito é explicitado positivamente, há que o fazer cumprir. Se não se cumpre o direito, o Estado-juiz tem que determinar seu cumprimento. Mas como fazê-lo, se sua violação não se dá apenas pela negação do acesso aos alimentos, mas pela negação do acesso à terra, à natureza, à cultura, à produção e à distribuição de alimentos? Quem garantirá o direito dos indígenas, dos quilombolas e de outros povos e agricultores tradicionais à terra, suas formas de produção e suas relações com a natureza? Quem coibirá o avanço do veneno sobre o alimento, sobre os povos e a natureza não humana? O Direito à Alimentação e à Nutrição Adequadas está posto. Como aplicá-lo? É disso que trata este livro, escrito a partir de uma análise teórica e de enunciados jurídicos formulados por quem vive, vê, analisa e estuda a realidade concreta e sabe que o Direito à Alimentação e à Nutrição Adequadas relaciona-se intimamente com os direitos coletivos dos povos, da natureza e do chamado meio ambiente. A teoria e a prática expostas neste livro revelam um Poder Judiciário criado e estruturado para tratar de direitos individuais e que, cada vez que depara com conflitos de ordem coletiva, hesita e teme ao desconsiderar os direitos dos proprietários. Um Judiciário que natureza e alimentação precisa ser mudado. Esta publicação também revela um Estado que flutua aos ventos dos interesses econômicos, mas sabe as obrigações para as quais foi criado e fica impotente frente às pressões do capital. Ele também precisa ser mudado. Cada página deste livro coteja o ser com o dever ser, fundados no Direito à Alimentação, tendo muito claro que isso significa desafiar os limites do capitalismo. Por essa razão, a obra situa-se na fronteira do possível e da utopia, que é, em última instância, a construção de um mundo novo possível”.

          Assim, numa emergência composta de impulsos para o esvaziamento político dos espaços de protagonismo do social, na qual a exceção se avizinha do Jurídico que deixa de se constituir como arena de resistência ao processo de desdemocratização e de desconstitucionalização em curso no País e à banalização da vida pela ação de governança absolutamente incompetente para agir no enfrentamento à pandemia, nublando o horizonte civilizatório,  a resposta cabal, contra essa incompetência delinquente (consta que o Tribunal Internacional Penal começa a examinar a denúncia de conduta genocida na omissão em face da saúde dos povos indígenas no contexto da pandemia), virá mesmo do social organizado,  de onde algumas dessas ações da sociedade organizada e também de edilidades inscritas em compromisso com a cidadania. 

          Nas ações de produção social de atenção alimentar agendas, notadamente na conjuntura que antecede o golpe parlamentar-judicial-midiático que levou ao afastamento da Presidenta Dilma Rousseff e com ela, à derrocada do projeto popular-democrático que abriu ensejo à construção dessas agendas e logo, à instalação de uma governança a serviço do modelo capitalista de concentração da terra e do território, vê-se nitidamente que o tema da estrangeirização compunha essa agenda, em concreto no âmbito da formulação de políticas públicas, juntamente com a questão estratégica da preservação da água como um bem social,  do direito agrário, da educação do campo, do cooperativismo, do fortalecimento da agricultura familiar,  e da função social da terra e da propriedade, para valorizar a agroecologia para garantir a soberania alimentar brasileira e a humanização da produção agrícola com a substituição do modelo de produtividade apoiado no sistema de uso intensivo de agrotóxicos.

          Certamente há outros aspectos que se inserem nessa agenda, de algum modo aceita pela governança para conferir itens de negociação, sobretudo com os movimentos sociais do campo. Basta ver os enunciados dos representantes dos principais movimentos – MST e também Via Campesina – enquanto denunciam a criminalização que sofrem e propõem “a valorização da vida no interior, com geração de emprego e oportunidade de formação para jovens com a implantação de milhares de pequenas agroindústrias na forma de cooperativas, capazes de dar emprego e estudo a milhões de assentados e participantes dos programas de reforma agrária e de acesso à terra e a territórios (quilombolas, ribeirinhos, indígenas), em confronto com os modelos promovidos pelo capitalismo financeiro e por suas  grandes empresas assentadas na monocultura, onde cada fazenda se especializa em um produto, com uso intensivo de máquinas agrícolas e agrotóxicos”.

          Assim, a inclusão nessas agendas de uma diretriz de apoio à produção de alimentação adequada se inscreve na plataforma formulada pelo Projeto O Direito Achado na Rua para, com a sua reflexão, contribuir criticamente para a qualificação teórica e política dos movimentos sociais do campo, corroborando o que dizia Plínio de Arruda Sampaio, no vol 3, da Série O Direito Achado na Rua (Introdução Crítica ao Direito Agrário”, Brasília/UnB/São Paulo/Imprensa Oficial de São Paulo, 2002, pág. 317: “o desenvolvimento de um pais está travado por uma questão agrária quando a trama das relações econômicas, sociais, culturais e políticas no meio rural produz uma dinâmica perversa que bloqueia tanto o esforço para aumentar a produtividade, como as tentativas de melhorar o nível de vida da população rural e sua participação ativa no processo político democrático”.

          Cuida-se, nessa conjuntura, de resgatar das energias utópicas que calçaram o percurso de lutas emancipatórias, a força instituinte para vencer bloqueios que não só travam o país no âmbito da questão agrária, mas muito mais gravemente, no plano de disputa do próprio projeto de sociedade e de futuro à base do qual o país se constitui, num momento crítico no qual essa disputa se trava, aliás, de modo tão grave que está se internacionalizando em suas consequências nefastas.

          O livro ora Lido para Você, nos seus fundamentos e nos seus enunciados, contribui para fortalecer as posições emancipatórias que se organizam nesse embate e nesse percurso.

 

José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil,  Professor Titular, da Universidade de Brasília,  Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua

quarta-feira, 24 de março de 2021

 

Mapa Territorial, Temático e Instrumental da Assessoria Jurídica e Advocacia Popular no Brasil

Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.

 

 

 

 

Mapa Territorial, Temático e Instrumental da Assessoria Jurídica e Advocacia Popular no Brasil / José Antônio P. Gediel, Leandro Gorsdorf, Antonio Escrivão Filho, Hugo Belarmino, Marcos J. F. Oliveira Lima, Eduardo F. de Araújo, Yuri Campagnaro, Andréa Guimarães, João T. N. de Medeiros Filho, Tchenna Maso, Kamila B. A. Pessoa, Igor Benício, Virnélia Lopes, André Barreto – Curitiba/PR – Brasília/DF – João Pessoa/PB 2011. 90 p. ISBN: 978-85-62707-38-4

https://terradedireitos.org.br/noticias/noticias/pesquisa-apresenta-mapa-da-assessoria-juridica-e-advocacia-popular-no-brasil/10589

 

          Completa dez anos o estudo paradigmático contido na obra tema deste Lido para Você. Ainda que novos dados certamente possam ser acrescentados para atualizar a obra, ela guarda, no seu arranjo original, total relevância e pertinência por sua exemplaridade metodológica e marcadores conceituais que a caracterizam por sua singularidade.

          Essa é a mesma característica que está presente noutro texto emblemático, de 1998. Refiro-me a Ceilândia: Mapa da Cidadania. Em rede na defesa dos direitos humanos e na formação do novo profissional do direito, resultado também de pesquisa conduzida pelas sociólogas, ambas professoras de UnB, Maria Salete Kern Machado e Nair Heloisa Bicalho de Sousa, no âmbito do Projeto Núcleo de Prática Jurídica e Escritório de Direitos Humanos e Cidadania, coordenado por mim e pelo professor Alexandre Bernardino Costa, na Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (http://estadodedireito.com.br/ceilandia-mapa-da-cidadania/).

          Esse projeto foi desenvolvido em parceria com o Ministério da Justiça, pela antiga Secretaria de Estado dos Direitos Humanos (que deu origem ao Ministério dos Direitos Humanos), seguindo diretriz do Plano Nacional de Direitos Humanos. Note-se uma outra singularidade. É nesse projeto que se vai designar, antes que as diretrizes curriculares da área adotasse a categoria, a denominação Núcleo de Prática Jurídica, em substituição a expressão Escritório Modelo de Advocacia, como assim eram nomeados as estruturas de prática dos cursos de direito. O projeto, aliás, formulou uma inversão intencional a partir de seu título exatamente para sugerir uma nova significação, simultaneamente teórica e política: Núcleo de Prática e Escritório de Direitos Humanos e Cidadania.

Foto: Reprodução/Commons

          Conforme o release da Terra de Direitos, uma das instituições que formularam o termo de referência da pesquisa, a prática da assessoria jurídica e advocacia popular, em diferentes contextos sociais e eixos de atuação, é tema de pesquisa realizada pela Terra de Direitos e Dignitatis Assessoria Técnica Popular. Ao longo de um ano, as duas entidades trabalharam na elaboração do “Mapa Territorial, Temático e Instrumental da Assessoria Jurídica e Advocacia Popular no Brasil”, apoiado e publicado recentemente pelo Observatório da Justiça Brasileira (OJB), vinculado ao Centro de Estudos Sociais da América Latina – CES/AL.

          Sobre o OJB, de cuja concepção assumo um forte protagonismo, remeto a esta Coluna Lido para Você: http://estadodedireito.com.br/observatorio-do-judiciario/E nela, ao texto completo de documento que fundamenta a sua institucionalização, cujos enunciados foram aplicados no estudo do Mapa Territorial das Assessorias Jurídicas Populares:   http://pensando.mj.gov.br/wp-content/uploads/2015/07/15Pensando_Direito3.pdf.

          Voltando ao release, “o estudo trata a assessoria jurídica e advocacia popular como indicadores do grau de qualidade democrática do sistema de justiça, compreendendo o papel dessas organizações tradutoras e mediadoras das lutas políticas dos movimentos sociais com as instituições do poder público, em especial as da justiça. Presente na história institucional da Terra de Direitos e da Dignitatis, a Renap – Rede de Advogadas e Advogados Populares está entre as motivações para a realização da pesquisa. A Rede foi criada em 1995 com o propósito de fortalecer a comunicação e a interlocução entre os diversos advogados e advogadas que atuam junto aos movimentos sociais no Brasil. Desde a criação da Rede, a advocacia popular se expandiu acompanhando o movimento histórico próprio do desenvolvimento da luta por direitos no Brasil. Aliado à Renap, a pesquisa surge também no âmbito dos debates da JusDh – Articulação Justiça e Direitos Humanos, que vem atuando sobre uma agenda política voltada para a democratização da justiça.

          Segundo levantamento feito pela pesquisa, o cenário da assessoria e advocacia popular no Brasil conta com 96 entidades, distribuídas por 117 pontos de atuação, considerando que há organizações com escritórios em mais de uma cidade. A maior concentração está nas regiões metropolitanas e nas capitais, o que reafirma a atuação da advocacia popular no trabalho de tradução entre o mundo dos movimentos sociais e as instituições públicas das três esferas de poder, agrupados principalmente nas capitais.

          Já os escritórios localizados no interior estão principalmente nas regiões Norte. Estado com de alto índice de conflitos fundiários, o Pará se destaca pelo número de entidade espalhadas pelo seu território, voltadas especialmente aos temas agrários, como Terra e Território, Meio Ambiente e Trabalho Escravo. Dados da Comissão Pastoral da Terra, publicados no Relatório de Conflitos no Campo, mostram que houve registro de 89 conflitos por terra no estado em 2012, despontando como o mais violento da região e o 4º estado com o maior número de conflitos no país.

          A pesquisa traz, ainda, outras duas abordagens: a identificação da variação temática da atuação das entidades de assessoria jurídica e advocacia popular, e o instrumental manejado em sua atuação. No âmbito do “mapa temático”, foram identificados 13 temas de direitos humanos usualmente defendidos pelas entidades pesquisadas. Segundo Antonio Escrivão Filho, co-coordenador da pesquisa pela Terra de Direitos, “um dado interessante foi a revelação de que há variações na distribuição e presença de temas, na medida das diferentes regiões do país. Neste sentido, destacaram-se, por exemplo, a elevada incidência do tema “LGBTT” no Nordeste, ao passo em que a temática de “Criança e Adolescente” se concentrou na região Sudeste”.

          No que se refere à dimensão instrumental, a pesquisa buscou verificar quais as ferramentas e estratégias presentes no cotidiano de atuação das entidades, confirmando a análise que aponta para uma utilização combinada de instrumentais políticos e jurídicos na solução de demandas referentes à violação ou efetivação dos direitos humanos no Brasil”.

          Nessa linha de especificação e de continuidade de uma experiência que de fato “revoluciona” o ensino jurídico e contribui para o processo de democratização da justiça (Justiça como categoria de reconhecimento e de emancipação e não como sistema funcional e burocrático), tal como propõe Boaventura de Sousa Santos – http://estadodedireito.com.br/para-uma-revolucao-democratica-da-justica/ – guardo grande expectativa do estudo que Adda Luisa de Melo Sousa, estudante de graduação na UnB, dirigente do Centro Acadêmico e do Projeto de Extensão Universitária Assessoria Jurídica Roberto Lyra Filho, está desenvolvendo no PIBIC  – Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica): “Histórico, concepção e prática da Assessoria Jurídica Universitária Popular da UnB – Roberto Lyra Filho“.

          Tendo como base teórica, principalmente O Direito Achado na Rua e o Direito Insurgente, Adda sustenta como hipótese de pesquisa “que AJUP-RLF, assim como muitos projetos de extensão, vivenciou, ao decorrer da sua história, gerações, muito marcadas pelos membros que estavam à frente do projeto na época”, todos mobilizados por uma concepção emancipatória de jurídico, notadamente na UnB (http://estadodedireito.com.br/a-pratica-juridica-na-unb-reconhecer-para-emancipar/; também (http://estadodedireito.com.br/o-direito-achado-na-rua-e-as-possibilidades-de-praticas-juridicas-emancipadoras/e a sua proposta  “é desenvolver essa tese ao decorrer da escrita do artigo, assim como, apresentar a atuação do projeto com os movimentos sociais no DF”.

          Folgo em que a base teórica em que se quer apoiar Adda Luisa também esteja presente nos pressupostos conceituais que orientam a elaboração do Mapa, sobretudo quando os autores da pesquisa, constatam o reaparecimento  dos “movimentos sociais no cenário político da reivindicação de direitos civis, políticos, econômicos e sociais como sujeitos coletivos de direitos”, capazes de, “Instituir novos modos de vida e de juridicidade, não apenas do ponto de vista semântico (como fonte de argumentos que ajudam a criar novas interpretações para velhas categorias), mas também do ponto de vista pragmático (como fonte de práticas que inspiram novas formas de operabilidade do fenômeno jurídico)”, valendo-se, nesse passo, de fontes que se organizam no Grupo de Pesquisa O Direito Achado na Rua:

          Esses movimentos sociais, segundo Sousa Júnior, constituem-se como sujeitos coletivos a partir da elaboração do modo como vivem suas relações e identificam seus interesses. Para o autor, o que dá o caráter de sujeito coletivo a esses grupos “é a conjugação do processo de identidades coletivas, como forma do exercício de suas autonomias e a consciência de um projeto coletivo de mudança social a partir das próprias experiências” (1999, p. 257). Ainda de acordo com Sousa Júnior (1999, p. 258), a ação desses sujeitos coletivos na defesa de interesses reflete o entendimento por parte deles de negação de um Direito, daí a luta para conquistá-lo. É justamente essa luta por Direitos, fundada nas necessidades desses grupos, articuladores de vontades gerais, que realça o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, constituindo novos espaços sociais de participação política nos quais se enunciam novos Direitos e que torna os movimentos sociais como novos sujeitos de Direito, os sujeitos coletivos de Direito”.

          Confira-se, sobre isso, notadamente as páginas 22 e 23 do texto. Ali se verá ainda, conforme os autores que “Pensar a democratização da justiça a partir dessa ótica exige um duplo movimento de observação, análise e reflexão: primeiro, em torno dos processos e práticas de lutas sociais concretas, em cujos horizontes se instituem os direitos humanos (nesse sentido, Sousa Júnior, 1999); segundo, a respeito das formas – de reconhecimento e abertura, ou de invisibilização e indiferença, ou ainda de escancarada repressão – como os órgãos do sistema estatal de justiça relacionam-se ou não com essas lutas”.

          Além dos pressupostos teórico-conceituais, dos elementos vivos colhidos em entrevistas e questionários, a pesquisa alcança ainda o objetivo de oferecer instrumentalidade. Há uma importante bibliografia reunindo referências teórico-epistemológicas e relatórios de intervenção. Por sua vez, os mapas são muito ilustrativos e desenham o cenário do desenvolvimento da assessoria jurídica popular no Brasil. Nesse aspecto, designam os autores (p. 74):

          “Ainda sobre a perspectiva instrumental verifica-se que a pesquisa revelou novos elementos empíricos aptos a contribuir para o debate sobre a judicialização dos conflitos sociais e dos direitos humanos. Neste sentido os dados permitiram realizar um importante debate sobre a medida em que a judicialização pode representar uma tendência voltada para o acesso à justiça ou, de modo contrário, um processo de criminalização da luta por direitos.

          De um modo geral, portanto, a pesquisa aponta para a renovada importância jurídico política da assessoria jurídica e advocacia popular na atualidade. Afinal, a necessidade de transformar as condições objetivas de vida da população brasileira aponta para a centralidade dos movimentos sociais e populares na percepção e luta por direitos e acesso à justiça. Desta forma, o campo da assessoria jurídica e advocacia popular se consolida junto aos movimentos sociais num cenário de luta por direitos.

          Resta, por fim, um firme agradecimento ao Observatório da Justiça Brasileira, e em especial a todos aos movimentos e organizações presentes na pesquisa, em especial àquelas que contribuíram com suas experiências e vivências respondendo às entrevistas. Espera-se que esta pesquisa configure, ao final, uma contribuição útil para a avaliação e construção do cenário da assessoria jurídica e advocacia popular no Brasil”.

          É nesse sentido que tenho destacado o protagonismo emancipatório dos movimentos sociais, apoiados por assessorias jurídicas, que concebem o Direito como condição de constituir processos sociais legítimos de liberdade (LYRA FILHO, Roberto. O que é Direito. São Paulo, Brasiliense. Coleção Primeiros Passos, 1ª ed. 1982), para afinal pensar concepção alargada de acesso à justiça e da justiça a que se tem acesso (cf. SOUSA JUNIOR, José Geraldo de et al. Por uma concepção alargada de Acesso à Justiça”. In: Revista Jurídica da Presidência da República, Brasília, v. 10, n. 90, ed. especial, pp. 01-14, abr./maio, 2008. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/revista/Rev_90/Artigos/PDF/ JoseGeraldo_Rev90.PDF; também, et al. Observar a justiça: pressupostos para a criação de um observatório da justiça brasileira. Relatório de Pesquisa. Brasília: Ministério da Justiça, PNUD, 2009, aqui já citado).

          Reside aí o princípio esperança, no sentido utópico de uma sociedade que se transforme por mediação da Justiça e da Democracia, contra toda forma de obscurantismo. ‘Alguém acredita que esse processo termina com Lula vivo?’, indaga o presidente do Clube Militar, em nota abusiva, boquirrota, em seguida a julgamento no Supremo Tribunal Federal que anula processo corrompido contra o ex-Presidente Lula. Uma declaração que confirma, além da instigação criminosa, a erosão institucional que caracteriza o Brasil hoje, em todos os âmbitos e com sua casta específica, trânsfuga da hierarquia, se aboleta no enorme banco de cargos civis com os quais passa a remunerar-se e a gerir com assombrosa incompetência (veja-se o descalabro do sistema de saúde no enfrentamento à pandemia). Desorientados até nos rudimentos da logística, nem sabem mais que foi Rondon, Pandiá Calógeras, marechal Bittencourt. Não saberiam entregar uma mensagem a Garcia. Garcia? Quem é Garcia?.

          A leitura e o acesso à justiça levados a sério – http://estadodedireito.com.br/experiencias-compartilhadas-de-acesso-a-justica-reflexoes-teoricas-e-praticas/ -, tal como tratados nesse estudo ora Lido para Você, indicam ser possível resgatar o país e permitir que não se perca o rumo do futuro, o acumulado utópico das forças sociais organizadas na sociedade civil, de cuja mobilização derivam todas as conquistas democráticas e a defesa da Constituição, dos direitos e da cidadania, para quem faz a leitura atenta e correta da história social de nosso povo.

 

José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil,  Professor Titular, da Universidade de Brasília,  Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.

quinta-feira, 18 de março de 2021

quarta-feira, 17 de março de 2021

 

Direitos Humanos e Covid-19

Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.

 

 

 

 

DIREITOS HUMANOS E COVID-19. Grupos sociais vulnerabilizados e o contexto de pandemia. Organizadores: José Geraldo de Sousa Junior, Talita Tatiana Dias Rampin e Alberto Carvalho Amaral. Prefácio de Boaventura de Sousa Santos. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2021,

https://www.editoradplacido.com.br/direitos-humanos-e-covid-19-grupos-sociais-vulnerabilizados-e-o-contexto-de-pandemia                   

             A obra já disponível na Editora terá lançamento virtual no dia 19/3, a partir das 14.30 hs, pelo Canal Youtube de O Direito Achado na Rua (www.odireitoachadonarua.blogspot.com),           com uma programação que contará com os organizadores e autores e que poderá ser acompanhada no endereço: https://www.youtube.com/watch?v=0j6-JRRBVFU .

          Com Prefácio de Boaventura de Sousa Santos – O coronavírus, nosso contemporâneoeste livro foi uma demanda direta do editor Plácido Arraes, mobilizado para oferecer uma leitura panorâmica mas crítica que abrangesse o campo interpretativo da pandemia e a afetação de grupos vulnerabilizados sob a perspectiva dos direitos humanos.

            Assim é que nos convocou os organizadores da obra, todos editados pela D’Plácido portanto, sintonizados com os fundamentos editoriais do selo que fundou e que já ostenta um expressivo catálogo de referência sobretudo nos temas dos direitos humanos e das teorias de justiça e de sociedade.

            A resposta foi imediata, de autores e de autoras consagrados, nacionais e estrangeiros, e logo excedemos o volume razoável de textos, tanto que acumulamos material para um segundo volume, já programado pelo Editor para lançamento em março de 2022.

            Além de nosso texto de organizadores, que abre o Sumário: A pandemia e o isolamento de direitos: uma análise a partir da perspectiva de O Direito Achado na Rua e se constitui, por seus fundamentos, fio condutor do rico material assim produzido, o livro se desdobra num arranjo muito sofisticado de temas que se prestaram a organizar as abordagens oferecidas pelos Autores e Autoras reunidos no livro: PARTE 1 – Aprender com o presente para disputar e construir o futuro; PARTE 2 – Direitos Humanos e Democracia: vida e subjetividade protagonista no contexto da pandemia; PARTE 3 – A Recusa da Vulnerabilização: ser sujeito e definir um futuro solidário; PARTE 4 – O Pós-Pandêmico e Direitos Humanos.

Compondo esse arco e distribuídos nas quatro partes do Sumário, o libro contêm os seguintes temas e respectivos Autores e Autoras:

El cinismo, el escepticismo y la tecnocracia frente a los derechos humanos en el contexto del Covid-19, de O Direito Achado na RuaDavid Sánchez Rubio; Não podemos lavar nossas mãos, de Manuel E. Gándara Carballido; A Covid-19 e os desafios para a sociologia, de Lourdes Maria Bandeira; Austeridade fiscal em tempos de coronavírus: reflexos da emenda constitucional do teto de gastos públicos no aumento das desigualdades educacionais no Brasil, de Claudiane Silva Carvalho Alexandre Bernardino Costa; Direitos humanos e democracia: os atalhos da pandemia da COVID-19, de Antonio Henrique Graciano Suxberger; Democracia adoecida: crise do tempo da Constituição e as promessas de justiça ameaçadas no Brasil, de Mauro Almeida Noleto; A oportunidade e o abismo: deslocamentos criminológicos em tempos de pandemia, de José Carlos Moreira da Silva Filho; Diálogo remoto no processo legislativo durante a pandemia e os riscos para as garantias trabalhistas, de Eneida Vinhaes Bello Dultra; Tempo, trabalho e sociedade ocidental: a esperança de reflexões pandêmicas, de Catherine Coutinho; Emergências em saúde pública, Covid-19 e justiça reprodutiva: o que deveríamos aprender com a epidemia de Zika para proteger mulheres e meninas, de Luciana Brito Gabriela Rondon; Acesso à justiça & Defensoria Pública na pandemia: entre os fatores de vulnerabilidade e os vulnerabilizados, de Edilson Santana Gonçalves Filho, Jorge Bheron Rocha Maurilio Casas Maia; Emergencia penitenciaria y emergencia sanitaria. Propuestas para mitigar las violaciones a derechos humanos en las cárceles argentinas, de Gabriel I. Anitua; Do açoite ao calabouço, da casa de correção à superlotação carcerária: revisitando o sistema punitivo brasileiro em tempos de Covid-19, de Eduardo Xavier Lemos; O direito humano à moradia no contexto da Covid-19: as disputas em torno da suspensão das remoções, de Adriana Nogueira Vieira Lima, Alex Ferreira Magalhães, Luciana Bedeschi Rosane Tierno; Quilombos e quilombismo: uma luta permanente, de Eduardo Fernandes de Araújo, Fernando Gallardo Vieira Prioste, Givânia Maria Silva Vercilene Francisco Dias; Agência quilombola, racismo e covid-19: reoríentando a luta por direitos, de Rodrigo Portela Gomes; Vírus, telas e crianças: entrelaçamentos em época de pandemia, de Vanessa Ponte Fabrício Neves; O impacto da pandemia para mulheres em situação de violência doméstica e familiar no Distrito Federal: observações a partir de um projeto de extensão universitária, de Ela Wiecko V. de Castilho, Sônia Maria Alves da Costa Isabella Flávia Maia Coutinho; Pandemia, Legislativo brasileiro e o enfrentamento à violência doméstica e familiar contra as mulheres e meninas, de Fabiana Cristina Severi, Ana Carolina de Sá Juzo Inara Flora Cipriano Firmino;  A pandemica violação dos direitos humanos das mulheres e o contexto do Covid-19, de Lívia Gimenes Dias da Fonseca; Direitos Humanos LGBTI+: gênero e sexualidade em tempo de pandemia, de Luanna Marley; Reflexões sobre o futuro e sobre o direito no pós-Pandemia: uma perspectiva solidária aos povos indígenas, de José Geraldo de Sousa Junior Renata Carolina Corrêa Vieira.

            O texto dos organizadores, que abre o livro, está assim resumido: “a partir dos pressupostos teóricos de O Direito Achado na Rua e visualizando as mudanças drásticas de rotinas, vidas e relacionamentos, o texto procura situar o acesso à justiça em tempos de pandemia do Covid-19, problematizando uma situação de isolamento que é marcada pelas dessemelhanças estruturais, que fragiliza ainda mais os grupos socialmente. Compreender o acesso à justiça exige, com ainda maior força, visualizar para além da letra positivada e visualizar o não-dito, mas socialmente inegável, na busca de minorar a exclusão de direitos dos excluídos”.

            E ainda que se tenha, em tempos de pandemia, a rua sensivelmente esvaziada, já que são preenchidas, com todos os riscos e adversidades inerentes, pelos necessitados, precarizados, obrigados a se expor para garantir uma condição mínima para si e sua família, ao lado dos impertinentes negativistas, negadores e afrontadores, que amealharam uma discussão política mais profunda em um triste episódio de desrespeito à razoabilidade, sem qualquer empatia para os demais e, pior, sem qualquer estima por sua própria situação e das pessoas próximas a si.  Mas se a rua é esvaziada, de outro lado, esta rua indiscutivelmente irá adentrar nos lares e os locais, antes públicos, são publicizados por formas diversas, que acabam por ressignificar e reposicionar questões históricas e sentidos novos.

            Mesmo nesse cenário, mostra-se pertinente a compreensão de que a “rua”, externa ou instrusivamente incluída, é ainda “o lugar simbólico do acontecimento, do protesto, do gesto paradigmático que, como divisa Marshal Berman, “transforma a multidão de solitários urbanos em povo e reivindica a rua da cidade para a vida humana”.

            Nesta rua ressignificada, local propício para que sociabilidades reinventadas abram “a consciência de novos sujeitos para uma cultura de cidadania e de participações democráticas”, tomando como protagonismo dos sujeitos para romper a as situações que os alienem ou coisifiquem, por isso que não se diz que são vulneráveis, mas vulnerabilizados, podendo representar-se em projetos de sociedade com possibilidades reais de emancipação.

            Trata-se de confrontar e de superar destempos de nossa coexistência, atentos ao que, no prefácio, vislumbra Boaventura de Sousa Santos, acerca das implicações da contemporaneidade do vírus.

            “O coronavírus – ele diz –é nosso contemporâneo no sentido mais profundo do termo. Não o é apenas por ocorrer no mesmo tempo linear em que ocorrem as nossas vidas (simultaneidade). É nosso contemporâneo porque partilha connosco as contradições do nosso tempo, os passados que não passaram e os futuros que virão ou não. Isto não significa que viva o tempo presente do mesmo modo que nós. Há diferentes formas de ser contemporâneo. O camponês africano é contemporâneo do executivo do Banco Mundial que foi avaliar as condições de investimento internacional no seu território. Nos últimos 50 anos acumulou-se um repertório extremamente diverso de problematizações da noção de contemporaneidade. Muito diferentes entre si, todas essas noções têm vindo a questionar as conceções dominantes de progresso e de tempo linear herdadas do Iluminismo Europeu dos séculos XXVIII e XIX. Essas conceções buscavam reduzir a contemporaneidade ao que coincidia com o modo de pensar e de viver das classes dominantes europeias, tudo o resto sendo considerado resíduo ou lixo histórico.

            Sermos contemporâneos do vírus significa que não podemos entender o que somos sem entender o vírus. O modo como o vírus emerge, se difunde, nos ameaça e condiciona as nossas vidas é bem fruto do mesmo tempo que nos faz ser o que somos. Implica ter presente que, se nos quisermos ver livres do vírus, teremos de abandonar parte do que mais nos seduz no modo como vivemos”.

            É um alento dar-se conta que por toda parte começa-se a operar um movimento responsável para mudar o estado de coisas que produziu tamanho assombro nos sentidos de nossa existência. Noto com esperança que entre esses movimentos distinguidos ressoa muito convocatoriamente a voz do Papa Francisco, resoluta em vários pronunciamentos, exortações, encíclicas. Agora mesmo, enquanto escrevo, o Vaticano publica a sua Mensagem para o Dia Mundial da Paz 2021 a ser celebrado em1º de janeiro de 2021.

          O Papa retoma o tema da pandemia para lembrar que “o ano de 2020 ficou marcado pela grande crise sanitária da Covid-19, que se transformou num fenómeno plurissectorial e global, agravando fortemente outras crises inter-relacionadas como a climática, alimentar, económica e migratória, e provocando grandes sofrimentos e incómodos. Penso, em primeiro lugar, naqueles que perderam um familiar ou uma pessoa querida, mas também em quem ficou sem trabalho. Lembro de modo especial os médicos, enfermeiras e enfermeiros, farmacêuticos, investigadores, voluntários, capelães e funcionários dos hospitais e centros de saúde, que se prodigalizaram – e continuam a fazê-lo – com grande fadiga e sacrifício, a ponto de alguns deles morrerem quando procuravam estar perto dos doentes a fim de aliviar os seus sofrimentos ou salvar-lhes a vida. Ao mesmo tempo que presto homenagem a estas pessoas, renovo o apelo aos responsáveis políticos e ao sector privado para que tomem as medidas adequadas a garantir o acesso às vacinas contra a Covid-19 e às tecnologias essenciais necessárias para dar assistência aos doentes e a todos aqueles que são mais pobres e mais frágeis. É doloroso constatar que, ao lado de numerosos testemunhos de caridade e solidariedade, infelizmente ganham novo impulso várias formas de nacionalismo, racismo, xenofobia e também guerras e conflitos que semeiam morte e destruição. Estes e outros acontecimentos, que marcaram o caminho da humanidade no ano de 2020, ensinam-nos a importância de cuidarmos uns dos outros e da criação a fim de se construir uma sociedade alicerçada em relações de fraternidade. Por isso, escolhi como tema desta mensagem «a cultura do cuidado como percurso de paz»; a cultura do cuidado para erradicar a cultura da indiferença, do descarte e do conflito, que hoje muitas vezes parece prevalecer”.

          Na contramão desses esforços, no Brasil, em meio à desorientação funcional e errática de autoridades das quais um mínimo de coordenação devesse ser esperada, concedendo que não se atenham a intenções dolosas, constatar a mobilizada resposta social de defesa sanitária e de respeito à cidadania, tal como tratei aqui neste espaço (https://estadodedireito.com.br/28656-2/).

            Algo que ultrapassa “todos os limites” ao impulso da “estupidez assassina” que implica o próprio “presidente diante da pandemia de coronavírus” ao ponto de uma “irresponsabilidade delinquente”, que sequer finge “capacidade e maturidade para liderar a nação de 212 milhões de habitantes num momento dramático da sua trajetória coletiva”. É o que diz em editorial o Jornal Folha de São Paulo (O que Pensa a Folha, 12/12/2020), ao apostrofar: “Chega de molecagens com a vacina!”.

          Com mais de 180 mil pessoas que já morreram de Covid-19 no Brasil pela contagem dos estados, subestimada e com a epidemia voltando a sair do controle, o jornal considera “o presidente da República, sabotador de primeira hora das medidas sanitárias exigidas e principal responsável por esse conjunto de desgraças”, largando a população “abandonada pelo governo federal”, em “descaso homicida!”.

          Por isso começam as mobilizações da Sociedade Civil, tal como a campanha Vacinas Já!, lançada nesse 10 de dezembro (dia universal dos direitos humanos), pela Comissão Justiça e Paz de São Paulo  exatamente “pelo direito de todo ser humano à vacina gratuita contra o Covid-19”,  chamando o País a se unir “para assegurar o direito humano à vida , garantido pelo art. 5o da Constituição Federal”, pois “a vida de todo ser humano importa”. Além de um amplo registro de muitas iniciativas, no nível local de governança (prefeituras), ou regional (Consórcio Nordeste) ou ainda de organizações sociais do campo (MST), indígenas e pastorais, oferecendo respostas à crise que não encontram correspondência no plano nacional.

            Assim, é com o valioso respeito e consideração ao acumulado democrático de políticas públicas e sociais, sobretudo na área de saúde, que desde a Constituição de 1988 foi considerada direito de todos e dever do Estado, por meio de um sistema único de atenção universal mantida pelo orçamento público.

            Ainda bem que se assiste nessa quadra de desconstrução de políticas, o engajamento para a defesa desse modelo de atenção, não só por meio de atuação de defesa do sistema público de saúde e de seu principal instrumento o SUS, como acontece agora com a Campanha O Brasil Precisa do SUS. Soa como uma canção ouvir Caetano Veloso entoar que no “Brasil tão desigual precisamos defender o SUS como nossa maior política pública social”.

            O nosso editor Plácido Arraes, por isso mesmo, já solicitou aos Organizadores da obra um outro volume centrado exatamente na identificação dessas respostas, sua exemplaridade, sua extensão solidária, seu horizonte de possibilidades para novos sentidos sociais e para novos futuros possíveis.

 

José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil,  Professor Titular, da Universidade de Brasília,  Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua