O Direito Achado na Rua: nossa conquista é do tamanho da nossa luta

quarta-feira, 27 de janeiro de 2021

 

Direito Sanitário

Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.

 

Direito Sanitário. Coletânea em Homenagem à Profa. Dra. Maria Célia Delduque. Sandra Mara Campos Alves, Amanda N. Lopes Espiñeira Lemos (Organizadoras). Brasília: Matrioska Editora, 2020, 278 p. Disponível para download gratuito: https://www.cadernos.prodisa.fiocruz.br/LIVRO_PDF_Direito_Sanitario_digital_link_ajustado-1.pdf.

 

         O Sumário do Livro, organizado em duas partes, a primeira para configurar o panorama brasileiro e a segunda o estrangeiro, exibe a boa organização da obra, seja pela convocação dos expertos que a ela acudiram cujas bibliografias, indicam concomitante a associação de seus estudos e obras e percurso no campo (p. VII-XIII), sejam pelo desdobramento analítico do tema elaborado por meio de itens que revelam o cuidado coordenador do livro, inclusive na extensão de cada texto. Não surpreende, conhecendo a boa formação das Organizadoras ao impulso orientador da homenageada, reconhecidamente uma das principais referências fundantes do Direito Sanitário, juntamente com Sueli Gandolfi Dallari e Celso Campilongo, estes vinculados ao CEPEDISA, por eles institucionalizado enquanto área de pesquisa e de pós-graduação na Universidade de São Paulo.

         Para efeito deste texto de divulgação desdobro o sumário, no seu desenho analítico e autoral:

PARTE 1 – PANORAMA BRASILEIRO

  1. POR QUE UMA TEORIA GERAL DO DIREITO SANITÁRIO?, Jairo Bisol e Moacyr Rey Filho; 2. A IMPORTÂNCIA SOCIAL DO SUS, Alethele de Oliveira Santos, Lourdes Lemos, Almeida; 3. O SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE E A EMENDA CONSTITUCIONAL: IMPACTOS SOBRE O DIREITO DEMOCRÁTICO À SAÚDE, Jarbas Ricardo Almeida Cunha; 4. A IMPORTÂNCIA DA PRODUÇÃO NORMATIVA PARA A EFETIVAÇÃO DO DIREITO À SAÚDE NO BRASIL, Luiz Carlos P. Romero; 5. DIREITO À SAÚDE, DEMOCRACIA E TEORIA DA REGULAÇÃO, Márcio Iorio Aranha; 6. DEMOCRACIA SANITÁRIA: UM CAMINHO AINDA LONGO A PERCORRER, Fernando P. Cupertino de Barros; 7. A DEMOCRACIA ELETRÔNICA NO SETOR SAÚDE: UM PROCESSO EM CONSTRUÇÃO, Sandra Mara Campos Alves; 8. JUDICIALIZAÇÃO DA SAÚDE, DIÁLOGOS INSTITUCIONAIS E O STF, Daniel dos Santos Rodrigues e Jordão Horácio da Silva Lima; 9. AS OMISSÕES NA JUDICIALIZAÇÃO DA SAÚDE, Clenio Jair Schulze; 10. PODER REGULAMENTAR DA ANVISA NO CONTROLE DOS PRODUTOS DERIVADOS DO TABACO: ANÁLISE DA AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE Nº 4.874, Edith Maria Barbosa Ramos e Dhiego Melo Job de Almeida; 11. REGULAMENTAÇÃO DO CULTIVO DA CANNABIS PARA FINS MEDICINAIS: O PROBLEMA DA CONCESSÃO DE HABEAS CORPUS PREVENTIVO PARA AUTORIZAÇÃO DO PLANTIO DOMÉSTICO DA MACONHA SOB O FUNDAMENTO DO DIREITO À SAÚDE, Alvaro Luis de A. S. Ciarlini.

PARTE 2 – PANORAMA ESTRANGEIRO

  1. PROTEÇÃO DE DADOS PESSOAIS EM SAÚDE: ANÁLISE DAS LEGISLAÇÕES BRASILEIRA E ARGENTINA, Amanda Nunes Lopes Espiñeira Lemos e Edilenice Passos; 13. INTERVENCIÓN DE LAS NIÑAS, NIÑOS Y ADOLESCENTES EN ACTOS MÉDICOS SEGÚN EL NUEVO DERECHO PRIVADO ARGENTINO, Viviana Perracini; 14. EL SEGURO DE SALUD PROVINCIAL FRENTE A LOS AMPAROS EN SALUD: ¿UNA CONDENA ANTICIPADA?, Augustín Carignani; 15. A DEMOCRACIA SANITÁRIA E OS DIREITOS DOS DOENTES ONCOLÓGICOS EM PORTUGAL, André Gonçalo Dias Pereira, Ana Elizabete Ferreira e Carla Barbosa; 16. DAÑOS EN EL SENO DEL CONTRATO DE CLÍNICA U HOSPITALIZACIÓN: RÉGIMEN DE RESPONSABILIDAD EN EL DERECHO ESPAÑOL, Joaquín Cayón-de las Cuevas; 17. LA SOCIOLOGIA DELLA MEDICINA IN PROSPETTIVA SISTEMICA, Giancarlo Corsi.

            As organizadoras homenageiam Maria Célia Delduque, quando ela se jubila de suas funções públicas depois de um percurso institucional de Pesquisadora em Direito Sanitário da Fundação Oswaldo Cruz, fundadora do Programa de Direito Sanitário daquela instituição, do qual esteva à frente da coordenação por 13 (treze) anos.

Foto: Governo do Brasil

 Conforme a Apresentação elaborada pelas Organizadoras, claramente influenciadas pela homenageada, porque também participaram como alunas e depois colegas docentes, pesquisadoras e gestoras de políticas de saúde, no ensino e na pesquisa em Direito Sanitário e também na Fiocruz Brasília, onde contribuíram para a criação do Curso de Especialização em Direito Sanitário, sendo, até hoje, a única oferta pública e gratuita neste campo do saber.

         Ainda na Apresentação, as Organizadoras indicam parte do percurso de Maria Célia, que também foi “responsável pela coordenação pedagógica de cursos de Direito Sanitário junto a relevantes órgãos que guardam estreita relação com a garantia do Direito à Saúde, tais como: Escola Superior do Ministério Público da União (ESMPU); Conselho Nacional de Secretários de Saúde (CONASS) e Conselho Nacional de Secretário Municipais de Saúde (CONASEMS). Coordenou, ainda, cursos internacionais de Direito Sanitário apoiados pela Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS). Nessa esteira, integrou (e integra) programas de pós-graduação stricto sensu, ministrando a disciplina de Direito Sanitário e orientando dissertações e teses nessa área, além da participação em inúmeras bancas de defesa de trabalhos acadêmicos”.

         A bibliografia da homenageada, prossegue com o relevo de sua contribuição no campo da pesquisa e na coordenação de importantes projetos, muitos deles financiados por órgãos de fomento nacionais, selecionados por meio de editais públicos. A Apresentação destaca o protagonismo da homenageada na “proposição de parcerias internacionais, com o objetivo de difundir a reflexão sobre o Direito Sanitário para além do território brasileiro. Nesse sentido foi membro fundadora da Rede Ibero-Americana de Direito Sanitário (2011) e da Associação Lusófona de Direito da Saúde (2015), permanecendo em cargos de direção junto a essas instituições por longo período. É também autora de inúmeros artigos acadêmicos, capítulos de livros, além de organizadora de obras coletivas, sempre tendo como foco a defesa e garantia do Direito à Saúde e do Sistema Único de Saúde (SUS)”.

         Os textos que compõem o livro, fruto da organização que coordenou a sua elaboração amplificam o núcleo político-epistemológico desse diálogo fazendo da obra uma demonstração eloquente do sentido orgânico do agir acadêmico e intelectual. Marca o protocolo da continuidade de coletivos de pensamento e de pesquisa (Domenico de Masi, A Emoção e a Regra) que asseguram o avanço da inteligência à disposição do bem comum e da felicidade humana (Rousseau, na monografia de 1750, Um Discurso sobre as Ciências e as Artes).

         Assim como os Cadernos Ibero-Americanos de Direito Sanitário (CIADS) a publicação trilíngue (português, espanhol e inglês), trimestral, de acesso livre, editada pelo Programa de Direito Sanitário da Fundação Oswaldo Cruz/Brasília. Dirigido por professores, pesquisadores e estudantes de Direito, Ciências da Saúde e Ciências Sociais; operadores do Direito; profissionais de saúde e gestores de serviços e sistemas de saúde, com o objetivo  de difundir e estimular o desenvolvimento do Direito Sanitário na região ibero-americana, promovendo o debate dos grandes temas e dos principais desafios do Direito Sanitário contemporâneo, a publicação, das mais importantes da área, tem Maria Célia Delduque, da  Fundação Oswaldo Cruz/Brasília, na direção editorial e também as Organizadoras e muitos dos autores e autoras que estão presentes no livro.

         Eu próprio integro o seu Conselho Científico, desde a sua criação, com participação também autoral, embora bissexta, porque meu engajamento nesse tema é mais incidental, numa aproximação que busca associar o tema nuclear do campo epistemológico do Direito Sanitário ao da política, pelo recorte da construção democrática, aliás, trabalhado por mais de um autor ou autora no livro ora Lido para Você.

         Assim, o meu artigo Concepção e prática do O Direito Achado na Rua: plataforma para um Direito Emancipatório, que saiu na edição v. 6 n. 2 (2017): (ABR/JUN. 2017), https://doi.org/10.17566/ciads.v6i2.389Recupero aqui o resumo do artigo publicado: “Objetivo: o artigo tem o objetivo de resgatar a história da série O Direito Achado na Rua, lançado em 1987. Metodologia: fez-se um resumo histórico das publicações seriadas sobre o tema a fim de organizar a memória da coleção. Resultados: todos os números da série compõe uma coleção de referência do Direito e da Cidadania estabelecendo um diálogo entre a justiça social e o conhecimento necessário para sua realização e concretização. Conclusão: o Direito não é; ele se faz nesse processo histórico de libertação enquanto desvenda progressivamente os impedimentos da liberdade não lesiva aos demais. Nasce na rua, no clamor dos espoliados e oprimidos, até se consumar, vale repetir, pela mediação dos direitos humanos, na enunciação dos princípios de uma legítima organização social da liberdade”.

         Nota-se, o artigo ao resgatar a história da Série O Direito Achado na Rua, na qual o Direito à Saúde foi tema de dois volumes, o 4 e o 6, este em espanhol numa parceria entre a UnB, a Fiocruz e a OPAS, “El Derecho desde la Calle”, confirma o aporte relevante do tema na bibliografia do Direito Crítico a ponto de terem esses dois volumes vindo a se constituir material de referência do campo. Mas, sobretudo, também põe em relevo a enorme contribuição de Maria Célia Delduque para a própria constituição desse campo (a propósito, ver em Jornal Estado de Direito, a minha Coluna Lido para Você, tendo como objeto o livro Introdução Crítica ao Direito à Saúde: https://estadodedireito.com.br/28656-2/).

         A publicação dessa obra se dá num momento crítico para o mundo e para o país, quando nos encontramos assombrados por uma pandemia que mostra toda a vulnerabilidade da vida quando se combinam o modo temerário de cuidar do planeta, de dar prioridade ao econômico e à acumulação e não à equidade distributiva da riqueza em atenção ao social e à inclusão e de fazer a gestão coordenada da política.

         Mais que nunca a saúde e o direito sanitário se fazem urgentes. E o livro é uma contribuição para atender a essas urgências. A sua organização, os seus autores e as suas autoras oferecem as pistas para repensar o sentido das prioridades e as diretrizes para a boa gestão das políticas de saúde e sanitárias.

            De há muito, desde os debates constituintes de 1988 conduzidos pelo Movimento de Direito Sanitário que inscreveu na Constituição a saúde como direito e não como mercadoria, refuta-se a desculpa do improviso que chega a ser criminoso. Fiquei bem impressionado com um recente resgate desse percurso, que de resto, inclui minhas considerações sobre a construção social da cidadania e a afirmação como direito de todos e dever do estado, no espaço pré-constituinte instaurado nos eventos da 8ª Conferência Nacional de Saúde, exposto na dissertação de mestrado de Dorival Fagundes Cotrim Júnior Resistências Institucionalizadas: Gênese e Lutas do Movimento Sanitário Brasileiro, defendida na PUC-RJ em 2019.

            E mais ainda com o modo pertinente com que sintetizou, ao discorrer sobre a oitava, a minha abordagem, de modo a figurá-la nos elementos, diz em seu texto: “Assim, os elementos “representação, liberdade e participação têm sido a tônica das reivindicações democráticas” ampliadoras da cidadania, passando do plano político ao social, segundo o autor; e que no país as lutas não eram pela tomada de poder (âmbito político), mas uma luta pelo direito de organização e de participação nas decisões. No âmbito social o problema não era apenas defesa/conservação de certos direitos, mas o da conquista do próprio direito à cidadania e a instituição do sujeito social desse direito” (p. 151-152). Considero uma boa síntese.

            Em 2007, no espaço de debate do Observatório da Constituição e da Democracia que os Grupos de Pesquisa Sociedade, Tempo e Direito e O Direito Achado na Rua, editavam na Faculdade de Direito da UnB, em edição dedicada ao Direito e Saúde, a entrevista desse número foi conduzida pelas pesquisadoras Maria Célia Delduque e Mariana Siqueira de Carvalho Oliveira, que ouviram a Professora Sueli Gandolfi Dallari, num “Balanço da Saúde no Brasil: SUS, Participação Social, Formação Sanitária e Agências Reguladoras”  (C&D Constituição e Democracia, nº 13, maio de 207, p. 12-13). Temas amplos, mas ao final uma dramática antevisão: “O ponto frágil do sistema de saúde brasileiro é o olhar para as questões de vigilância sanitária e epidemiológica. Trabalhar com estruturas separadas não funciona. Não se pode ter um emaranhado de estruturas burocráticas, que precisam dialogar. O fato é que a vigilância sanitária ainda hoje é uma estrutura pouco privilegiada no nosso sistema de saúde e é a mais importante. Se nós fizermos isso bem, inclusive a visão da assistência será outra”.

            Se é verdade, conforme diz o Papa Francisco (Mensagem para o IV Dia Mundial dos Pobres, em 15 de novembro de 2020), de que essa “pandemia chegou de improviso e apanhou-nos impreparados, deixando uma grande sensação de desorientamento e impotência”, a experiência histórica e política do agir responsável não podem ser um improviso: “Não nos improvisamos instrumentos de misericórdia. Requer-se um treino diário, que parte da consciência de quanto nós próprios, em primeiro lugar, precisamos duma mão estendida em nosso favor”, como agir misericordioso ou como agir por vocação política no interesse do bem comum.

            Uma mão estendida responsável, que se integre e coordene nas ações de solidariedade, sobretudo no plano político,  e que não se amolde ao parasitismo oportunista do Chupim, a ave passeriforme sempre referida por causa da constante luta dos filhotes desta espécie pela alimentação oferecida pelos pais adotivos em detrimento aos irmãos, pois não constrói ninhos e deposita seus ovos em ninhos de outras espécies, com o instinto matreiro de o fazer um pouco antes para “rachar” a alimentação em benefício de sua postura, mesmo que a custa da morte dos filhotes do hospedeiro (como no caso dos tico-ticos), eliminados do ninho ou recebendo menos alimento, à custa de suas probabilidades de sobrevivência (https://www.wikiaves.com.br/wiki/chupim).

            Não fosse o comportamento da ave uma metáfora da conduta abusiva na política que corrói toda a paciência, porque zomba de tudo e de todos, com desenfreada audácia, no Palatino ou na ronda noturna da cidade, sem respeito ao povo, sequer às Instituições e ainda insiste, já descobertas as razões e as conspirações soturnas, que confrontam a dignidade, a civilidade e a boa fé na governança.

            Assim avalia a jurista Deisy Ventura: “Não houve omissão, mas uma ação deliberada para disseminação do vírus”, ela que é especialista na relação entre pandemias e direito internacional, afirma que atos normativos ao longo da pandemia evidenciam que o governo federal trabalhou contra as medidas de isolamento para não afetar a economia. Além disso, fez propaganda para o tratamento preventivo claramente ineficaz. Com isso, a jurista acredita que autoridades devem responder a mais ações na Justiça e até em tribunais internacionais. Pois são muitas as evidências aliás, externalizadas, com farta gravação por meios de comunicação que não avançam na análise crítica da impudência mais ainda que imprudência, ao afiançar que a melhor contenção seria o máximo de contaminação para o arrefecimento “natural” do contágio (https://cbn.globoradio.globo.com/media/audio/328980/nao-houve-omissao-mas-uma-acao-deliberada-para-dis.htm?fbclid=IwAR0gBBwGC0enx-PpyZNuqv_DAlOV8T72ASzPTcf0HCtye3Tgm6fjLhKIsmE).  Na mesma direção, tomando por base pesquisa levada a efeito sob a direção da professora Deisy, a sua conclusão de que  “Pesquisa revela que Bolsonaro executou uma ‘estratégia institucional de propagação do coronavírus’” (https://brasil.elpais.com/brasil/2021-01-21/pesquisa-revela-que-bolsonaro-executou-uma-estrategia-institucional-de-propagacao-do-virus.html?fbclid=IwAR0V2HWwuXbFBgGg8xIXK5daR0V6A9v-iyTq9lucsdeorgo-nzFa7xezBRY).

         Quem, nesses tempos, dentre nós, se pode dizer ainda, ignora o que foi feito na noite passada e na precedente, onde estiveram, com quem se encontraram, que decisão tomaram, enquanto não se levante uma voz ou vozes como a de Cícero (63 a. C.) para incriminar os atentados de Catilina contra o povo e a Repúblicaquousque tandem abutere patientia nostra?.

         Que se ponha cobro a tanta afronta. Para o Papa Francisco, sob essa perspectiva, é preciso resgatar a caridade como dimensão sublime da política porque ela representa a abertura de “caminhos de esperança”. Na Carta Encíclica Fratelli Tutti sobre a Fraternidade e a Amizade Social (São Paulo: Edições Paulinas, 2020), o Papa Samaritano exorta: a “recente pandemia permitiu-nos recuperar e valorizar tantos companheiros e companheiras de viagem que, no medo, reagiram dando a própria vida. Fomos capazes de reconhecer como as nossas vidas são tecidas e sustentadas por pessoas comuns que, sem dúvida, escreveram os acontecimentos decisivos da nossa história compartilhada”.

 

 

José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil,  Professor Titular, da Universidade de Brasília,  Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua

quinta-feira, 21 de janeiro de 2021

 

Traços – Especial 5 Anos.

Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.

 

Traços Especial 5 Anos. Brasília: Associação Traços de Comunicação e Cultura, novembro/dezembro de 2020.

“Quando se pega uma revista Traços nas mãos você sente que ela pulsa. Que continuará pulsando. Porque arte é sangue” (Poeta Nicolas Behr, na abertura editorial do número especial 5 Anos).                          

 

            O número especial abre assim, com a epígrafe poética de Nicolas Behr, o poeta-guia de Brasília. Não há amigo ou colega forasteiro, que chegando em Brasília, eu não o introduza à cidade com os poemas de Nicolas. Poemas e prosa que fui acompanhando refinarem-se, como os traços de Niemeyer, pois “nem tudo que é torto é errado, vejam as pernas do Garrincha e as árvores do Cerrado”. Desde Iogurte com Farinha, Chá com Porrada e tantos escritos mimeografados como devem ser os textos de protesto, que recebíamos nos 1980 nas filas do teatro da Escola-Parque, na W3 Sul, nas portas do Cine Brasília, do Atlântida, do Karim da 110 sul, tempos em que a arte ocupava os espaços, alguns dos quais depois se converteram em templos para adoração de bezerros de ouro.

            Nicolas é a primeira lição, em poesia, que ofereço aos visitantes. Confiante na sua interpretação da cidade. Por isso que, Reitor, tive o Nicolas na agenda das aulas de inquietação nas quais, na UnB, no teatro de arena, eu recepcionava a cada semestre a comunidade universitária. Ali Nicolas falou de Brasília e do Brasil, na sequência das interpelações instigantes de Miguel Nicolelis, Amyr Klink, Ênio Candotti, Leonardo Boff, Clarice Niskier, Gog, Juliano Cazarré, José Miguel Wisnisk, Eric Nepomuceno, Marcelo Gleiser e, no último semestre de meu mandato, Boaventura de Sousa Santos.

            A segunda lição é dada com as crônicas de Conceição Freitas. Na cronologia de seu mergulho na escala humana da cidade, não apenas a bucólica, a arquitetônica e a monumental. Por isso tenho instigado Conceição, agora dedicada ao refúgio cultural de sua banca de jornais na 308 Sul – Banca da Conceição, que continue o seu mergulho desde o banquinho de sua bancaUma expectativa que guardo sobre constituir esse viés interpretativo da cidade, mais pelo imaginário e pelo intuitivo, talvez até pelo contraintuitivo, tal como expressei em meu Lido para Você sobre o livro de Clôdo Ferreira – Comunicação e Música, e sobre o Guia Musical de Brasília (https://estadodedireito.com.br/comunicacao-e-musica/). A banca afinal, é uma espécie de academia. Neste começo de janeiro, celebrando seus aniversários, tal qual a ABL, Conceição recebeu com máscaras e bolo seus acadêmicos mais assíduos e como ela diz “humanos fundamentais”, José Carlos Córdoba Coutinho e Vladimir Carvalho.

            “A Traços é muito mais que uma simples revista. É um projeto social, coletivo e participativo. Porque a Traços é a maior aliada dos que brigam para ter direito à cidade e dos que lutam pelo direito de se manifestar nos espaços públicos. Expandindo o conceito de Brasília, dissociando a cidade-capital da ideia de poder. Mostrando os primeiros sinais de uma identidade cultural, rebelde, nesse diverso caldeirão cultural que é a Grande Brasília. A Traços é uma intervenção urbana ambulante. Que valoriza o impresso. Não dá pra deletar esta revista. Muito mais que informação a Traços estampa dignidade. Pois ela é comercializada pelos e pelas Porta-Vozes da Cultura. Que são, na verdade, também multiplicadores, difusores de cultura. Muitos desses e dessas porta-vozes, que viviam em estado de vulnerabilidade social, deixaram as ruas, pois com a venda de Traços conseguiram renda própria. Isso se chama cidadania. Isso se chama reinserção social” (Trecho do Editorial do número especial).

            Projeto bem sofisticado, conduzido por uma equipe técnica e politicamente experiente e com clareza acerca da concepção gráfica e filosófica do empreendimento. A Traços, eles explicitam e reeditam neste número especial, “é uma publicação sobre arte e cultura, vendida nos espaços culturais e gastronômicos de Brasília pelas mãos dos Porta-Vozes da Cultura – pessoas que estavam em situação de rua ou em extrema vulnerabilidade financeira. Por meio da revista, o projeto contribui com a geração de renda e o ganho de autonomia dos Porta-Vozes (coordenados e orientados conforme um Código de Conduta), que ficam com 70% de valor de cada exemplar”

         O modelo do projeto não é inédito. A Revista The Big Issue Japan ajuda e dá ofício para homeless. O projeto se inspira em experiência inglesa com uma proposta para ajudar moradores de rua. Está no país desde 2003 e oferece um ofício para quem não tem onde morar, como um incentivo para sair dessa situação, além de servir para que as pessoas voltem a socializar e aprendam um trabalho novo.

         De certo modo essas experiências compõem o que já se designa como organização internacional dos moradores de rua –http://cienciaecultura.bvs.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0009-67252005000100003.  Uma das iniciativas mais bem-sucedidas internacionalmente são os chamados street papers, jornais e revistas elaborados ou vendidos por moradores de rua, e têm sido tema de debates em conferências, que já ultrapassaram mais de dez realizações da International Network of Street Papers (INSP), uma rede internacional que abrange as publicações do gênero.

         A matéria publicada conforme a referência acima, dá conta de uma Rede dos Sem-Teto, sediada em Glasgow, na Escócia, que reúne 55 publicações de 28 países, responsáveis pela circulação total de 26 milhões de exemplares por ano. Todas as publicações são editadas em papel de boa qualidade, apresentam projetos gráficos inovadores e, além de questões ligadas ao cotidiano dos moradores de rua, abordam assuntos relacionados a arte, entretenimento, projetos sociais e comportamento. A rede começou a ser tecida em 1991, com a revista inglesa The Big Issue, inspirada na iniciativa do Street Journal vendido pelos chamados homeless (sem-teto) de Nova York.

         A matéria dá conta também de experiências no Brasil. Duas publicações brasileiras integram a INSP: a revista Ocas da Organização Civil de Ação Social, entidade criada em 2002 em São Paulo e no Rio de Janeiro, e o jornal Boca de Rua, de Porto Alegre, que já participou de duas conferências da INSP:

         Embora faça parte da rede, cada jornal ou revista executa seu projeto de forma autônoma e coerente com a realidade da qual faz parte. O jornal Boca de Rua, por exemplo, atua de modo diferente da grande maioria das publicações que integram a INSP. Na medida em que são apenas vendidas por moradores de rua, poucas delas têm o seu conteúdo integralmente feito por eles, já que o objetivo principal desses jornais e revistas é a geração de renda. ‘A proposta do Boca de Rua é diferente: é dar voz a quem não tem. Nossa meta é conferir cidadania aos moradores de rua, por meio de um projeto de comunicação’, afirma Rosina Duarte que, juntamente com Clarinha Glock e Eliane Brum, criaram o Boca de Rua no ano de 2000. As jornalistas são responsáveis pela reuniões semanais de pauta e pela edição final do jornal. Boa parte da finalização consiste na transposição da linguagem oral para a escrita, já que a maioria dos 35 moradores de rua que produzem o conteúdo do jornal, é analfabeta. O tema de cada edição, as reportagens, fotografias e ilustrações são discutidos e produzidos pelos moradores de rua, que também escolheram o nome e o logotipo do jornal.

         A experiência do Boca de Rua permite, assim, lembrar uma faceta pouco discutida a respeito dos moradores de rua: a sua exclusão cultural. ‘A exclusão cultural e a material não devem ser concebidas de modo isolado, pois são simultâneas. Buscar a integração social dos moradores de rua fornecendo-lhes apenas a alternativa para a sobrevivência econômica ou comida e abrigo é importante, porém insuficiente. Essas pessoas procuram, como quaisquer outras, um sentido para a sua existência e só pomeio da cultura é que essa busca se faz possível’, afirma a antropóloga Cláudia Magni, da Universidade de Santa Cruz do Sul (RS)”.

         É sobre essa experiência que o filme “De Olhos Abertos”, da diretora e roteirista Charlotte Dafol, trata em seus 112 minutos. Lançado pela Agência Livre para Informação Cidadania e Educação (ALICE), o filme conta a história dos quase 20 anos do jornal Boca de Rua. O filme já foi indicado em diversos festivais pelo mundo, e, recentemente, o documentário foi selecionado para o Hollywood Independent Filmmaker Awards, um festival de produtores independentes realizado em Hollywood, nos Estados Unidos (https://www.brasildefators.com.br/2021/01/11/documentario-sobre-jornal-boca-de-rua-e-selecionado-em-festival-de-hollywood?fbclid=IwAR2ZjLiFbfzRguZpzUbdA69VBSdk92dswlBcOeaRhUYbwJytX-OfuaJQGZQ).

         Eis aí o horizonte de verdadeira inclusão e de protagonismo como condição para engajar, para além do empreendimento, a verdadeira emancipação desses sujeitos como titulares de sua própria interpretação da vida e da realidade. Sempre me impressionou e me mobilizou nesse sentido, a disponibilidade de minha colega de UnB a professora, hoje aposentada e notável escritora (por todos menciono seus livros Perdão África Perdão: Jornalismo Peregrina Entre os Cinco Continente; Crônica do Salário Mínimo; Além do Silêncio: Peregrinação Ecumênica por Mosteiros da Europa;  Memória e Libertação), Arcelina Helena Públio Dias, atualmente entre seus retiros espirituais em mosteiros do mundo ou em Vila Boa de Goyaz, ou Goiás Velho, mas que na universidade e nos movimentos populares, desenvolveu projetos de formação em jornalismo comunitário.

         Leia-se, a respeito o seu paradigmático texto O jornalismo comunitário como instrumento de mobilização social e gerador de renda para desempregados Uma experiência na formação de jornalistas populares (https://web.archive.org/web/20060502102245/http://www.eca.usp.br/nucleos/nce/pdf/019.pdf).

         Para Arcelina, Revistas de rua no mundo lutam contra a exclusão. Revistas e jornais voltados para os problemas dos excluídos podem ser encontrados em quase todas as metrópoles do primeiro mundo. Semanais ou mensais, esses periódicos são vendidos pelas ruas, bares e metrôs, por desempregados, organizados em associações, o que lhes garantem, como renda, no mínimo, metade do valor de cada exemplar. A tiragem ultrapassa, na maioria das vezes, cem mil exemplares. O Street News, de Nova Iorque, e o Big Issue, de Londres, chegam a tirar meio milhão”. Ela participou ativamente, em Brasília, do surgimento, em final de 1997, da primeira revista pela inclusão social, vendida na rua por desempregados: NÓS – resultado de um curso de formação de jornalistas comunitários.

         Penso que esse será um caminho indeclinável para Traços. Realizar rotineiramente o que há pouco celebrou como se fora um tesouro na ponta do arco-íris: “Traços tem primeira Porta-Voz da Cultura a iniciar uma graduação”, trazendo a história de Priscila do Carmo, que sonha em ser juíza de Família”:

         “A Revista Traços começou o ano com uma grande notícia para o time de Social da publicação, que há três anos mantém de pé o projeto de inclusão social de pessoas em situação de rua ou extrema vulnerabilidade. Com base na geração de renda e autonomia, a iniciativa oferece aos Porta-Vozes da Cultura, os vendedores da Traços, setenta por cento do valor de capa de cada exemplar. E foi assim que a Porta-Voz Priscila do Carmo Limoeiro, 29 anos, conseguiu se planejar para estudar, fazer a prova do ENEM e garantir, este ano, o ingresso na graduação em Direito do Centro Universitário de Brasília (UniCEUB). As aulas começaram no dia 12 de fevereiro, mas Priscila já tem planos e sonhos a longo prazo: quer ser juíza de Vara de Família”.

         Priscila costuma circular em meu território da Asa Norte e da UnB e é dela, prioritariamente, que recebo edições atualizadas de minha coleção de Traços. E mais de uma vez precisei mediar com gerentes e proprietários o seu direito e a importância de circular entre as mesas de seus estabelecimentos para exercitar o seu papel de porta-voz de um projeto cultural que impulsiona objetivos de inclusão e de circulação cultural para fazer pulsar a cidade. Fazer valer a sua engajada proposta editorial: “A proposta de Traços rompe com o traçado racionalista de Brasília, desafia a burocracia, o oficial. Escancara com a tensão entre o Plano Piloto (centro histórico) e as quebradas. E dessa tensão, desse conflito, nasce a arte, brota a criatividade, germina a lucidez de tantos artistas, consagrados e iniciantes. Todos têm vez e voz em Traços”.

         A foto de Priscila, está estampada nesse número especial de Traços, posto que ela não seja a sua homônima das catacumbas em que se escondessem os primeiros cristãos na ainda clandestinidade romana. Com a sua 27 outras estampas aparecem na edição, num painel de “alguns dos porta-vozes da revista Traços”, entre as 300 pessoas que “ao longo dos primeiros cinco anos da publicação” foram recebidas no projeto. Todos eles, e todos os que foram atendidos no projeto, têm seus nomes impressos na edição comemorativa, na consideração dos editores que esperam “que gostem do passeio por essa história que, agora, já não é mais ó nossa”, porque, eles afirmam, “a Traços é da gente!”. Do mesmo modo, há registro remissivo dos “artistas, espaços e iniciativas culturais que passaram por nossas páginas nos últimos cinco anos”.

         Vislumbro nesse projeto aquela dimensão discursiva que inseri como argumento ao participar do projeto Feirinha do Quadrado (https://www.feirinhadoquadrado.com.br/) quando convidado por sua coordenadora Carolina Nogueira para participar de uma live abrindo a sessão de debates do projeto, para discutir o tema Quem tem direito a Brasília? Tal como se pode ver na página, a descrição da proposta estava assim orientada: “No primeiro debate, a Feirinha do Quadrado 2020 tem a alegria de receber o ex-reitor da UnB José Geraldo de Sousa Júnior, ideólogo do Direito Achado na Rua. Ele discute conosco e com Luísa Porfírio e Guilherme Black, da ONG No Setor, como o direito à moradia, à livre circulação e ao lazer é distribuído na cidade de Brasília. Pessoas que moram na rua, vendedores ambulantes, pessoas que não moram no Plano Piloto: quem tem direito a Brasília? Em que contextos os espaços urbanos são apropriados de maneira real, para além de eventos temporários?” (https://quadradobrasilia.com.br/feiras/os-debates-da-nossa-vida-parte-1/?fbclid=IwAR2AqzFPfz-4W2QXTrUlkblkqDbbCFWhk_WaLcfnlZJQJFkwaA9pWlTpclE).

         Ao fim e ao cabo, procurei, como se pode ver em minas locuções na live,  recuperar o sentido de polis que o social reivindica para o projeto de Brasília, e que orienta a ação e o discurso sobre a cidade, na disputa entre consumo e cidadania, e que precisa ir além da civitas e da urbs, a cidade bela e funcional, pensada no projeto e usufruída por sua elite descendente dos pioneiros e com sensível tensão com os descendentes dos candangos, e inserir na interpretação da cidade o lugar que só a história de protagonismos pode inscrever, para a instaurar como polis (ver, em adição, minha coluna Lido para Você, publicada no Jornal Estado de Direito (https://estadodedireito.com.br/a-rua-de-todo-mundo/).

         Número especial, o Sumário da edição é, necessariamente, um revival (está dicionarizado, pelo menos no Houaiss). Renascimento e ressurreição. Traz uma matéria de cada ano e, naturalmente, do ano 5, tudo embalado com muita arte, arrojo gráfico e ensaios, prosa, verso, fotografia. Entre elas de Luis Humberto. Desse mestre da fotografia, eu já disse, também em minha Coluna Lido para Você: “retenho a lição do duplo olhar intimista, para o dentro e para o fora (HUMBERO, Luis. Do Lado de Fora da Minha Janela. Do Lado de Dentro da Minha Porta. Brasília: tempo d’imagem, 2010)” (https://estadodedireito.com.br/retratofalado/).

         Assim esse número especial de Traços de tantas linhas que se desenrolam para tantos enredamentos e que fecha a edição como uma espécie de profecia tão bem exibida pela querida Maria Maia: “vivemos face a face sem disfarce”.

 

José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil,  Professor Titular, da Universidade de Brasília,  Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua

quinta-feira, 14 de janeiro de 2021

 

Os debates da nossa vida – Parte 1

(https://quadradobrasilia.com.br/feiras/os-debates-da-nossa-vida-parte-1/?fbclid=IwAR3IWCvbsUvTsQzdX2EnVnz-oIRvP9t08VhQHI-2rViwA8WCqk1TukmAVFc)

Em 13 de janeiro de 2021 por  Carolina Nogueira

 

 O que é essa fronteira invisível que tornam tão separadas as realidades de quem vive no Plano Piloto e nas outras cidades? A gente é uma cidade higienizada? E se é, por que? Como se muda isso?

Há anos essas perguntas nos perseguem. Na verdade, há anos a gente tentava formular elas precisamente, sem medo, colocando todas essas letras nas frases, se olhando no espelho, na busca de encontrar quem pudesse nos ajudar a respondê-las.

Aconteceu. Na Feirinha do Quadrado a gente realizou dois debates importantes, justos, no tamanho certo das nossas inquietudes. Dá pra assistir no nosso YouTube mas a gente aqui quer relembrar as questões levantadas ali, nos dois dias de discussão. É um jeito de deixar anotada, registrada, a força do que aconteceu naqueles dois dias.

Hoje revi o primeiro debate, “Quem tem direito a Brasília?”, quando o professor José Geraldo de Sousa Junior, ex-reitor da UnB e ideólogo do Direito Achado na Rua, conversou com o pessoal do No Setor: a Luísa Porfírio e o Guilherme Black. O debate foi marcado por problemas de conexão do Black – que estava nesse território aberto e imprevisível que ele hoje habita, que é a rua. Cada vez que ele caía e voltava, que ele era interrompido pela vida real, isso reverberava na gente, no debate – era como se as questões que a gente estava ali discutindo estivessem o tempo todo atravessando, interferindo na experiência de estar ali, naquele debate virtual.

A gente já começou colocando em pauta as tensões que aconteceram no ano passado quando o GDF resolveu, a pretexto de “revitalizar” a região central de Brasília, forçar a retirada das pessoas que moram na rua, com o claro objetivo de valorização imobiliária.

Atualmente morando na rua, o Guilherme Black mandou a real logo no começo da sua fala: “O governo está cagando pra gente. Eles querem resolver o problema como se fossemos um rebanho, quando na verdade cada um tem sua particularidade. Cada pessoa precisa de uma atenção diferente.

Dizem que você é um marginal porque você não paga seus impostos. Como eu posso pagar meus impostos se a sociedade vira as costas pra mim? O governo não dá ferramentas pro povo ser feliz. Eu não vivo, eu sobrevivo.

Sem teto não tem como arrumar emprego. Quem é que vai dar emprego pra um morador de rua, que nem eu? O cara mora na rua ele não dorme bem, porque sempre tem barulho. Ele não se alimenta bem, tem a saúde debilitada. Como que faz a higiene pessoal? Imagina se você tem um restaurante e eu chego pra trabalhar com minhas unhas pretas?, você ia me dar emprego?

A verdade é que a sociedade fecha os olhos pra gente e toda vez que eu ouço alguém falar em fazer algo é em reintegrar a gente. Reintegrar onde, gente?, eu não sou alienígena, não”.

A Luísa Porfírio, do NoSetor, comentou a miopia da iniciativa do governo:

“O governo parte do princípio de que aquele lugar é um problema, quando na verdade aquele lugar é uma potência. É dos poucos, senão o único lugar em Brasília, onde você tem um grande tráfego de pessoas a pé, caminhando, e muito espaço livre, pra fazer muitas coisas por lá.

Daí a gente tem situações em que o governo vai lá, retira tudo das pessoas que moram lá: roupas, comidas, pertences, documentos. Retiraram a cidadania daquelas pessoas. O que a gente precisa ali é de uma revolução afetiva, de dentro pra fora.

Eles querem ver o SCS como um quintal de luxo e não uma cidade de fato. Lá tem o que todo centro de cidade tem: tem gente, e gente morando na rua. Acho que as pessoas têm dificuldade de lidar com a realidade. Mas a realidade que não se pode negar é que a rua não tem dono – a rua, o espaço público, é de todo mundo mesmo”.

A retirada de moradores do SCS – e dos ambulantes da rodoviária, também no ano passado – vai muito, muito além de uma iniciativa isolada. Ela é tão comum em Brasília que é quase um método, um procedimento. É higienizada e higienizante a relação que o poder público quer estabelecer com os espaços públicos da cidade, especialmente do Plano Piloto.

Por isso foi muito importante ouvir o ex-reitor da UnB, professor José Geraldo de Sousa Júnior. Ele leu no debate um texto do começo do século passado, escrito por Washington Luís, então governador de São Paulo, em que ele defendia a “revitalização” de uma região do centro da cidade pra construção de um parque. A partir do texto arcaico, quase centenário, que chamava as pessoas que moravam na rua de “a vasa da cidade, uma promiscuidade nojosa”, o professor anotou o que vemos repetidamente em Brasília:

“Olha aí a higienização, a segregação, o outro como não-sujeito, não-homem, não-pessoa. ‘Essa vasa imunda’ – é bem como Brasília coloca tudo o que não está dentro do discurso célebre de como a cidade nasce, entre a civitas e a urbe do Plano Diretor. Que, na linguagem dos executores da cidade, deveria representar a eficiência, a beleza, a monumentalidade, o bucólico – enquanto que o “resto” seria retirado desse lugar porque enfeia, porque empobrece, porque desmoraliza, porque desvaloriza. Assim se empurra para as periferias ou até os devolve pros seus estados de origem.

Na Vila Telebrasília, o pessoal resistiu. Eles resistiram com um discurso: sim, tem a civitas e a urbe do Projeto Piloto, mas Brasília também tem uma pólis. Eles lutaram contra a política de desocupação e criaram a cidade da Telebrasília, e colocaram uma placa: “aqui tem História”. Eles inscreveram na cidade não apenas a escala monumental, a escala bucólica, não apenas a cidade arquitetônica, mas a escala social.

Quero chamar a atenção para algumas distinções que estão na nossa língua: invasores, ocupantes. Os discursos não são ingênuos. Roland Barthes dizia que a língua é fascista e ela é, não por nos impor a censura, mas porque nos obriga a dizer as coisas de um determinado modo”.

Ele evocou claramente essas “fronteiras invisíveis” que sempre nos incomodaram na ocupação territorial da cidade:

“Todos são livres pra ir e vir mas há uma barreira invisível – que para nós parece uma fronteira abstrata como uma linha de Tordesilhas, mas que, para cada um desses cidadãos que não têm quem os represente, ela não é invisível, não. Ela tem punhos de lutador para quebrar as cabeças deles, para sufocar sua respiração”.

O professor evocou Brasília a uma missão de cidade-educadora:

“A cidade só será educadora quando reconhecer, desenvolver, exercitar, além de suas funções tradicionais – econômica, social, de prestação de serviço – também uma função educadora, cujo objetivo é a formação e desenvolvimento de todos os seus habitantes. Trazer isso pra uma lógica de inclusão e de solidariedade, e não uma lógica de consumo, de apropriação e de uso dessa cidade. Exercício político na cidade, transformando a cidade também numa pólis”.

É essa a Brasília em que a gente, do Quadrado e da Feirinha do Quadrado, acredita.

Fica por perto que logo logo a gente faz um apanhado do segundo debate: “Do século 20 ao século 21: como atualizar Brasília?”.

 

quarta-feira, 13 de janeiro de 2021

 

Para uma revolução democrática da Justiça

Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.

 

Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito

SANTOS, Boaventura de Sousa. Para uma Revolução Democrática da Justiça. São Paulo: Cortez Editora, 3ª edição, 2011, 135 p.

         Motivado por esse livro de Boaventura de Sousa Santos, publiquei em minha coluna na antiga Revista do SindjusDF – Sindicato dos Trabalhadores do Poder Judiciário e do Ministério Público da União no DF (Revista do Sindjus-DF, Dezembro de 2007 • nº 45), o texto Uma Concepção Alargada de Acesso à Justiça (p. 4).

         No meu texto de 2007, recupero o tema do acesso à justiça como um fenômeno muito mais complexo do que à primeira vista pode parecer, já antecipando ali essa necessidade de alargamento que depois eu procuraria trabalhar em outras situações. Se, ao limite, pudermos alargar esse conceito, o plano mais amplo que poderíamos lograr concebê-lo, seria, talvez, pensá-lo, seguindo Boaventura de Sousa Santos, como um procedimento de tradução, ou seja, como uma estratégia de mediação capaz de criar uma inteligibilidade mútua entre experiências possíveis e disponíveis para o reconhecimento de saberes, de culturas e de práticas sociais que formam as identidades dos sujeitos que buscam superar os seus conflitos, o que faz do acesso à justiça algo mais abrangente que acesso ao judiciário.

Foto: Reprodução/Commons

         Esta mediação leva, conforme sugere Boaventura de Sousa Santos, a criar condições para emancipações sociais concretas de grupos sociais concretos num presente cuja injustiça é legitimada com base num maciço desperdício de experiência, mas que buscam criar sentidos e direções para práticas de transformação social e de realização de justiça, mediadas por um direito que se pode dizer achado na rua.

         Fora desse contexto emancipatório o que resta é a configuração do acesso à justiça como objeto delimitado, mesmo considerados os dois níveis de acesso: igualdade constitucional de acesso representado ao sistema judicial para resolver conflitos e garantia e efetividade dos direitos no plano amplo de todo o sistema jurídico. Não por outra razão, Boaventura de Sousa Santos sugere que a estratégia mais promissora de reforma da justiça está na procura dos cidadãos que têm consciência de seus direitos, mas que se sentem impotentes para os reivindicar quando violados.

         Intimidam-se ante as autoridades judiciais que os esmagam com a linguagem esotérica, o racismo e o sexismo mais ou menos explícitos, a presença arrogante, os edifícios esmagadores, as labirínticas secretarias.

         Considerado o nível mais restrito, o sistema judicial se consolida justamente em seu fechamento democrático, na medida em que o seu conceito de acesso mina possibilidades de participação popular na interpretação de direitos; esgota a porosidade entre ordenamentos jurídicos hegemônicos e contra-hegemônicos; constituídos e instituídos pela prática dos movimentos sociais. Exemplo disso têm sido os obstáculos procedimentais que o litígio decorrente das demandas de reparação após os danos causados pela Empresa Vale em Brumadinho (rio Paraopeba) revelando a exclusão dos atingidos em seu protagonismo enquanto o Judiciário permanece acessível aos interesses empresariais e governamentais. Por isso o engajamento irredutível da assessoria técnica dos movimentos dos atingidos para fazer valer o princípio de que não há justiça sem participação social, conforme bem demonstra a elaboração da Matriz de Medidas Reparatórias Emergenciais elaborada pela Aedas (Associação Estadual de Defesa Ambiental e Social) com os movimentos e coletivos dos atingidos pelo desastre de Brumadinho (https://youtu.be/Az83whQyKVs) .

         O nível restrito do acesso à justiça, portanto, se reafirma no sistema judicial. O nível mais amplo do mesmo conceito se fortalece em espaços de sociabilidade que se localizam fora ou na fronteira do sistema de justiça. Contudo, ambos os níveis se referem a uma mesma sociedade, na qual se pretende o exercício constante da democracia.

         Claro que, numa perspectiva de alargamento do acesso democrático à justiça, não basta institucionalizar os instrumentos decorrentes desse princípio, é preciso também reorientá-los para estratégias de superação desses mesmos pressupostos. Principalmente pelo Poder Judiciário que se tem mostrado extremamente recalcitrante à abertura de espaços para a ampliação das condições democráticas de realização da justiça.

         Nesse sentido, algumas contradições precisam ser resolvidas, conforme sugere Boaventura de Sousa Santos. Primeiro, criar condições para inserir no modelo existente de administração da justiça, a ideia de participação popular que não está inscrita em sua estrutura; segundo, superar o obstáculo de uma demanda de participação popular não estatizada e policêntrica, num sistema de justiça que pressupõe uma administração unificada e centralizada; terceiro, fazer operar um protagonismo não subordinado institucional e profissionalmente, num sistema de justiça que atua com a predominância de escalões hierárquicos profissionais; quarto, aproximar a participação popular do cerne mesmo da salvaguarda institucional e profissional do sistema que é a determinação da pena e o exercício da coerção; quinto, considerar a participação popular como um exercício de cidadania, para além do âmbito liberal individualizado, para alcançar formas de participação coletiva assentes na comunidade real de interesses determinados segundo critérios intra e trans-subjetivos.

         Pode residir aí a situação percebida pela juíza Gláucia Falsarelli Foley, responsável em Brasília, pelo programa de justiça comunitária, quando se refere ao conjunto de movimentos necessários para impulsionar a universalização do acesso à Justiça, pleiteando, assim, por uma Justiça sem jurisdição porque efetivamente operada na comunidade, para a comunidade e, sobretudo, pela comunidade, conforme nesse Lido para Você, o meu https://estadodedireito.com.br/28455-2/, precisamente sobre o trabalho teórico-empírico de Gláucia.

         Vem daí o impulso para pensar em sentido alargado o acesso à justiça e mais ainda a própria justiça a que se quer acesso, numa mobilização que pôde ser conduzida em resposta a demandas de formulação de política públicas, a partir de convocações do poder público ao pautar esse tema.

         Assim é que, respondendo a edital do Ministério da Justiça, sobre elaborar uma concepção de observação do sistema de justiça e judiciário, que chegamos a uma formulação que levasse em conta essa concepção alargada. A propósito, in https://revistajuridica.presidencia.gov.br/index.php/saj/article/view/223, vol 10, n. 90, 2008, o meu texto Por uma concepção alargada de Acesso à Justiça, representando todo o Coletivo que elaborou a proposta, cujo resumo pode ser assim lido: “Este trabalho tem o intuito de mapear a atual situação dos meios de acesso à justiça no Brasil, abordando o modo como as relações Estado-sociedade se fazem presente nas esferas públicas de construção do direito e até que ponto os movimentos sociais são reconhecidos como fonte criadora de direitos. Para tanto, propõe-se uma discussão acerca de temas levantados pela sociologia da pós-modernidade, discussão esta decorrente da ação dos movimentos sociais na dinâmica própria do direito plural por eles fundado. Ao fim, propõem-se mudanças na postura das estruturas jurídicas de ensino, pesquisa e aplicação para que haja um reconhecimento da construção social do direito”.

         Em seguida, também no espaço desse Lido para Você, a leitura sobre os resultados alcançados com a pesquisa – https://estadodedireito.com.br/observatorio-do-judiciario/  – mostrando o quanto foi possível estabelecer diálogo com assessorias jurídicas de movimentos sociais e extrair de suas observações, a visão negativa dos modelos adjudicatórios do sistema legal e judiciário, presos às normas constituídas como unidade de análise das relações de conflito e incapazes de realizar até mesmo as promessas constitucionais de realização da Justiça, entre outros fatores, pela “resistência a trabalhar com o direito da rua”, pela “baixa sensibilidade para as demandas da comunidade”, pelos “limites culturais para a percepção de sujeitos e demandas inscritas nos conflitos sociais”, pela manutenção de “corpo com formação técnica desvinculada das experiências do mundo da vida”, pela “postura institucional burocrática” e pela “pouca permeabilidade ao controle social”.

         Mostrando também, o quanto em contrapartida, pediam esses prestamistas de uma Justiça atualizada e modernizada para além do simplesmente funcional-burocrático-legal: “respeito às temporalidades democráticas”, “fortalecimento comunitário”, “educação em Direitos Humanos”, “uso dos meios de comunicação”, “conscientização e sensibilização” e, em síntese, “reconhecimento e acreditamento do protagonismo das experiências de mediação social realizadas fora das instâncias estatais”.

         Voltei a empregar essa expressão ao produzir o prefácio “Uma concepção alargada de acesso e democratização da justiça”, para o livro editado pela Terra de Direitos e pela Articulação Justiça e Direitos Humanos, com a organização de Antonio Escrivão Filho, Darci Frigo. Érica de Lula Medeiros, Fernando Gallardo Vieira Prioste, Luciana Furquim Pivato, “Justiça e Direitos Humanos: Perspectivas para a Democratização da Justiça, vol. 2, Curitiba: Terra de Direitos, 2015, procurando corresponder às expectativas postas na publicação sobre “o aumento do interesse das organizações do campo popular pelo papel social do Poder Judiciário (que) aponta para necessidade  de construir ações coletivas e estruturantes, que estejam além da litigância reativa e incidam sobre a agenda política de justiça, com uma perspectiva estratégica que vá muito além da busca de soluções para situações concretas e pontuais”.

         A nota de identidade que se estabelece para aferir a coerência e o potencial utópico desse material, está na sua virtualidade, inclusive semântica (CORREIA, Ludmila Cerqueira, ESCRIVÃO FILHO, Antonio; SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. Exigências Críticas para a Assessoria Jurídica Popular: Contribuições de O Direito Achado na Rua. Coimbra: CesContexto, Debates  n. 19, outubro de 2017), de se instalar como plataforma para um direito emancipatório (SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. Concepção e Prática do O Direito Achado na Rua: Plataforma para um Direito Emancipatório. Brasília: Cadernos Ibero-Americanos de Direito Sanitário, 6(1), abril/junho, 2017), para o exercício protagonista, crítico e criativo, operando novos e combinados mecanismos políticos e técnicas jurídicas, para o alargamento democrático do sistema de justiça.

         Por isso que sempre estou retornando a esse tema  e muito frequentemente nesse espaço Lido para Você, no qual – https://estadodedireito.com.br/experiencias-compartilhadas-de-acesso-a-justica-reflexoes-teoricas-e-praticas/, sempre que posso volto a ele, conforme minha leitura de REBOUÇAS, Gabriela Maia; SOUSA JUNIOR, José Geraldo de; CARVALHO NETO, Ernani Rodrigues de (Organizadores). Experiências Compartilhadas de Acesso à Justiça: Reflexões teóricas e práticas. Santa Cruz do Sul: Essere nel Mondo, 2016, 281 p. Texto Eletrônico. Modelo de Acesso World Wide Web (gratuito). www.esserenelmondo.com.br, no qual, na dupla perspectiva proposta no conjunto da obra ressalto o que em meu texto no segundo trabalho destacado denominei Por uma Concepção Alargada de Acesso à Justiça. Que Judiciário na Democracia?

         Sustentei que realizar a promessa democrática da Constituição era e é ainda o desafio que se põe para o Judiciário e para responder a esse desafio precisa ele mesmo recriar-se na forma e no agir democrático. Mas o desafio maior que se põe para concretizar a promessa do acesso democrático à justiça e da efetivação de direitos é pensar as estratégias de alargamento das vias para esse acesso e isso implica encontrar no direito a mediação realizadora das experiências de ampliação da juridicidade. Com Boaventura de Sousa Santos podemos dizer que isso implica dispor de instrumentos de interpretação dos modos expansivos de iniciativas, de movimentos, de organizações que, resistentes aos processos de exclusão social, lhes contrapõem alternativas emancipatórias.

         Por isso que, um procedimento de pesquisa que intente operar a partir dessa visão de alargamento, pensando o tema do acesso democrático à justiça, não pode descuidar-se da designação cartográfica das experiências que se fazem emergentes. Sob tal perspectiva, diz Boaventura de Sousa Santos, as características das lutas são ampliadas e desenvolvidas de maneira a tornar visível e credível o potencial implícito ou escondido por detrás das acções contra-hegemônicas concretas. Isso corresponde, completa Sousa Santos, a atuar “ao mesmo tempo sobre as possibilidades e sobre as capacidades; a identificar sinais, pistas, ou rastos de possibilidades futuras naquilo que existe” (SANTOS, Boaventura de Sousa, Poderá o direito ser emancipatório?, Revista Crítica de Ciências Sociais, nº 65, CES, Coimbra, maio de 2003. p. 35).

         Folgo ter seguido com muita aderência aos enunciados propostos por Boaventura de Sousa Santos, em “Para uma Revolução Democrática da Justiça”. Aliás, esses enunciados, aplicados àquela pesquisa no interesse do  Ministério da Justiça, mereceram da equipe do notável professor uma aquiescência, em termos, expressa no parecer pedido pelo MJ para avaliar o trabalho feito, valendo destacar do parecer – http://pensando.mj.gov.br/wp-content/uploads/2015/07/15Pensando_Direito3.pdf – a consideração em todo caso, embora abonadora mas que aponta para questões que se armam problematicamente para o futuro que se seguiu àquela conjuntura, sob muitos aspectos, desastrosa para o País e não só para o Sistema de Justiça: “A justiça brasileira está neste momento colocada perante o desafio da sua democratização. Trata-se de um desafio exigente sobretudo quando se têm em conta que o sistema judicial é um campo de conflito em que interesses económicos e corporativos têm forte incidência e tendem a prevalecer. A proposta analisada está consciente do grau de exigência desse desafio e procura enfrentá-lo com êxito ao tentar incorporar em um único modelo de agenda política: reflexão académica, pesquisa empírica, participação social e concertação política. Nesse sentido, deve ser saudada. Enquanto modelo de agenda política destinado a uma Secretaria de Estado, a proposta deve ser ressaltada pelo seu carácter inovador na medida em que busca aproximar poder político e justiça tendo em vista a transformação democrática de um e de outra”.

         Por tanto, são muito bem-vindas as mobilizações que hoje colocam a justiça brasileira em xeque e entre essas mobilizações, vejo e participo com empenho da convocação que está sendo feita nesse momento para instalar, no Brasil, entre 21 e 26 de setembro de 2021, de um Fórum Social Mundial Temático Justiça e Democracia que conta com a inciativa e a participação do próprio Boaventura de Sousa Santos.

         A partir de uma convocação de entidades, organizações e movimentos que convidam, apoiam e se coordenam para o realizar, entre elas o Grupo de Pesquisa O Direito Achado na Rua,  os termos dessa convocação, numa apresentação ampla no dia 22/11, por meio do Programa de Gustavo Conde –https://www.youtube.com/watch?v=8lDcpkwl-v8 –  e de todas as organizações que se associam nessa rede de comunicação e que se designam a partir do seguinte ponto de partida: JUSTIÇA E DEMOCRACIA, 21 a 26 de setembro de 2021 – Brasil. CARTA CONVITE

         As organizações e movimentos sociais abaixo-assinados vêm por meio desta CARTA convidar a sociedade civil brasileira, latino-americana e mundial para que se engajem no processo de preparação e realização do Fórum Social Mundial Justiça e Democracia a realizar-se no Brasil, de 21 a 26 de setembro de 2021. Este processo resulta da união de várias entidades progressistas formadas por integrantes do Sistema de Justiça, a saber, os coletivos Transforma MP, Associação Brasileira dos Juristas pela Democracia, Associação Juízes para a Democracia, Associação Advogadas e Advogados Públicos para a Democracia, Coletivo Defensoras e Defensores Públicos pela Democracia e Movimento Policiais Antifascismo que, frente aos ataques ao estado democrático de direito no Brasil, na América Latina, e em outras partes do mundo, sentiram a necessidade de somar esforços para criarem iniciativas conjuntas de resistência.

         Motivados pelos processos dos fóruns sociais, estas organizações buscaram ampliar contatos e agregar novos movimentos e organizações para, num primeiro momento, promover um espaço de encontros e de compartilhamentos de percepções e informações e, num segundo momento, buscar construir condições para ações concretas e coletivas frente a desafiadora conjuntura atual.

         Os motivos e a urgência são conhecidos. A chamada sociedade moderna se acomodou ante as milhares de situações de violações de direitos humanos, com destaque especial ao escancarado racismo estrutural que nos assola e à manipulação da democracia através de técnicas cada vez mais sofisticadas de disseminação de notícias falsas.

         Toda a estrutura econômica e social se alimenta e está alicerçada nas desigualdades inerentes ao sistema capitalista, que leva ao extremo a exploração do trabalho humano, e mantém-se centrada não só no racismo, como na violência contra as mulheres e a comunidade LGBTQI+, na segregação dos desiguais, na violação dos direitos dos povos indígenas, quilombolas e ribeirinhos, entre outras. Não é por outro motivo que, em seis meses de pandemia, quando a esmagadora maioria das brasileiras e brasileiros reduziram sua renda, ficaram desempregados e mais de 160 mil perderam a própria vida, as estatísticas indicam que as elites lucraram mais de 30 bilhões de reais.

         Da mesma forma, o atual sistema se sustenta através de violações contra o meio ambiente e seus guardiões, isto é, contra as populações indígenas e ribeirinhas, contra as comunidades quilombolas, contra as famílias que vivem da agricultura e todos os modos de vida sustentáveis. Não há como não citar as queimadas que este ano assolaram o ecossistema brasileiro, com danos irreparáveis à fauna e à flora dos biomas da Amazônia, do Pantanal e do Cerrado. A biodiversidade, principal riqueza natural brasileira, está sendo literalmente queimada para plantação de soja, criação de gado e exploração do garimpo, sob o pretexto de que tais atividades sustentam o país, quando se sabe que a fortuna que produzem vai quase toda parar nas mãos de um número cada vez menor de pessoas. São violações desumanas e irreversíveis que custarão milhares de vidas das gerações atuais e das futuras.

         Não bastassem as permanentes violações contra as pessoas e o meio ambiente, o atual sistema vem se aprimorando em subverter a democracia no mundo, sendo possível identificar uma nova dinâmica de rupturas antidemocráticas através da captura dos aparelhos e instituições de estado para os interesses do grande capital internacional. Podemos citar, como destaques, as situações ocorridas em Honduras, em 2009; no Equador, em 2010; no Paraguai, em 2012; no Brasil, em 2016; na Bolívia, em 2019, sem esquecer da frágil situação em que se encontra a Venezuela desde 2002. Em comum, estas rupturas do estado democrático de direito em vários países são concretizadas pela captura das instituições democráticas por interesses internacionais que visam se apropriar das riquezas naturais e do trabalho das populações.

         Dada a gravidade do momento é impossível que a cidadania ativa e organizada fique inerte, não se rebele, não reaja, não resista. É preciso desnudar quem são os autores dessas violações, com especial atenção para a responsabilidade das instituições estatais, sem perder de vista as violações perpetradas também por pessoas, grupos, organizações e setores econômicos. É preciso denunciar todas as violações, criar um potente movimento de solidariedade nacional e internacional, somar esforços e buscar construir saídas. É preciso pensar alternativas, caminhos. E todos eles passam pela defesa intransigente da democracia e da justiça.

         Os movimentos e organizações engajados neste processo acreditam que é possível, com uma cidadania ativa, organizada e mobilizada, estancar as violações de direitos e construir uma nova sociedade, socialmente justa e ambientalmente sustentável. Por isso, o Fórum Social Mundial Justiça e Democracia tem sua relevância. Porque é preciso reunir todas as forças progressistas, democráticas, populares e humanistas para juntas, buscarmos apontar saídas. A dinâmica horizontal e radicalmente democrática dos Fóruns Sociais será uma aliada para que, respeitando as especificidades, a pluralidade e os vários interesses, seja possível buscar pontos de unidade, de convergência e de ações comuns. Somem-se a este processo. O Brasil, a América Latina e o Mundo precisam de nossa criatividade, solidariedade e compromisso.

         Convidam para o Fórum (Para novas adesões e mais informações o contato é  facilitacaofsmjd2021@gmail.com):

ABJD – Associação Brasileira dos Juristas pela Democracia

AJD – Associação Juízes para a Democracia

APD – Associação Advogadas/os Públicos para a Democracia

Coletivo por um Ministério Público Transformador – Transforma MP

Coletivo das/dos Defensoras/es Públicos pela Democracia

Movimento Policiais Antifascismo

            E apoiam, numa mobilização que se amplia diariamente:

ABET – Associação Brasileira de Estudos do Trabalho

ABEFC -Articulação Brasileira pela Economia de Francisco e Clara

ABMMD – Associação Brasileira de Médicas e Médicos pela Democracia

ABONG – Associação Brasileira de Organizações Não Governamentais

ABRA – Associação Brasileira de Reforma Agrária

ABRAJI – Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo

ABRASTT – Associação Brasileira de Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora

AJURD – Associação de Juristas pela Democracia

ALJT – Associação Latino-americana de Juízes do Trabalho

Alternatives Internacional

AMDH – Articulação para o Monitoramento dos Direitos Humanos no Brasil

AMSUR – Instituto Sul-americano para a Cooperação e a Gestão de Estratégica de Políticas Públicas

ANAJUDH – LGBTI – Associação Nacional de Juristas pelos Direitos Humanos de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais, Transgêneros e Intersexuais.

ANEPS – Articulação Nacional de Movimentos e Práticas de Educação Popular e Saúde

APD – Academia Paulista de Direito

APTA – Associação de Produtoras e Trabalhadoras da Arte e Cultura do Distrito Federal

APIB – Articulação dos Povos Indígenas Brasileiros

ASAARAUI, Associação de Solidariedade e pela Autodeterminação do Povo Saaraui

CAMP – Centro de Educação Popular

CBJP – Comissão Brasileira Justiça e Paz/CNBB

CDES Direitos Humanos – Centro de Direitos Humanos e Sociais

CDDH-PL Centro de Defesa de Direitos Humanos Pedro Lobo

CEFORC – Centro de Formação e Organização Comunitária

Centro de Estudos de Mídias Alternativas Barão de Itararé

CENCHEC- Centro Dom Helder Camara de Estudo e Ação Social

CLACSO – Conselho Latino-americano de Ciências Sociais

ColetivA Mulheres Defensoras Públicas do Brasil

Coletivo Feminista Sementes

Coletivo Maria Felipa

Coletivo Nacional de Juventude Negra – ENEGRECER

Coletivo Trabalho por Elas

Coletivo PROSPERARTE

CMB – Confederação das Mulheres do Brasil

Comitê em Defesa da Democracia e do Estado Democrático de Direitos

CONAQ – Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas

CONEN – Coletivo de Entidades Negras

CUT – Central Única dos Trabalhadores – Secretaria Nacional de Assuntos Jurídicos SNAJ/CUTBrasil

DECLATRA – Instituto de Defesa da Classe Trabalhadora

FACC – Frente de Assistência à Criança Carente

FASM – Foro del Alternativas Sur Marrocos

FENED – Federação Nacional dos Estudantes de Direito

FESPSP – Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo

Fórum DCA – Fórum Nacional da Criança e Adolescente

Fórum Justiça

Forum Justiça do rio Grande do Sul

Frente Ampla em Defesa da Saúde dos Trabalhadores

Grupo de Pesquisa O Direito Achado na Rua

Grupo PRERROGATIVAS

GPMT – Grupo de Pesquisa Metamorfoses no Mundo do Trabalho

GT Mundos do Trabalho: reformas – CESIT/Unicamp

ICS – Instituto Cidades Sustentáveis

IDDF -Instituto Democracia e Direitos Fundamentais

IDhES – Instituto de Estudos Jurídicos de Direitos Humanos, Econômicos, Sociais, Culturais e Ambientais

IAMG – Instituto de Advogados de Minas Gerais

IANB – Instituto da Advocacia Negra Brasileira

INEC – Instituto Educação, Cultura e Gestão

INP – Instituto Novos Paradigmas

IPDMS – Instituto de Pesquisa Direitos e Movimentos Sociais

Instituto Cultiva

Instituto Ecovida

Instituto de Estudos MP – Instituto Brasileiro de Pesquisas e Estudos em Ministério Público, Direito e Democracia

Instituto Lavoro

INESC – Instituto de Estudos Sócio Econõmicos

Instituto OCA – Observatório da Criança e do Adolescente

Instituto Terre des hommes Brasil

Instituto Trabalho Digno

INTERVOZES – Coletivo Brasil de Comunicação Social

Jusdh – Articulação Justiça e Direitos Humanos

Marcha da Negritude Unificada da Paraíba

MCVI – Movimento Cada Vida Importa

MORHAN – Movimento de Reintegração das Pessoas Atingidas por Hanseníase

MNDH – Movimento Nacional dos Direitos Humanos

MNPR – Movimento Nacional de População de Rua

Movimento Negro UNEAFRO Brasil

MNU– Movimento Negro Unificado

MP Mulheres – Movimento Nacional de Mulheres do Ministério Público

MST – Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra

MTST – Movimento dos Trabalhadores Sem Teto

NUCEPEC – Núcleo Cearense de Estudos e Pesquisa Sobre a Criança

Núcleo de Estudos para a Paz e os Direitos Humanos da Universidade de Brasília

NUDIJUS – Núcleo de Estudos Aplicados Direitos, Infância e Justiça – Universidade Federal do Ceará

NUPES – Núcleo de Pesquisas Sociais

OBES -Observatório Boa-Ventura de Estudos Sociais – PGCS/ UFRN

Observatório Permanente da Justiça Portuguesa do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra

ONG Vida Brasil

RedhBrasil – Rede Internacional de Intelectuais, Artistas e Movimentos Sociais em Defesa da Humanidade

Rede Feminista de Saúde- Seccional do Paraná

RENAP – Rede Nacional de Advogadas e Advogados Populares

RENAP/RS

Rede Nossas Cidades

Rede Sapatá

REMIR Trabalho – Rede de Estudos e Monitoramento Interdiciplinar da Reforma Trabalhista

RENOSP-LGBTI+ – Rede Nacional de Operadores da Segurança Pública LGBTI+

SINDJUS RS – Sindicato dos Servidores da Justiça do Estado do Rio Grande do Sul

Terra de Direitos

TV UNEB SEABRA – Boca Piu

TV Mamulengo

UBM – União Brasileira de Mulheres

UNALGBT – União Nacional LGBT

UNISOL – Central de Cooperativas UNISOL Brasila

UPMS – Universidade Popular dos Movimentos Sociais

José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil,  Professor Titular, da Universidade de Brasília,  Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.