O Direito Achado na Rua: nossa conquista é do tamanho da nossa luta

sexta-feira, 26 de junho de 2020

Direitos Humanos: do isolamento à insurgência

Nesta quinta-feira, dia 25 de junho de 2020, foi realizada a conferência de abertura do I Ciclo Internacional dos Direitos Humanos - Do Isolamento à Insurgência (clique aqui para conferir a programação e realizar inscrições).

A mesa de abertura, que levou o mesmo nome do evento, "“Direitos Humanos - do isolamento à insurgência”, foi integrada pelo professor José Geraldo de Sousa Junior e pode ser conferida, na íntegra, no canal do coletivo Magnifica Mundi e no canal de O Direito Achado na Rua.

O I Ciclo Internacional dos Direitos Humanos será desenvolvido em duas etapas, cada qual correspondendo a um dos seguintes seminários: I Seminário Reinventar Direitos Humanos em Tempos de Resistências; e o II Seminário Internacional América Latina e suas Narrativas Insurgentes.

Nesta primeira etapa, estruturada a partir do I Seminário Reinventar Direitos Humanos em Tempos de Resistências, estão previstas as seguintes atividades, que serão realizadas entre os dias 25 de junho e 30 de julho:

25/06 - Conferência de abertura - Direitos Humanos: do isolamento à insurgência - 16:30h
30/06 - Direitos Humanos na atual conjuntura - 17h
02/07 - Direito à Educação em tempo de pandemia - 17h
07/07 - Defensores de DHS - América Latina e Brasil 17h
09/07 - Necropolítica, encarceramento e pandemia 17h
14/07 - Conflitos no campo no atual contexto 17h
16/07 - Discutindo Violência de Gênero 17h
21/07 - Lei de acesso à informação - dados COVID 17h
23/07 - Ancestralidades e o Direito à longevidade 17h
28/07 - Direito ao trabalho 17h
30/07 - Educação popular e lutas emancipatórias 17h

quarta-feira, 24 de junho de 2020

Direito das Telecomunicações: estrutura institucional regulatória e infra-estrutura das telecomunicações no Brasil

Coluna Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito



       

Direito das Telecomunicações: estrutura institucional regulatória e infra-estrutura das telecomunicações no Brasil. Marcio Iorio Aranha (org). Brasília: JRF Gráfica/Faculdade de Direito (Série Grupos de Pesquisa nº 2, vol. 1), 2005, 250 p.

Créditos: PixaBay
        Um dos temas de maior relevância no debate teórico e no conhecimento do Direito é o da ressignificação do conceito de regulação jurídica. Tendo como enfoque a necessidade de ampliação desse conceito, o importante Grupo de Pesquisa do Departamento de Ciências Jurídicas, da Pontifícia Universidade católica do Rio de Janeiro, adotou, para a orientação de seus estudos, o conceito de G. Ganguilhem, para quem “a regulação traduz um implemento de ordens independentes, proporcionado por regras, mecanismos ou instituições” (Direito, Estado e Sociedade, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Departamento de Ciências Jurídicas, nº 3, agosto/dezembro, 1993).
        Coletando as várias situações objeto de pesquisa do Grupo, resumidas nos relatórios que integram o volume referido de Direito, Estado e Sociedade, várias direções de estudos e pesquisas podem ser delineadas, no âmbito sócio-jurídico: a) o Estado atua como agente regulador, conduzindo os processos de ajustamento, caracterizando situações nas quais se incluem trabalhos relativos aos Conselhos estatais, de cuja composição participam representantes da sociedade civil (órgãos de defesa do consumidor, conselhos de recursos administrativos, fiscais etc); b) a sociedade civil busca introduzir modificações no Estado (Conselhos Populares, práticas oficiosas e de agências informais de resolução de conflitos); c) o Estado não está presente; d) manifestações de pluralismo jurídico.
        Em comum, nessas direções, a busca de estabelecimento do que, em outro momento (XIII Conferência Nacional da Ordem dos Advogados do Brasil. Belo Horizonte: Anais, 1990), o constitucionalista português J. J. Gomes Canotilho, indicou como “outros modos de compreender as regras de Direito”, apelando para “novos paradigmas, novos saberes, novos direitos”.
        O eixo da análise do publicista de Coimbra é, certamente, o do Direito Constitucional e da Teoria da Constituição. Mas, a base empírica comum de sua reflexão, apropriável ao debate sobre o tema da regulação jurídica, é a constatação de fenômeno do “refluxo político e do refluxo jurídico”. “Assiste-se – diz Canotilho – ao refluxo da política formal (do Estado, dos parlamentos, dos governos, das burocracias, das informações sociais regidificadas) e ao refluxo jurídico (deslocação da produção normativa do centro para a periferia, da lei para o contrato, do Estado para a Sociedade)”.
        Em parte, é isso que se constata nos estudos atuais sobre o fenômeno da regulação, que têm mobilizado um formidável acervo de sugestões re-institucionalizadas e importantes experimentações (cf. PEREIRA, L. C. Bresser Pereira; WILHEIM, Jorge; SOLA, Lourdes, orgs., Sociedade e Estado em Transformação. São Paulo: Editora Unesp/Brasília: ENAP, 1999).
        De igual modo, este tem sido o centro do debate em torno à questão das agências reguladoras e a preocupação, ponto de partida deste livro, Lido para Você, dirigida ao “aprofundamento de seus aspectos estruturais e de seu conceito”.
        Com efeito, o livro Direito das Telecomunicações. Estutura institucional regulatória e infra-estrutura das telecomunicações no Brasil, organizado pelo professor Márcio Iorio Aranha, é resultado dessa preocupação.
        O Organizador e seus colaboradores, integram na Faculdade de Direito da Universidade de Brasília, o Grupo de Estudos de Direito das Telecomunicações que serviu para sustentar a equipe de intervenção que permitiu, no final dos anos 1990 a instalação na UnB de um consórcio interdisciplinar, integrado por professores e pesquisadores da Faculdade de Direito, da Faculdade de Comunicação, do Departamento de Economia e do Departamento de Engenharia Elétrica, para desenvolver estudos e pesquisas no âmbito da regulação em telecomunicações.
        Com o apoio da ANATEL, os primeiros esforços desse consórcio levaram a institucionalização de cursos de especialização em regulação em telecomunicações, que em sucessivas edições foi responsável pela acumulação de notável acervo de estudos e reflexões e do mais consistente banco de monografias nessa área, atualmente disponível para consultas e novos estudos.
        Esse esforço consorciado, incrementado por novas agendas de pesquisas e programas de cooperação, inclusive com forte intercâmbio internacional, criou condições para a estruturação do Grupo de Pesquisas que produziu o presente trabalho e outros que robustecem o seu catálogo de publicações, entre eles a Coleção Brasileira de Direito das Telecomunicações, com vários volumes e periódicas atualizações, do  Glossário de Direito das Telecomunicações .
        Assim como estimulou novas aproximações para os estudos regulatórios, em áreas estratégicas como o direito sanitário. Uma pesquisa ao Portal da Faculdade de Direito oferece o catálogo desses coletivos. Sobre a área de telecomunicações, no seu formato atual encontra-se ali descrito o GRUPO DE ESTUDOS EM DIREITO DAS TELECOMUNICAÇÕES DA UnBO Grupo de Estudos em Direito das Telecomunicações da Universidade de Brasília (GETEL/UnB) é um grupo de pesquisa e trabalho registrado, por intermédio do Programa de Pós-Graduação em Direito da UnB, no Diretório de Grupos de Pesquisa do CNPq e oficialmente reconhecido por Ato da Direção da Faculdade de Direito da UnB como grupo de pesquisa integrante de seu Núcleo de Direito Setorial e Regulatório. O GETEL também integra o Centro de Políticas, Direito, Economia e Tecnologias das Comunicações da UnB e está voltado à reunião de pesquisadores preocupados com questões regulatórias das (tele)comunicações no Brasil e em perspectiva comparada, cujos enfoques prioritários constam das linhas de pesquisa de Direito Comparado de Tecnologias da Informação e Comunicação, Principiologia Constitucional das Comunicações e Direito, Estado e Telecomunicações. Página do grupo no CNPq.
        O GETEL tem por política não se pronunciar, enquanto grupo institucionalizado da Universidade de Brasília, sobre processos de construção de leis, políticas públicas e regulação, buscando-se, com isso, a maior liberdade e abertura possível à participação de representantes de diversos órgãos de Estado em um ambiente acadêmico de encontro das diferenças. Todos os membros do GETEL são, entretanto, incentivados a participarem de debates, oficinas e eventos relevantes, na medida do possível, seja para contribuírem com uma visão acadêmica a debates nos quais usualmente predominam participantes dos setores envolvidos, governo e sociedade civil, seja para que as pesquisas do GETEL possam refletir preocupações concretas e atuais dos setores pesquisados.
        Da mesma maneira, forte na pós-graduação em Direito (mestrado e doutorado), a inteligência gerada no percurso e nas mobilizações desse coletivo, levou à institucionalização de linhas de pesquisa, relevo para a linha de pesquisa  Transformações na Ordem  Social e Econômica e Regulação, assim descrita:: “As transformações sociais e econômicas vivenciadas nas últimas décadas têm incrementado o papel do direito como instrumento de política econômica em meio a um fenômeno global experimentado desde a China à Europa, da América Latina à Índia, dos Estados Unidos ao continente africano. Uma visão abrangente da economia e política mundiais não se pode dar ao luxo de permanecer isolada de diversas ideias e instrumentos analíticos trazidos do pensamento e discurso jurídico”.
        Em um mundo pautado por relações e instituições econômicas que transcendem jurisdições mais convencionais dos Estados nacionais, um campo inovador de conhecimento clama por abordagens interdisciplinares com enfoque em análise jurídica da política econômica, teorias da regulação, competição, tributação e instituições de direito público e privado para conformação da reforma política. Dita abordagem é necessária não somente para compreensão das transformações contemporâneas, como também para o seu devido enquadramento segundo métodos jurídicos em sintonia fina com as questões mais relevantes dos nossos dias em uma miríade de áreas como educação, saúde, meio ambiente, transportes, (tele)comunicações, energia elétrica, propriedade, sistema financeiro e muitas outras.
        São sublinhas de pesquisa atualmente organizadas:Regulação e Transformações na Ordem Econômica; Regulação Social e Políticas Públicas de Educação, Ciência, Tecnologia e Inovação; Transformações no Direito Privado, Empresa, Mercado e Concorrência”
        TAL O ARRANQUE E TAMBÉM O ALCANCE DESSE LIVRO. ELE SE APRESENTA, COMO SALIENTA O ESTIMADO E SAUDOSO PROFESSOR CARLOS EDUARDO VIEIRA DE CARVALHO, UM BALUARTE DE POSTURA NACIONALISTA QUE JÁ FOI A PLATAFORMA ESTRATÉGICA DE ATUAÇÃO GESTORA NESSE CAMPO E QUE FOI O PIONEIRO NESSE ESFORÇO DE FORMULAÇÃO TEMÁTICA DESSA ÁREA DE CONHECIMENTO, NA FACULDADE DE DIREITO DA UNB, DESIGNANDO-LHE UM ESTATUTO EPISTEMOLÓGICO: O CONSTITUIR-SE UM “PRODUTO AUTÊNTICO DA UNIVERSIDADE PÚBLICA”. AS QUESTÕES TRABALHADAS NO LIVRO, NOS TEMAS E ESTUDOS QUE O ORGANIZAM, SÃO FIÉIS A ESSE COMPROMISSO: O DE MATERIALIZAR NOVAS CONTRIBUIÇÕES E PROPORCIONAR AMBIENTE PARA ESTUDOS AVANÇADOS, DE FRONTEIRA, PARADIGMÁTICOS.
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil,  Professor Titular, da Universidade de Brasília,  Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.

quinta-feira, 18 de junho de 2020

Os parcelamentos ilegais do solo e a desapropriação como sanção

Coluna Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito



       
Os Parcelamentos Ilegais do Solo e a Desapropriação como Sanção. O Casos dos “Condomínios Irregulares” no Distrito Federal. Alessandra Elias de Queiroga. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2002, 224 p.
Créditos: PixaBay
         A convite da Promotora de Justiça do Ministério Público do Distrito Federal Alessandra Elias de Queiroga integrante, ela preferirá que eu diga, membra do Coletivo Transforma MP, participei, justamente com ela, de um webnário (expressão que a quarentena imposta pela pandemia da covid19 difunde para designar uma nova e intensiva maneira de contato que o isolamento social proporcionou), e que teve como título Ministério Público da Cidadania: Um Projeto Traído? (https://streamyard.com/iqmvrtygv5).
        A iniciativa, ela havia me explicado, provinha da disposição de colocar em cena pública o MP Transforma, na dupla expressão de seu braço político, uma organização da sociedade civil que reflete sobre a realidade e a interpreta para criar cenários de atuação de seus participantes; e seu braço acadêmico, um Instituto em formação, para apoiar uma base de sustentação da competência intelectual e epistemológica de seus quadros, numa composição ampliada para além da origem funcional dos participantes, tanto que fui convidado como professor e pesquisador universitário a inscrição no Coletivo.
        O tema, sob forma de interpelação, colocava em causa um modelo diligentemente esculpido na Constituição de 1988, mas que nos dias correntes, numa atmosfera tensa com riscos de ruptura institucional, trazem alguma inquietação relativamente ao que teria desvirtuado esse modelo, a ponto de o primeiro Procurador-Geral em seguida à promulgação da Constituição, o insigne jurista Sepúlveda Pertence ter manifestado o desalento, que “criamos um monstro”.   
        Minha posição estabelecida em percurso no processo de construção da participação popular na Constituinte de 1988, no debate sobre cidadania e participação e reconstrução democrática das instituições, incluindo o MP, que não tenho nem deve haver arrependimento pelo desenho esboçado na Constituição, de um Ministério Público da cidadania, garante da democracia. Tenho e devemos ter a disposição de defender a instituição contra os desvios, a perda de referência de sua função social, os limites da cultura legal de muitos de seus agentes, subordinação da promessa constitucional em face das expectativas corporativas e de classe de muitos de seus membros, quando esses dirigem a Instituição e esvaziam a promessa da Constituição. Trata-se de resgatar essa promessa e não de conformar-se à perda de rumo que parece afetar a credibilidade da Instituição.
        Ainda temos como referência, a partir dos debates pré-constituintes, a compreensão de um trânsito político e histórico que pôde ser conferido a uma institucionalidade que se se expressasse vocacionada para um saldo em seu estatuto de lealdade social.
        No lançamento do volume inaugural do projeto O Direito Achado na Rua (Brasília: Editora da UnB, 1987), o Procurador Carlos Eduardo Vasconcelos, então professor da UnB e participante do Coletivo de Pesquisa desse projeto, expôs essa compreensão, no artigo Ministério Público: De Procurador da Coroa a Procurador do Povo ou a História de um Feitiço que às Vezes se Vira Contra o Feiticeiro. Conforme ele indica no texto em referência (p. 134-136):
        “Até do ponto de vista lógico do Estado Liberal, o Ministério Público funda o seu poder na soberania popular. A luta e o movimento que se registram na sua história, de crescente autonomia e prerrogativas frente aos demais poderes, tornam-no como que vocacionado a refletir anseios da sociedade civil organizada, posto que mais independência significa maior vulnerabilidade às pressões das instâncias de poder intermediárias, tais como as minorias, os movimentos ecológicos, as entidades representativas de classes e grupos”.
        Com Plínio de Arruda Sampaio, que foi deputado constituinte e que esteve comissionado para a elaboração desse dispositivo na proposta constitucional, tratava-se, dissemos eu, ele e outros no livro Ética, Justiça e Direito. Reflexões sobre a Reforma do Judiciário (Petrópolis: Editora Vozes, 1996), de desvendar quais teriam sido os fatores “de incremento à crise no campo da justiça, a ponto de se configurar a inusitada situação a que faz referência Boaventura de Sousa Santos, para que não se faça da “lei uma promessa vazia”, conquanto na crise do sistema de justiça se estabeleça franco questionamento sobre os pressupostos da cultura legalista da formação e dos fundamentos relativos ao papel e a função social dos operadores do Direito” (p. 10).
        E se a instituição tem se mantido à altura desse novo tribunato do povo, depende menos das boas intenções de seus membros que da conformação institucional que lhe conferiu a Assembleia Nacional Constituinte e da pressão que a sociedade civil soube e poderá exercer sobre ela.
        Por isso as inquietações que presidiram e levaram à organização do debate no webinário que travamos por mobilização do Coletivo Transforma MP. É que muito devem estar incomodando registros de que dão conta manchetes colecionadas ultimamente:
        . CBN/Globo – “É uma Vergonha que Augusto Aras não mostre Independência Diante de Bolsonaro”.
        . UOL: Aras sobre nota emitida por Bolsonaro: ‘Ele esqueceu de combinar comigo’. Entrevistado do “Conversa com Bial” desta madrugada, o procurador-geral da República, Augusto Aras, comentou a nota emitida pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido) em que dizia acreditar no arquivamento do inquérito que apura se ele tentou interferir politicamente no comando da Polícia Federal. A nota foi emitida por Bolsonaro no mesmo dia em que visitou inesperadamente a sede da Procuradoria-Geral da República (PGR), colocando Aras em uma situação desconfortável. “Ocorre que é uma declaração unilateral. O presidente esqueceu de combinar comigo”, afirmou o jurista baiano ao ser questionado sobre a declaração do presidente…. –
        . Poder 360: É hora de repensar o poder do procurador-geral da República, escrevem Kakay e Fábio Simantob
        . Só o PGR pode processar o presidente. MP é efetivamente dono da ação penal. Cargo devia ter 4 anos de ‘quarentena’. Processo deve ser e parecer honesto.
        . Blog do Marcelo Auler:  Aras tem o dever de denunciar Bolsonaro”, diz Fonteles, ex-PGR
        . Blog O Sensacionalista (Veja): Aras é promovido a passador de pano geral da República. O procurador-geral da República recebeu uma promoção
        . Jornal GGN (Luiz Nassif): A auto-imolação pública de Augusto Aras. Aqui o jornalista afirma que faria bem o Procurador Geral Augusto Aras de pensar no destino pós-PGR, analisando seus antecessores. E lembra que enquanto “Geraldo Brindeiro passou a história como engavetador geral da República. Deixou uma herança incômoda para filhos e netos; Rodrigo Janot jogou o Ministério Público Federal na aventura irresponsável de interferir na política. Está no ostracismo, rejeitado por amigos e familiares; Raquel Dodge aceitou a corte de Jair Bolsonaro. Senhora fina, expôs-se em público rindo das piadas escatológicas de Bolsonaro. Dona de uma biografia impecável, até aceitar disputar a simpatia de Bolsonaro, jogou-a no lixo. Em alguns meses, jogou fora uma reputação que levou décadas para ser construída”.
        Mas chama a atenção também para em outra ponta, ter-se “o grande Cláudio Fontelles, também ex-PGR, envelhece na mais absoluta dignidade, gozando do respeito geral. E Deborah Duprat deixa a Procuradoria Federal dos Direitos Humanos respeitada internacionalmente por sua coerência, coragem e compromisso com sua missão de defender os desvalidos”.
        O jornalista põe em relevo dois episódios recentes, que segundo ele “comprovam a autodestruição da biografia de Aras: o primeiro, a lisonja humilhante de Bolsonaro, condecorando-o e acenando publicamente com uma improvável terceira vaga no Supremo Tribunal Federal. Deu a entender publicamente que Aras é barato: se vende por recompensa futura. Tratou-o como ambicioso e tolo, oferecendo-lhe pastel de vento; o segundo, a sua oferta para participar do inquérito das fakenews – depois de ter tentado impedi-lo –, e a reação do STF de não aceitar a ajuda. Passou a mensagem pública de que Aras não é um interlocutor confiável e que poderia atuar como 5a coluna. Ou seja, convalidou o inquérito das fakenews e continuará sem participar das investigações”.
        . Professor da UnB Murilo Ramos, No Blog Os Divergentes, é incisivo: “Augusto Aras prometeu o paraíso, mas poderá entregar o inferno. Diz-se que Aras oferecera a Bolsonaro sólidas convicções religiosas conservadoras, no caso, Católica Apostólica Romana – o mesmo credo, aparente, do Presidente da República -, e igualmente sólidas convicções econômicas (neo) liberais, essenciais ao projeto econômico (sic) de Paulo Guedes, inclusive no tocante ao desmonte de direitos trabalhistas. O que, por si só, já desqualificaria Augusto Aras para o exercício do cargo que almejava com tanto destemor. Mas, se foi isto mesmo, ou mais, ou menos; se as conversas privadas com Bolsonaro foram somente republicanas – hipótese que, se levada a sério, parece risível -, isto é matéria para historiadores”.
        Ele continua: “Única instituição republicana a merecer o privilégio constitucional da independência funcional, desatrelada dos Três Poderes, o Ministério Público tem todo o direito de blindar a escolha do seu Procurador Geral dos humores únicos de uma pessoa que, no limite, como é o caso agora, poderá ter que criminalmente denunciar. Se uma lista tríplice pode não ser um mecanismo perfeito, nas circunstâncias brasileiras ela é o melhor que se tem, e que deveria, por isso, já ter sido consagrada em lei”.
        Para culminar a manchete  da BBC Brasil: “‘Revolta’ contra Aras une diferentes grupos do MPF em momento de disputa na corporação. Mais da metade dos procuradores assinam manifesto que atinge Aras”, em meio a tensões que estariam afetando a corporação nas substituições de cargos estratégicos na organização do MP, mas também fazendo sobressair visceralmente um embate entre a concepção proposta no modelo e a que se concretiza a partir do cabo de guerra sobre o ethos da Instituição.
        Afinal, qual a foto que cabe na moldura da Constituição, que erigiu o Ministério Público de funções essenciais da Justiça (art. 127), base para o reconhecimento de sua Independência. Independência para que? Para poder, com o passaporte de uma carteira especial entrar em teatros, cinemas, ter porte de arma, subsídios, gordos contracheques, ou seja, para ser CORPORAÇÃO,  ou para exercitar  protagonismo,  realizar as promessas constitucionais, isto é, para a CIDADANIA?
        Essas são questões que debatemos em live (encontro virtual), constatando que essa questão não se esclarece entre quatro paredes, mas em diálogo com a sociedade. Algo que o Instituto Social Ambiental – ISA, conferiu em homenagem à Procuradora jubilada Deborah Duprat (https://www.socioambiental.org/pt-br/blog/blog-do-isa/o-legado-de-deborah-duprat), traduzindo à perfeição o que melhor se diz a respeito desse diálogo: “O Legado de Deborah Duprat. Sem se isolar entre as paredes herméticas da institucionalidade, Deborah nunca perdeu a mirada da luta que vem da rua, dos asfaltos, dos rios, dos campos e das florestas. Sempre foi um canal aberto de diálogo com os movimentos sociais, com a sociedade civil e uma interlocutora de suas vozes dentro do Judiciário. Uma voz potente em um ambiente que, em regra, é estruturalmente fechado às demandas sociais. Sua postura plural ajudou a pintar de povo as estruturas fechadas do sistema de justiça”.
        Foi em meio a essa conversa, reencontrando a antiga aluna em minha interlocutora no debate, que reconheci essa dupla face de um MP, ao mesmo tempo político (na acepção de maior dignidade dessa expressão) e intelectual, ela que foi minha orientanda em seu mestrado na Faculdade de Direito da UnB. E logo recuperei de seu percurso acadêmico a obra que realizou e submeteu à banca examinadora para titulação, materializada no livro ora Lido para Você. Fiz o prefácio do livro e dele retiro o que a meu ver, a Autora expõe na obra.
        Comecei por situar a obra. No Brasil, nos anos recentes, especialmente a partir da Constituição de 1988, tiveram impulso inédito, temperando o modo pelo qual se concretizam, na consciência social, efeitos sociais de contradições vivenciadas nos espaços urbanos, não só o chamado Direito Urbanístico.
        A nota significativa dessas “novas visões de urbanismo” foi a ampla discussão acerca de um estatuto das cidades, orientada para o estabelecimento da instrumentalidade urbanística contra a exclusão social.
        Nos planos histórico e filosófico, neste sentido, desde os anos 1960, teceu-se uma ressignificação desse processo, conduzido por representações conceituais que vários autores caracterizaram como intensa participação pelo direito à cidade.
        Henri Lefebvre, um desses autores (O Direito à Cidade. São PauloEditora Documentos Ltda, 1969), pontua, nessa tessitura e alude, exatamente, ao direito à cidade. “Não – diz ele – à cidade arcaica mas à vida urbana, à centralidade renovada, aos locais de encontro e de trocas, aos ritmos de vida e empregos do tempo que permitem o uso pleno e inteiro desses momentos e locais”. Para em seguida completar: “A proclamação e a realização da vida urbana como reino do uso (da troca e do encontro separados do valor de troca) exigem o domínio do econômico (do valor de troca, do mercado e da mercadoria) e por conseguinte se inscrevem nas perspectivas da revolução sob a hegemonia da classe operária. Para a classe operária, rejeitada dos centros para as periferias, despojadas das cidades, expropriada assim dos melhores resultados de sua atividade, esse direito tem um alcance e uma significação particulares. Representa para ela ao mesmo tempo um meio e um objetivo, um caminho e um horizonte; mas essa ação virtual da classe operária representa também os interesses gerais da civilização e os interesses particulares de todas as camadas sociais de ‘habitantes’, para os quais a integração e a participação se tornam obsessivas sem que cheguem a tornar eficazes essas obsessões”.
        Nesse campo, de fato, deu-se de forma mais nítida a representação de movimentos de conquista de espaços políticos para a ampliação dos horizontes de consciência histórica dos direitos à cidadania que vêm completar os direitos abstratos do homem e do cidadão.
        Estudos interessantíssimos, derivados de políticas públicas para o manejo do solo urbano e que foram realizadas em várias experiências de gestão municipal, em prefeituras populares no Brasil (cf. Raquel Rolnik, A Cidade e a Lei. Legislação, Política e Territórios na Cidade de São Paulo. São Paulo: Fapesp, Studio Nobel, Revista Pólis n. 27, “Políticas Públicas para o Manejo do Solo Urbano: Experiências e Possibilidades”; Revista Pólis, n. 29, “Instrumentos Urbanísticos contra a Exclusão Social”; Nelson Saule Jr, Novas Perspectivas do Direito Urbanístico Brasileiro. Ordenamento Constitucional da Política Urbana. Aplicação e Eficácia do Plano Diretor. Porto AlegreSergio Antonio Fabris Editor, 1997) vieram a fazer eco aos trabalhos pioneiros, no âmbito jurídico, iniciados por Ricardo César Pereira Lira, no programa de pós-graduação em Direito à Cidade, da UERJ, este parte da bibliografia e membro da banca examinadora da dissertação.
        O adensamento temático proporcionado por esses estudos, em articulação com as agendas estabelecidas a partir da articulação das ações dos movimentos sociais com as estratégias governamentais de gestão de políticas públicas criaram as condições de possibilidade para a aprovação do “Estatuto da Cidade”, autodeterminação estabelecida pela Lei nº 10.257, de 10 de julho de 2001 que regulamenta os artigos 182 e 183 da Constituição Federal e estabelece diretrizes gerais da política urbana. Chamada por alguns de “Lei de Responsabilidade Social”, a lei que funda o “Estatuto da Sociedade” tem, portanto, o objetivo de estabelecer diretrizes gerais de política urbana que, por sua vez, visa a ordenar o plano desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade. Lembra Diógenes Gasparini, em estudo especial sobre o tema (Um Projeto para Nossas Cidades, Diálogos & Debates, Revista Trimestral da Escola Paulista de Magistratura, ano 2, nº 1, edição 5, setembro de 2001) que “são funções sociais da cidade as ligadas à habitação, ao trabalho, à circulação e à recreação, enquanto são funções sociais da propriedade as relacionadas ao uso e à ocupação do solo urbano, daí, a primeira das diretrizes arroladas pelo art. 2º da lei, referida ao direito a cidades sustentáveis, entendido como o direito à terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infraestrutura urbana, ao transporte e aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer, para as presentes e futuras gerações”.
        É certo que a lei sofreu vetos do Presidente da República que atingiram o núcleo vital do elenco de direitos nela projetados, notadamente nos artigos que regulavam a concessão especial para fins de moradia.
        Os vetos representam as tensões que temperam as demandas sociais por direitos e as resistências que afetam a sua concretização efetiva, gerando contradições que demarcam o seu afloramento na consciência social dos sujeitos protagonistas em seus esforços para completar os direitos abstratos que a retórica política mais facilmente assimila. Por isso lembra Lefebvre, em seu livro citado: “Entre as contradições características dessa época, estão aquelas (particularmente duras) e existentes entre as realidades da sociedade e os fatos da civilização que nela se inscrevem. De um lado o genocídio, e de outro os esforços (médicos e outros) que permitem salvar uma criança ou prolongar uma agonia. Uma das últimas contradições, não a menor, foi posta em evidência aqui mesmo: a contradição entre a socialização da sociedade e a segregação generalizada. Existem muitas outras, por exemplo, entre a etiqueta de revolucionário e o apego às categorias de um racionalismo produtivista superado. No seio dos efeitos sociais devidos à pressão das massas, o individual não morre e se afirma. Surgem direitos: estes entram para os costumes ou em prescrições mais ou menos seguidas por atos, e sabe-se de como esses ‘direitos’ concretos vêm completar os direitos abstratos do homem e do cidadão inscritos no frontão dos edifícios pela democracia quando de seus primórdios revolucionários: direito das idades e dos sexos (a mulher, a criança, o velho), direitos das condições (o proletário, o camponês), direitos à instrução e à educação, direito ao trabalho, à cultura, ao repouso, à saúde, à habitação. Apesar, ou através das gigantescas destruições, das guerras mundiais, das ameaças, do terror nuclear. A pressão da classe operária foi e continua a ser necessária (mas não suficiente) para o reconhecimento desses direitos, para a sua entrada para os costumes, para a sua inscrição nos códigos, ainda bem incompletos”.
        Em sua tese de doutoramento (Cidadania, Conflitos e Agendas Sociais: das Favelas Urbanizadas aos Fóruns Internacionais, Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, 1996), Ana Amélia da Silva referiu-se à “trajetória que implicou uma concepção renovada da prática do direito, tanto em termos teóricos quanto da criação de novas institucionalidades”, aludindo ao protagonismo dos movimentos sociais e sua capacidade para abrir agendas para a interlocução apta a completar os direitos com sua inscrição positivada nas leis e nos códigos.
        A Autora, toma como base para seu estudo, as estratégias sociais para a institucionalização do “direito à moradia”, tema antigo de minhas pesquisas (Fundamentação Teórica do Direito de Moradia. Revista Direito e Avesso. Boletim da Nova Escola Jurídica Brasileira, nº 2, 1982), referindo-se, exatamente, à formação de “agendas sociais” e a “espaços públicos” para aí inserir o que ela denomina “direitos de cidadania”, reivindicando outras leituras aptas a conceber “o horizonte de propostas e lutas pelos direitos de cidadania como um campo social em construção”.
        Da construção social desse campo cuidam as leituras que venho arrolando, a ponto de permitir inscrevê-las no rol qualificado das demandas de inclusão social pelo viés temático dos direitos humanos. Assim, por exemplo, no projeto PIDHDD – Plataforma Interamericana de Direitos Humanos, Democracia e Desenvolvimento, cuja Seção Brasileira, em parceria com o MNDH – Movimento Nacional de Direitos Humanos, cujo relatório elaborado no marco do Projeto Genebra 2002, apresentado durante a 59ª Sessão da Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas, em seu espaço paralelo, (Jayme Benvenuto Lima Jr e Lena Zetterström, orgs., Extrema Pobreza no Brasil. A Situação do Direito à Alimentação e Moradia Adequada. São Paulo: Edições Loyola, 2002), no qual, a partir do relatório setorial subscrito por Nelson Saule Júnior e Maria Elena Rodriguez (Direito à Moradia), toma posição, em sede da Emenda Constitucional nº 26, de 14 de fevereiro de 2000, trazendo à categoria de direitos sociais a moradia, junto com educação, saúde, trabalho, lazer, segurança, previdência social, a proteção à maternidade e à infância e a assistência aos desamparados, afirmando que “após 12 anos de sua edição original, a Constituição finalmente consagra o direito à moradia como dentre aqueles que conferem dignidade aos cidadãos”.
        Desde então venho atualizando o acervo de reflexão sobre esse tema, constituído por pesquisas desenvolvidas em monografias, dissertações e teses de pesquisadores do Grupo e Linha de Pesquisa O Direito Achado na Rua e na interlocução com pesquisadores de outros grupos de pesquisa associados por intercâmbio de cooperação, a partir de seus trabalhos, muitos dos quais já identificados nesta Coluna Lido para Você.
        Remeto a alguns desses trabalhos, objeto de recensão na Coluna|: https://estadodedireito.com.br/atlas-sobre-o-direito-de-morar-em-salvador/https://estadodedireito.com.br/24566-2/ (Do Direito Autoconstruído ao Direito à Cidade, de Adriana Lima, trabalho que recebeu o Prêmio Capes de Tese na área de Arquitetura); https://estadodedireito.com.br/as-dimensoes-do-direito-a-moradia-o-protagonismo-da-mulher-na-politica-de-habitacao-de-interesse-social/; o estudo exemplar já em duas edições, parte da “Coleção Crítica do Direito: experiências jurídicas e sociais”, coordenada por Enzo Bello e Ricardo Nery Falbo, e veiculada desde 2016 pela Editora Lumen Juris:  https://estadodedireito.com.br/curso-de-direito-cidade-teoria-e-pratica/.
        Entre eles, na Série O Direito Achado na Rua, o volume 9, que sintetiza os esforços atualizados e consorciados do Coletivo de Pesquisa O Direito Achado na Rua e do Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico  https://estadodedireito.com.br/introducao-critica-ao-direito-urbanistico/.
        O livro de Alessandra Elias de Queiroga, originados de seus estudos de pós-graduação, no Programa de Pós-Graduação em Direito da Faculdade de Direito da UnB – “Os Parcelamentos Ilegais do Solo e a Desapropriação como Sanção: o Caso dos ‘Condomínios Irregulares do Distrito Federal’” – arranca dessa ordem de motivações. E revela, pela dupla investidura de interesse que a Autora encarna – acadêmica e funcional, Promotora de Justiça junto ao Ministério Público do Distrito Federal. Tal como aduzi na abertura deste texto, caracterizando o estatuto do Transforma MP, Alessandra, sem perder de vista o campo social em construção que vem demarcado pelas demandas legítimas dos movimentos sociais e de suas agendas propositivas de novos direitos, ela se move pela consciência da responsabilidade ético-funcional para distinguir as contaminações que afetam esse processo, quando a irregularidade se avizinha da delinquência, colocando no mesmo espaço de interesses em trânsito reivindicações legítimas e ações especulativas de predatórias irregulares e até criminalizáveis.
        Por isso que, o móvel de seu estudo, que acompanhei muito de perto, no encargo de orientador da dissertação, foi sempre, não perder de vista, como cidadã e integrante do Ministério Público do Distrito Federal, o horizonte de bem-estar da coletividade, num espaço social, o do Distrito Federal, cujo núcleo urbano – Brasília – aparece como um imaginário disputado, desde a origem simbólica, por contradições estratégias de apropriação de seu destino, a partir do desenho de seu projeto original.
        Para a Autora, “a função social da propriedade, se analisada de modo sistemático, e tendo em vista a necessária concretização dos princípios constitucionais, conduz à interpretação de que a propriedade só é garantida na medida em que estiver sendo aproveitada em benefício da coletividade, ou, pelo menos, enquanto não estiver sendo utilizada como substrato físico para práticas delitivas”.
        Estudo paradigmático, que parte da noção atualizada de propriedade no marco das concepções que sustentam uma nítida constitucionalização do Direito Civil, a Autora trabalha a caracterização dos princípios jurídicos e a função social da propriedade para situá-los nos parâmetros do Direito Urbanístico, âmbito no qual traça os contornos de seu problema: o parcelamento do solo para fins urbanos e as situações ilegais de parcelamento. A Autora realiza estudo de caso, numa situação, lembra Boaventura de Sousa Santos, que valorize a própria experiência (Crítica da Razão Indolente. Contra o Desperdício da Experiência. São Paulo: Cortez Editora, 2000), tomando, como referência empírica os “condomínios” ou “loteamentos fechados” no Distrito Federal. Se não por outros aspectos relevantes de seu trabalho, este referido ao estudo de caso oferece as condições de exemplaridade, próprias dos métodos qualitativos, tal a relevância e acuidade da análise. Com efeito, partindo do histórico da ocupação humana no Distrito Federal, a Autora caracteriza o modo de parcelamento desenvolvido no seu território, revelando a “a mecânica de constituição dos parcelamentos ilegais do solo no Distrito Federal”, num efeito-demonstração de um processo perverso que se espalha pelo País.
        O estudo é, todavia, propositivo e se direciona para propostas de concretização do princípio da função social da propriedade em face dos parcelamentos ilegais do solo para fins urbanos.
        O livro, edição de Sergio Fabris Editor, vem a público graças a sempre atenta abertura editorial desse editor suis generis (meu primeiro editor) para temas política e juridicamente críticos. Contribuição original e emblemática, o trabalho adensa um campo novo e que exige conhecimento refinado pela experiência. O livro de Alessandra Elias de Queiroga se insere, pois, naquele roteiro assinalado por Boaventura de Sousa Santos que combina, simultaneamente, autobiografia e autoconhecimento (Sociologia na Primeira Pessoa: Fazendo Pesquisa nas Favelas do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Editora Brasiliense.  OAB-Revista da Ordem dos Advogados do Brasil, nº 49, primavera/1988), num relato concomitante, poder-se-ia dizer, parafraseando esse Autor, “daquilo que sei” “daquilo que sou”.
        Do que sabe Alessandra, o livro é uma demonstração cabal, pela sua qualificação, imediatamente constatada. Do que é Alessandra, poucos sabem, porque isso é biografia, mas os que sabem conhecem a sua coragem, o seu sofrimento, o seu compromisso, porque o estudo não foi neutro e detendo-se sob o exame de uma realidade crítica, teve sua individualidade, sua função profissional e sua própria vida, em exposição permanente, sob ameaças diretas, em risco.
        Que fazer? Como lembra João Guimarães Rosa, em Grandes Sertões, afinal, “viver é negócio muito perigoso…” e, como explica por meio de Riobaldo, solto, por si, cidadão”, é que não tem diabo nem medo nenhum. Assim é Alessandra.
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil,  Professor Titular, da Universidade de Brasília,  Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.55

sexta-feira, 12 de junho de 2020

Os 30 anos de um direito que combate a injustiça construída pela lei ...

Por Jacques Távora Alfonsin

"Ação organizada e não prorrogada indefinidamente porque, na rua, as reivindicações populares de proteção e defesa de direitos, não depende de processos formais (judiciais, administrativos, burocráticos, protocolares etc...). O permanente desafio de se garantir eficácia aos direitos sociais, por exemplo, tem sido vencido pontualmente pelo direito achado na rua, materialmente por seus efeitos concretos, dos quais a ocupação de terras que não cumprem sua função social é uma das provas desse fato", escreve Jacques Távora Alfonsin, procurador aposentado do estado do Rio Grande do Sul e membro da ONG Acesso, Cidadania e Direitos Humanos.

Eis o artigo.

Faculdade de Direito da Universidade de Brasilia sediou, entre 11 e 13 deste dezembro, um Seminário Internacional, para celebrar o 30º aniversário do “Direito achado na rua”, ou, como o próprio convite para a participação de interessadas/os no evento registrou, “O direito como liberdade”. Este é o título de um livro escrito pelo professor e jurista, ex-reitor na UNB, José Geraldo de Sousa Junior, um dos fundadores dessa verdadeira nova escola jurídica, de um direito legítimo, mas nascido e “vigente na rua”, ou seja, em um outro lugar social, desconhecido ou até desprezado pelas instituições públicas.
O público presente neste encontro testemunhou a relevância social que um estudo crítico do “direito legal”, em muitos casos até colocado em oposição direta ao que as leis preveem, como é o do direito achado na rua, continua animado por uma forte mística de proteção e defesa de todo aquele povo pobre que lhe serve de nome, sujeito, sentido, direção e ação.
Nome, porque a rua é um dos lugares onde a coragem popular contrária a opressão e a repressão das leis injustas não tem só a oportunidade de enfrentá-las, mas revelar também e publicamente a hipocrisia e o cinismo que permeia, com muito honrosas exceções, o direito “legal”, “oficial” “positivo”, caloteiro histórico de promessas generosas feitas ao povo pobre e depois descumpridas. A rua, do direito achado nela, pode e deve ser vista, igualmente, como aquela outra via, hostil ao sistema mundo capitalista, aquela que, em vez da globalização dos mercados, prefere a da vida e a da liberdade para todas/os. Não aceita o monopólio da produção do direito e da justiça sob reserva exclusive do Estado. Está fundamentada, se não já numa legitimidade constituída, em outra constituinte e constituível, de acordo com a realidade dos tempos e dos espaços que ela própria assume, se responsabiliza e se encarrega de garantir, por maior que seja a repressão que sofre.
Sujeito protagonista da defesa de direitos devidos porque, na rua, publicamente, as multidões pobres de cada país têm chance de, pelo número e pela consciência coletiva que as constitui, deixar visível a exclusão social a que ficam submetidas por leis onde até a previsão de direitos como os sociais não passam da letra, e cuja aplicação, quando se dá, fica dependente de uma burocracia do tipo processo legal, que ignora urgências necessitadas de atendimento imediato, da espécie alimentação e moradia por exemplo.
Sentido inspirador porque, na rua, esse direito é compartilhado por suas/seus defensoras/es, baseado coletivamente num sentimento ético-político indignado com as injustiças geradas pela reprodução “legal” de desigualdades sociais, discriminatórias, fundadas em “valores” imorais do tipo egoísmo, ganância, corrupção, racismo, preconceito, desrespeito a terra, ao meio ambiente, a pessoas pobres ou miseráveis.
Direção acertada e clara porque, na rua, os objetivos de proteção e defesa da dignidade humana e da cidadania libertam esses direitos da mais do que conhecida e desmoralizada manipulação das leis, quando essas são produzidas, interpretadas e aplicadas, de modo seletivo, sob paradigmas hermenêuticos de favorecimento privilegiado para determinados grupos de poder, seja ele privado ou público, como prova a vergonhosa tradição histórica do Brasil, agora requentada por aqui desde o golpe de 2016.
Ação organizada e não prorrogada indefinidamente porque, na rua, as reivindicações populares de proteção e defesa de direitos, não depende de processos formais (judiciais, administrativos, burocráticos, protocolares etc...). O permanente desafio de se garantir eficácia aos direitos sociais, por exemplo, tem sido vencido pontualmente pelo direito achado na rua, materialmente por seus efeitos concretos, dos quais a ocupação de terras que não cumprem sua função social é uma das provas desse fato.
Quando faltam argumentos para se justificar uma determinada situação de injustiça, um recurso costumeiramente usado para defendê-la é o de acusar os críticos da mudança provada necessária como inspirados, apenas, em “ideologias”. Assim, sobre necessidades humanas vitais da espécie fome, falta de teto, escola, assistência médica e hospitalar, segurança, transporte, trabalho, lazer, enfim todo o direito social de que a lei ouse tratar, ficam impedidas de serem satisfeitas, não só pela pela midiático, doutrinário e, esse sim, ideológico, desenvolvido para desarmar e desautorizar qualquer reivindicação popular sobre questão dessa evidente urgência de solução prioritária.
direito achado na rua não é cúmplice dessa injustiça. Bem ao contrário, faz 30 anos que a combate, o Seminário de Brasília dando mostra de que se encontra muito vivo e forte. José Geraldo de Sousa Junior, em entrevista concedida ao IHU notícias em outubro do ano passado, sintetizou um dos méritos desse direito, inclusive para mostrar que tipo de acesso e a qual tipo de justiça é possível ainda falar-se em solução para a crise vivida pelo Poder Judiciário, ainda exageradamente preso a posições preconceituosas em relação ao povo pobre:
No fundo, o que está em causa não é só reivindicar acesso à justiça, mas um repensar e reorientar a própria concepção de justiça para a qual ter acesso. E isso não pode ocorrer sem que se abra o tema à participação popular porque, como eu próprio já afirmei, as reformas do Judiciário em curso atingem o núcleo central, funcional, organizativo do sistema de Justiça como estrutura de poder, mas não o abre à participação social democrática. O de acesso à Justiça que tem sido debatido é ainda o acesso a um sistema de justiça patrimonialista, sexista, patriarcalista, que criminaliza os movimentos sociais”. Uma reforma do Judiciário de raiz precisa ser construída pelos movimentos sociais, e, neste sentido, requer abrir espaços de articulação das grandes pautas que envolvem a democratização da justiça.
Não há de ser criminalizando os movimentos sociais, então, que o Poder Judiciário brasileiro conseguirá enfrentar e muito menos vencer a injustiça social por força da qual eles não só existem, como podem e devem agir, mesmo que seja por um direito achado na rua.

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quarta-feira, 10 de junho de 2020

Cidadania e inclusão

Coluna Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito



       

Cidadania e Inclusão. Estudos em Homenagem à Professora Miracy Barbosa de Sousa Gustin. Flávio Henrique Unes Pereira e Maria Tereza Fonseca Dias. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2008,  581 p.
Créditos: PixaBay

     Em coluna anterior, aqui nesse Lido para Você, para acentuar a importância de se incluir no estudo sobre o qual a Coluna versava, chamei a atenção para este livro, indicando toda a obra e especialmente três artigos que se aplicavam diretamente ao texto em causa.
     Ao fazê-lo, como num vislumbre de esclarecimento, rememorei todo o acervo desse livro visceral, em si, uma obra extremamente valiosa em seu arranque, arranjo e competência convocada para estudos em homenagem, conforme logo se verá pelo sumário que vou apresentar, mas por reverenciar o espírito vivo, intelectualmente encarnado, na personalidade emponderada de Miracy Gustin.
     Vejam o que dizem os organizadores do livro e da homenagem, no frontispício do livro: “Vamos imaginar alguém que pudesse contar com um pouquinho de cada ser humano que admiramos. Como se fosse possível pinçar o que há de coragem em um; de bondade em outro; de ousadia em mais um; de… . É possível. Eis Miracy Gustin, nossa querida professora. Não falamos de perfeição, é alma verdadeiramente humana, ‘vida severina’. Essa é uma parte das razões que nos motivou a organizar esta obra. A outra, é sentimento, afinal, ‘sentimento é a coisa mais fina do mundo’ (Adélia Prado). Amor, em Miracy, une os autores do livro”.
     Disseram bem. Outro grande mestre, supervisor de estudos pós-graduados avançados de Miracy, em Barcelona, no livro autor do prefácio, Juan-Ramón Capella, disse mais: “Sabido es que las instituciones jurídicas y el derecho, si se apartan de la democracia, pueden ser instrumentos de opresión social, pero también que com la democracia y con la fortaleza de la ciudadanía El derecho es uma institución colectiva de liberación. El mérito de Miracy Gustin es Haber sabido apostar decididamente, tanto em sus obras teoréticas como em su práctica docente, por el derecho como instrumento de defensa social frente a los abusos, y haberlo hecho de uma manera imaginativa, de imaginación radical que diria C. Castoriadis, modificando em sentido constructivo uma de las condiciones de reproducción del campo jurídico”.
     Conforme mencionei, além do prefácio, da apresentação, de saudações e da biografia escrita pelas filhas Fernanda, Fádua e Ana Isaura de Sousa Gustin, o livro oferece um rico sumário, que é de interlocutores que também amam Miracy, mas que, de algum modo fazem interlocução com ela a partir de seus temas, seus projetos, seus conceitos, sua visão de mundo, sua concepção de Direito.
     Precioso repertório. Confiram:
     A história dos sistemas de pensamento e as condições de possibilidade do discurso dos direitos humanos no Brasil hoje, Adalberto Antonio Batista Arcelo; As origens do Núcleo de Prática Jurídica da UnB, Alexandre Bernardino Costa; Cidadania e inclusão social versus violência, Angela M. Prata Pace Siva Nicácio; Sobre segurança pública, violência, Sherlock Holmes e capitão Nascimento, Beatriz Vargas; Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia de saberes, Boaventura de Sousa Santos; O ensino do Direito como base da autonomia da pessoa humana e sua legitimação ética, Brunello Stancioli, Nara Pereira Carvalho; A mediação como exercício de autonomia: entre promessa e efetividade, Camila Silva Nicário, Renata Camilo de Oliveira; Cidadania, democracia e Constituição: o processo de convocação da Assembléia Nacional Constituinte de 1987-1988, Cristiano Paixão, Leonardo Augusto de Andrade Barbosa; As possibilidades da economia solidária enquanto um espaço em construção: re-significando o trabalho para re-significar a vida, Fernanda de Lazari Cardoso, Leonardo Balbino Mascarenhas, Renata Versiani Scott Varella, Roberta Brangioni Fontes; A constitucionalização dos direitos trabalhistas e os reflexos no mercado de trabalho, Gabriela Neves Delgado; Novos desafios dos movimentos sociais, Gilvander Luís Moreira, Delze dos Santos Laureano; Poder judiciário e inclusão social: considerações acerca do papel do controle judicial das políticas para a efetividade dos direitos sociais, Heloisa Helena Nascimento Rocha, Luciana Moraes Raso Sardinha Pinto; Poder Judiciário e instituições participativas: reflexões sobre limites, riscos e potencialidades dessa relação para a efetividade dos direitos sociais no Brasil, Jacqueline Passos da Silveira; De Jürgen à Jorge Habermas: por uma filosofia do direito e da democracia à brasileira, José Eduardo Elias Romão; Uma construção histórica para a interpretação constitucional, José Luiz Quadros de Magalhães; Ius  e potestas: o debate sobre a pobreza franciscana e a aproximação semântica e estrutural de Direito e Política no tardo-medievo; Juliana Neuenschwander Magalhães; Repensando a exploração sexual infanto-juvenil sob o enfoque do gênero, Larissa Guimarães Baptista, Mariana Prandini Fraga Assis; Instituições participativas e desenho institucional: algumas considerações sobre a variação da participação no Brasil democrático, Leonardo Avritzer; Justiça e poder: uma proposta de interpretação para Prometeu acorrentado, Lucas de Alvarenga Gontijo, Thiago Lopes Decat; Direito e política na proteção da criança e do adolescente, Luciana de Freitas Guerra Lages; Cidadania e república no Brasil: história, desafios e projeção do futuro, Lucília de Almeida Neves delgado; A comunicação em redes de desenvolvimento comunitário: reflexões a partir do caso do Conjunto Jardim Felicidade, Luiza Farnese Lana Sarayed-Din; Segurança pública e violência: visões da sociedade civil, Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira; A dimensão coletiva da mediação e o desafio da construção de redes sociais, Márcio Simeone Henriques; Os não-lugares do Direito: uma pesquisa em classe com trabalhadores de rua, Márcio Túlio Viana; A função social no direito urbanístico e na política urbana: uma nova ordem de sustentabilidade das cidades, Maria Coeli Simões Pires; O nome da rosa e o nome da lei: barreiras e pontes no espaço urbano, Maria Elisa Braz Barbosa; Uma leitura do discurso da exclusão socioespacial no Brasil: o cortiço, o quarto de despejo, a cidade de Deus – espaços vazios que transbordam, Maria Elisa Braz Barbosa, Maria Coeli Simões Pires; Ciência, ética e inclusão social em América Latina, Maria Fernanda Salcedo Repolês; Rumo ao direito administrativo da cidadania e da inclusão social, Maria Tereza Fonseca Dias; A concessão de uso especial para fins de moradia como instrumento para regularização fundiária, Marilda de Paula Silveira, Flávio Henrique Unes Pereira; Direito do Trabalho e inclusão social: o desafio brasileiro, Maurício Godinho Delgado; Os 20 anos da Constituição de 1988 e os horizontes da extensão universitária, Menelick de Carvalho Netto, Guilerme Scotti; Janelas, mesas, feijões e mulheres que catam sonhos, Mônica Sette Lopes; Educação em direitos humanos: um plano, muitos desafios e uma missão, Nilmário Miranda, Egidia Maria de Almeida Aiexe; Atividade tributária, processo administrativo-tributário e administração pública participativa, Rafhael Frattari; Subcidadania e subintegração das minorias identitárias no Brasil: uma introdução à discussão sociológica da historiografia brasileira, Renato Almeida de Moraes, Caroline Scofield Amaral; Programa Pólos: um caso cumprido de cidadania, Sielen Barreto Caldas; O direito à singularidade dos portadores de sofrimento mental e a permanentes inconstitucionalidade das medidas de segurança, Virgílio de Mattos, Janaína L. Penalva da Silva.
     Também estou presente na obra, com um texto Universidade Popular e educação jurídica emancipatória, que em seus desdobramentos: Ensino do Direito e assessoria jurídica, A reforma Universitária e o requisito de responsabilidade social, Núcleos de Prática Jurídica, assessoria jurídica comunitária e responsabilidade social dos estudantes de Direito, Nova cultura nas faculdades de Direito, O Direito Achado na Rua: uma experiência prospectiva carregada de compromisso social, O Núcleo de Prática Jurídica da Faculdade de Direito da UnB: antecedentes de sua experiência de institucionalização, (Re)pensando a universidade e o ensino jurídico na atualidade (p. 203-246), dialoga com os temas, autores e autoras de pelo menos quatro gerações, suas irradiações nacionais e internacionais a partir da UFMG e das lutas por cidadania e direitos, em Belo Horizonte, Minas Gerais e Brasil, alguns em contexto de reflexão doméstico-institucional como os Neves Delgado, pensam e realizam o Direito e a emancipação.
     Com efeito, em meu texto procuro estabelecer vínculos objetivos e subjetivos com Miracy, nas esferas teórico-epistemológicas, político-institucionais e jurídico-pedagógicas. A começar pelo aporte do Direito como emancipação, direito achado na rua, conforme o enunciado de Roberto Lyra Filho, segundo o qual o direito não é norma, mas a enunciação da legítima organização social da liberdade. Não custa lembrar que o Programa Pólos de Cidadania, o premiado projeto de extensão que saltou da universidade para a polis, surgiu com a denominação de direito achado na rua, pensando o jurídico como criação do social, de sujeitos coletivos de direito inscritos nos movimentos sociais, fazendo emergir enquanto pluralidade tensa (Boaventura de Sousa Santos) um jurídico que se realize como direito emancipatório.
     De toda sorte, no livro que organizei juntamente com a professora Nair Heloisa Bicalho de Sousa e com os colegas Alayde Avelar Freire Sant’Anna, José Eduardo Elias Romão (que é autor no livro de homenagem), Marilson dos Santos Snatna e Sara da Nova Quadros Côrtes – Educando para os Direitos Humanos. Pautas pedagógicas para a cidadania na universidade. Porto Alegre/Brasília: NEP/Faculdade de Direito da UnB/Editora Síntese, 2004 – a própria Miracy, no módulo que aborda a educação para os direitos humanos, explica o alcance do projeto polos reprodutores de cidadania, em um bem estrurado texto – (Re)pensando a inserção da universidade na sociedade brasileira atual (observe-se que não é casual o sub-título do derradeiro item de meu texto no livro ora Lido para Você). O texto de Miracy pode ser conferido entre páginas 55 e 78 de Educando... .
     Os elementos desse artigo de Miracy Gustin foram atualizados e re-enquadrados no artigo que ela elaborou a meu convite para o livro que organizei como uma espécie de balanço crítico de meu reitorado na UnB, entre 2008-2012, (cf. SOUSA JUNIOR, José Geraldo de de (Org). Da Universidade Necessária à Universidade Emancipatória. Brasília: Editora UnB, 2012). O precioso artigo de Miracy, respondendo às questões que lhe propus para atender ao projeto da edição, p.163-186, fecha magistralmente o livro e eu o tenho utilizado como leitura obrigatório de meus cursos na graduação e na pós-graduação em Direito e em Direitos Humanos e Cidadania na UnB. Com o título Uma Universidade para a Inclusão e a Emancipação: Reflexões, ela traça Os antecedentes da Universidade Emancipatória no Brasil, situa esse percurso no contexto da Universidade Emancipatória e Inclusiva: conceitos e diretrizes básicas, entre os quais anota o ensino universitário e a integração de suas funções básicas como condição emancipatória, os conceitos que devem fundamentar uma universidade inclusiva e os conceitos que devem fundamentar uma universidade emancipatória. Os alunos e as alunas revelam razão e sensibilidade no mergulho que fazem nesse texto.
     Meu diálogo com Miracy Gustin ganhou culminância quando convidada a participar da banca de progressão para a função de Professor Titular, presidida pelo encantado professor Roberto Armando Ramos de Aguiar e com a participação dos professores Antonio Carlos Wolkmer e João Maurício Leitão Adeodato (suplentes Miroslav Milosevic e Marília Muricy Machado Pinto), não pôde comparecer mas enviou seu parecer e voto desde a cama de hospital em razão de acidente. Aqui reproduzo o parecer, não por vaidade, mas porque a peça permanece inédita, salvo pela audiência na sessão, que lhe ouviram a leitura, num 10 de dezembro (dia internacional dos direitos humanos) e porque esse ineditismo permite resgatar os pontos de ligação da interlocução que venho procurando por a descoberto neste Lido para Você:
     “Prezados integrantes da Banca para Progressão ao Cargo de Professor Titular do ilustre candidato Professor Doutor José Geraldo de Sousa Junior. Senhores e senhoras presentes,
     Em um dos trechos do Memorial em questão, o ilustre candidato ao cargo de Professor Titular desta insigne instituição acadêmica afirma que dado ao fato que sua experiência impôs “a obrigação de prestar contas intelectuais diante das expectativas que fomentou”.
     Prestar contas intelectuais? Justamente esse emérito professor e mestre conhecido e reconhecido por sua postura frente a um direito que não só acadêmico é justamente aquele que provém e é pensado a partir de uma normatividade que está em nossa sociedade e que se origina da fala e do pensamento de nossa gente?
     Prestar contas intelectuais? Especialmente em momento que se expande em nossas escolas de direito a noção de que a visão dialética do Direito, em contraposição a uma visão pretensamente fixa e dogmática, é aquela que não apenas provém, mas que conforma uma construção racional discursiva que não se silencia frente a estudos e críticas que desconhecem a origem primeira de nossas normas e princípios?
     Prestar contas intelectuais? Justamente em momento nacional que os sentidos normativos e institucionais são desrespeitados de forma afrontosa e lastimável?
     Prezados amigos desta Banca, por essas razões é que afirmo, com vigor e muito respeito, ser o candidato o detentor de uma tradição do Direito que, como bem diz “emerge de sua fonte material – o povo – e de seu protagonismo a partir da rua”. Há quem possa discordar de fato tão evidente e inequívoco? Há aqueles que duvidam de tamanha obviedade, mas de onde então proviriam os conteúdos do direito? Afirmam alguns que da norma. Mas, não seria esta uma contraditoriedade? Como aquilo que está inserido poderia, paralelamente, inserir? Como abrigar e, ao mesmo tempo, ser abrigado? Haveria possibilidade de refutar-se aquilo que revela uma veracidade epistemológica?
     Não desejo destinar louvores ao candidato, pois todos o conhecem por seus méritos acadêmico-científicos e de administração educacional. Devo me voltar à análise de trechos selecionados de seu memorial, peça que sustenta a possibilidade de progressão ao cargo de Professor Titular desta egrégia Faculdade de Direito.
     Para minha desventura, como professora de cursos de direito, não conheci Roberto Lyra Filho. E talvez tenha sido benéfico que assim tenha ocorrido, pois não desejo aqui soçobrar nas categorias da amizade ou da afeição. Tenho, contudo, alguma proximidade à produção por ele deixada que, não resta dúvida, deu origem a uma nova forma de se conhecer e de se ministrar os conceitos jurídicos mais importantes e básicos.
     Pode-se afirmar que a crise da lei que António Manuel Botelho Hespanha tão bem descreve não possa ser atribuída apenas à técnica legislativa, mas primordialmente às formas como ela é divulgada e ensinada em nossas faculdades. Daí, a importância da formação da chamada Nova Escola Jurídica Brasileira que veio sistematizar questões até então esparsas. Em nosso entender há mais uma incompreensão das mudanças históricas do ensino do Direito do que uma verdadeira crise da lei.
     Qual de nossos alunos não conhece o pequeno opúsculo “O que é o Direito” que inúmeras vezes os levaram a escolher o Direito e não qualquer outra área de conhecimento? Inúmeros deles compareceram às nossas aulas reiterando os conceitos ali encontrados. Dirão, por certo, mas esta é uma obra de pouca capacidade acadêmico-científica e desse fato seu valor. É uma obra de quem não se importa com uma linguagem rebuscada, mas com o estímulo ao conhecimento do direito e de sua aplicação. Esta é a importância de Lyra Filho, a sua visão sempre crítica do Direito e de nossas faculdades.
     Em razão de uma queda e a fratura de duas vértebras estou impedida de comparecer à Banca de José Geraldo de Sousa Júnior para a qual fui honrosamente convidada e do que me ressinto imensamente. Gostaria de estar dentre vocês caros amigos avaliadores do memorial encaminhado, porém impossibilitada por orientação médica, deixo o meu parecer pela aprovação do currículo enviado e do memorial tão bem exposto e com redação esmerada por ser justa e meticulosamente pensada, após a leitura detida de seu conteúdo.
     Por ser verdade e de justiça e não tendo mais condições físicas de dar maiores explicações de minha posição, voto pela aprovação da progressão do candidato ao cargo de Professor Titular dessa emérita Universidade.
     Coloco-me à disposição da Banca e da Universidade para informações que se fizerem necessárias”.
     Concluo me valendo do fecho de comentário que a professora Misabel Abreu Machado Derzi trouxe para a obra: “somos profundamente devedores, todos nós, mineiros e brasileiros – também os estrangeiros –, dessa obra extraordinária, edificada pela Professora Miracy Gustin, que constrói a justiça e a liberdade constitucionaliza o cotidiano
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil,  Professor Titular, da Universidade de Brasília,  Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.55