Coluna Lido para Você (Jornal Estado de Direito), por José Geraldo de Sousa Junior.
O Direito Achado na Rua: nossa conquista é do tamanho da nossa luta
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sexta-feira, 27 de setembro de 2019
segunda-feira, 9 de setembro de 2019
#Que Se Vayan Todos!
#Que Se Vayan Todos
by Observatório
Renata Carolina Corrêa Vieira* e José Geraldo de Sousa Junior
As ruas de Lima foram tomadas por uma grande mobilização nesteúltimodia 5 de setembro. Numa convocação por un Perú con igualdad, justicia y libre de violências y corrupción, a Coordenadoria Nacional de Direitos Humanos, impulsionou a marcha, junto com diversos coletivos, acadêmicos, organizações estudantis, sindicatos e até partidos sob um forte grito “que se vayan todos, que se cierre el congreso y que se adelanten las elecciones”.
O mote para a mobilização, segundo a chamada é, como dizem, la grave crisis nacional que o país vive e que remonta a julio de 2016, com o resultado contestado das eleições. Mas a sua expressão atual es política, social y ética y revela con crudeza a adoção de políticas que somente têm favorecido aos poderosos e aos donos do país, trazendo, como consequência, o corte e a negação de direitos e se convertendo numa constante que impede o acesso a uma vida plena, com justiça e dignidade.
Pelas ruas, se encontrava desde crianças, estudantes e idosos, coletivos que se posicionam desde à esquerda mais radical à direita liberal, todos envoltos em sua bandeira vermelha e branca, sob o grito de ordem: “Perú te quiero, por eso te defiendo”. No Peru, não lhes foi roubado as suas cores e seu signo.
Embora o foco da convocatória tenha ênfase na crise política, o Judiciário do país e o acesso à justiça têm sido alvo de forte crítica, desde o ano passado. Em 27 de julho de 2018, o Congresso peruano aprovou, por unanimidade (118 votos), a destituição dos integrantes do Conselho Nacional da Magistratura (CNM) do País. Os sete conselheiros do órgão estavam envolvidos em um escândalo de corrupção atingindo os mais altos níveis do judiciário peruano.
O CNM tem funções similares ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ) no Brasil, como a de melhorar a gestão e fiscalizar o Judiciário. Em meio a crise, agudizada por fortes protestos populares, o Presidente do Supremo Tribunal do Peru , acabou por se demitir.
Assim, volta a aparecer nos discursos de crítica aos sistemas de justiça na América Latina, a palavra de ordem que se inscrevia em muros de várias cidades sul-americanas, nos anos 1990/2000: que se vayan todos!
Na América Latina inteira, um pouco por toda parte, em que pesem soluços regressivos de autoritarismo útil ao projeto neoliberal que procura instalar-se em nossos países, a exemplo do que ocorre agora no Brasil, essa disposição democrática por justiça, igualdade, dignidade e respeito aos direitos humanos, enraizou-se definitivamente na cultura de nossos povos.
Na Venezuela de Chávez, em 2002, contra a tentativa de golpe, essa mobilização se fez forte e se expressou em palavras de ordem inscritas nos muros das ruas de Caracas: “Las calles no se calan! Exigimos justicia!”.
Em entrevista à Folha de São Paulo (A 14, 25/4/05) Marta Lagos, Diretora da Latino Barómetro, vê com boa expectativa democrática as movimentações sociais na América Latina atual, salientando o fato relevante de um protagonismo popular que, “de maneira crescente, se dando conta de seus direitos, volta às ruas para exigi-los”. Indica, além disso, que esses movimentos parecem sinalizar às elites que elas “não são adequadas ao momento democrático pelo qual passa o nosso continente”. Para ela, “as populações latino-americanas, hoje, parecem estar um passo à frente das elites que as governam”. Já em 2005 (Folha de São Paulo, A 14, 27/4/05), em Quito a matéria chamava a atenção para a retomada da mesma palavra de ordem que agora se proclama no Perú: Que se vayan todos!! – Que todos partam!!
Surgida pela primeira vez na Argentina, nos piquetes e nos cacerolazos (panelaços) de 2001/2002, a consigna que rapidamente se inscreveu no imaginário latino-americano sublevado, logo passou a traduzir a interpelação popular pelo desmantelamento das estruturas oligárquicas e das instituições por elas criadas e funcionalmente a serviço de seus interesses.
Curiosamente, embora dirigida aos políticos em geral, em coro nas marchas ou pintadas com aerosol em muros e paredes, estas palavras de ordem, lembra Julio de Zan (La Ética, los Derechos y la Justicia. Fundación Konrad-Adenauer, Uruguay, Montevideo, 2004), ganhou maior ressonância quando dirigida “contra membros do Poder Judiciário, em particular contra os próprios juízes” repetida que foi em manifestações massivas, por exemplo, “diante da Corte Suprema de Justiça em Buenos Aires, quando exigiam a renúncia dos magistrados”.
A esse respeito, em questão proposta ao jurista Carlos Maria Cárcova, antigo membro do Conselho de Justiça da Província de Buenos Aires, nesses termos (Observatório da Constituição e da Democracia: Brasília: Faculdade de Direito da UnB/SindjusDF, n. 20, março de 2008, pp. 12-13):
“O Senhor integrou como membro o Conselho de Justiça da Província de Buenos Aires. Exatamente numa época em que as demandas sociais por justiça acabaram identificando nos juízes, um grande obstáculo às reivindicações de direitos. A expressão “que se vayan todos” traduz bem o repúdio social à incapacidade dos juízes e do direito positivo de assimilarem ou mesmo compreenderemo alcance dessas demandas. Afinal, que fazem os juízes quando julgam?”
Ele afirmou:
“La consigna “que se vayan todos” estuvo claramente dirigida a los políticos, sea del partido que fueran. Era una consigna más que discutible desde una posición democrática y transformadora, con un tufillo algo facistoide, pero que prendió en la gente, frente a una situación de ingobernabilidad extrema, de una crisis económica sin precedentes y de un saqueo ilegítimo de los ahorros de la ciudadanía, cuyos depósitos en cuentas corrientes bancarias, cajas de ahorro, acciones, plazos fijos, etc. fueron incautados. ¿Qué hizo la ciudadanía? Confió en los jueces y colapsó los juzgados con recursos de amparo (mandatos de seguranza). La Corte Suprema de entonces, de mayoría menemista, intentó legitimar las decisiones expropiatorias del Ejecutivo, pero la Justicia de Primera y Segunda Instancia siguió haciendo lugar a los amparos y declarando la ilegitimidad de las medidas. Luego el Gobierno fue dictando medidas tendientes a arbitrar entre ahorristas y banqueros y lentamente se llegó a acuerdos que significaron recuperar parte sustancial de los dineros reclamados. En cuanto al desprestigio de la Justicia, debe consignarse que estuvo fundamentalmente acotado a la denominada justicia federal, que era la encargada de juzgar a los funcionarios y perseguir la corrupción. Esa fue constituida en épocas del menemismo bajo un signo de marcado clientelismo político, (todavía no había concursos para la designación de magistrados). La mayoría de esos jueces ya han renunciado y los nuevos provienen de concursos cuya legitimidad no se ha cuestionado. En mi opinión, para concluir, durante la crisis del 2001/2, la ciudadanía buscó protección en la Justicia y, por lo general, la obtuvo”.
Em 2005, em Quito, a crise se desencadeou logo após a dissolução da Suprema Corte do Equador, colocada no seu epicentro, como um dos fatores políticos que lhe deram causa. Não se trata de forçar uma centralidade, mas de destacar que um apelo à defesa, à sua preservação e à renovação democrática passa necessariamente pela reconstrução das instituições políticas e judiciarias.
O trabalho organizado por Julio Zan, acima citado e a manifestação de Carlos Cárcovatêm por motivação o tremendo embate que se abriu na Argentina após as interpelações que se fizeram na Venezuela, no Equador e agora no Perú. Elas afetam os Tribunais Constitucionais, os Tribunais Eleitorais e as Supremas Cortes, mas também o Executivo e o Legislativo, até chegar ao “fora todos”.Nesses países, foram essas circunstâncias limite, lembra Zan,os determinantes que levaram “amplos setores da própria magistratura argentina a compreender a necessidade de encarar uma profunda renovação ética da justiça e trazer a instituição para mais perto da cidadania”. E neste momento, a trazer a cidadania para o centro do protagonismo que rejeita a austeridade concentradora a serviço da acumulação das elites, conduzindo com seu protagonismo eleitoral uma retomada democrática de um sistema de mais efetiva dignidade distributivista, como parecem indicar as eleições em curso.
No Brasil, o cansaço e a decepção parecem também conduzir a um despertar de um protagonismo prestes a eclodir. Aos poucos vai se revelando um cancro institucional que se enquistou na tessitura democrática da política e contaminou a própria história do País. Uma cumplicidade nefasta, ardilosa, traiçoeira ampliou-se nessa tessitura numa metástase dilaceradora. Setores institucionais e do sistema de justiça engolfaram-se na necropolítica que produz a exceção. Julgavam-se aliados num arranjo semelhante a um partido. Não são, agora se revela, correligionários, são cúmplices, sacrificam a ética funcional configurada como “filigrana jurídica” no descaminho da política e, em última análise, da Justiça. Seu crime é de lesa-pátria e de lesa-Constituição, imprescritível, imperdoável, inapagável.
Para estes que deram um mergulho sem volta no abismo da iniquidade política, que atravessaram a metade do rio contra a corrente da dignidade e da lealdade com o povo: Que se vayan todos!
*Atualmente em programa de visita acadêmica junto ao IIDS (Instituto Internacional Derecho y Sociedad), Lima, Peru (Programa de Cooperação Interinstitucional UnB/CEAM/Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania e IIDS).
quinta-feira, 5 de setembro de 2019
Immanuel Wallerstein: In Memoriam
Republicamos aqui o in memoriam que o CES (Centro de Estudos Sociais) da Universidade de Coimbra preparou em homenagem a um dos mais importantes sociólogos e filósofos contemporâneos. O texto é de Boaventura de Sousa Santos.
Wallerstein é doutor Honoris Causa pela Universidade de Brasília, título concedido pelo Conselho Universitário em cerimônia que tive a honra de presidir em 2009 (JG).
https://ces.uc.pt/pt/agenda-noticias/destaques/2019/immanuel-wallerstein
IN MEMORIAM
Immanuel Wallerstein
A morte de Immanuel Wallerstein é uma perda irreparável para as ciências sociais. Foi, sem sombra de dúvida, o mais notável sociólogo norte-americano do século XX e o de maior projecção internacional. O seu maior mérito foi ter levado gerações sucessivas de sociólogos a deixarem para trás a unidade de análise em que se tinham treinado (as sociedades nacionais) e a debruçarem-se sobre o sistema mundo ( a economia-mundo e o sistema de estados soberanos). Na esteira de Fernand Braudel, Wallerstein estava convencido de que as dependências e interdependências crescentes no sistema mundial faziam dele a unidade de análise donde se poderiam gerar melhores hipóteses de trabalho para o estudo das próprias sociedades nacionais. Esta ruptura analítica criou-lhe muitas incompreensões nos EUA. Mas, como era um intelectual global e que lia as ciências sociais em várias línguas, ao contrário da maioria dos seus compatriotas, isso pouco o afectou. Conviveu com quase todos os líderes dos movimentos de libertação contra o colonialismo antes e depois das independências, e organizou projectos com os cientistas sociais desses países no sentido de ajudar a construir as novas comunidades científicas. Recordemos um caso em particular, o do Centro de Estudos Africanos da recentemente criada Universidade Eduardo Mondlane, coordenado por Aquino de Bragança. Foi um sociólogo comprometido com o destino do mundo e, sobretudo, com o destino das populações mais vulneráveis, cuja libertação só seria possível numa sociedade pós-capitalista, socialista. Por essa razão, acompanhou-nos desde a primeira hora no Forum Social Mundial, de 2001 a 2016, ano em que, pela última vez, estivemos juntos.
A sua atitude científica levou-o questionar todo o pensamento ocidental eurocêntrico, uma das muitas afinidades que nos uniram. Guardo com carinho, do início das nossas relações, a leitura generosa que Immanuel fez de um livrito de reflexões epistemológicas que eu acabara de publicar: Um discurso sobre as ciências (1987). De imediato se propôs publicá-lo em Review, a prestigiada revista do Fernand Braudel Center, de que era então director, na Universidade de Nova Iorque-Binghamton. Pouco depois, dirigiu um grande projecto internacional com profundas preocupações epistemológicas anti-eurocêntricas financiado pela Fundação Calouste Gulbenkian, o qual intitulou “To Open the Social Sciences”.
Foi muito intensa a relação de Immanuel Wallerstein com o Centro de Estudos Sociais da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra. Um dos nossos professores e investigadores, Carlos Fortuna, tinha já feito o doutoramento em Binghamton sob a sua orientação. Numa das primeiras visitas de Wallerstein ao CES, discutimos amplamente a relevância do conceito de semiperiferia para caracterizar países como Portugal. Acontece que este e outros países situados na Europa tinham características sociais muito distintas das de países semiperiféricos em outros continentes. Começou aí o nosso trabalho de reformular a teoria da semiperiferia de modo a adequá-la à nossa realidade, o que viria a resultar num dos modos mais frutuosos de analisar a sociedade portuguesa. Foi por nossa iniciativa que a Universidade de Coimbra teve a honra de lhe outorgar o Doutoramento Honoris Causa.
A melhor maneira de honrar a memória de Immanuel Wallerstein é continuar o nosso trabalho sem esquecer o entusiasmo, o profissionalismo e a forma brilhante como soube combinar objectividade científica e compromisso com os deserdados da terra, uma atitude que sempre procurou incutir em todos nós.