O Direito Achado na Rua: nossa conquista é do tamanho da nossa luta

quinta-feira, 10 de janeiro de 2019

Caminhos para (r)existir em 2019

Nas rachaduras cresce o novo; entra a luz / Foto: Reprodução Internet


Caminhos para (r)existir em 2019 



Entre as instituições e as transformações sociais almejadas há um vasto espaço
Por Camila Gomes*

“Como chegamos até aqui?” Passaremos, ainda, muito tempo tentando decifrar essa questão. 
Enquanto buscamos compreender, uma constatação se impõe e inquieta: essa distopia que estamos vivendo impacta de forma variada sobre as pessoas e comunidades. A depender do grau de vulnerabilidade social, ceifam-se vidas, liberdades ou horizontes. O impacto é diverso, mas o propósito é um só: extinguir as possibilidades de ser de cada um desses (que aos olhos do novo governo federal são considerados) “indesejáveis”.  
Dos que lutam por direitos e dos que defendem os que lutam por direitos, se ameaça extinguir a vida ou privar-lhes da liberdade. Acontece que lutar por direitos é mais do que uma condição, mais do que um estado temporário, é um projeto de vida, uma forma de ser e estar no mundo. 
O "ser" é o alvo
A luta das comunidades indígenas e quilombolas por seus territórios não é uma luta por propriedade, é a reivindicação da possibilidade de ser enquanto sujeitos e coletividade. E é isso o que o novo governo federal pretende exterminar. A luta por trabalho digno é parte de um esforço histórico de se afastar do paradigma da escravidão, que significa a apropriação do tempo, do corpo e da vida dos trabalhadores e trabalhadoras. A possibilidade de ser, e somente se pode ser com dignidade, é o alvo do novo governo, não como algo a ser alcançado, mas abolido. 
Há, então, uma questão ainda mais inquietante do que a primeira, e a ela tenho dedicado minhas reflexões de final e começo de ano: como podemos continuar a ser dentro de um país em que as instituições têm como objetivo exterminar essas vidas e esses projetos de vida? 
Bem, é difícil não ter a “empatia” das instituições e não se sentir minimamente representada nos espaços formais de poder, não ver pessoas negras, mulheres, não enxergar espaço dentro da institucionalidade para falar de justiça social, diversidade, liberdade,  combate à fome e à desigualdade. 
É claro que temos brechas, “there’s a crack in everything, that’s where light gets in” (há uma rachadura em tudo, é aí que entra a luz), já diria Leonard Cohen. Temos parlamentares comprometidos com essas vidas. Mais do que isso: na nova legislatura temos no Congresso Nacional representantes dessas vidas. Dentro do sistema de justiça, temos alguns (não são muitos, reconheço com tristeza) magistrados e magistradas comprometidos com o projeto constitucional. 
Essas brechas, no entanto, não alteram esta que é uma constatação irremediável: perdemos espaço dentro da institucionalidade. E, sem a institucionalidade, o que nos resta? Sem lugar nos espaços formais de poder, o que nos sobra? 
Muito, muito mesmo! 
Entre as instituições e as transformações sociais almejadas há um vasto espaço, uma imensidão de espaço, onde nos encontramos, com a nossa capacidade e infinitas possibilidades de construção dos nossos projetos de vida e de sociedade. 
O texto da Constituição não assegura, por si, o respeito aos direitos. Essa é uma batalha cotidiana que se dá, e sempre se deu, fora da institucionalidade. Às vezes, com apoio das instituições, em outras, de modo paralelo, e em muitas ocasiões, inclusive, apesar das leis. Afinal, o que seria do princípio da igualdade, consolidado no texto constitucional, sem as nossas vozes erguidas diariamente contra a discriminação, sem as redes de apoio e proteção às vitimas de violência? O texto seria pouco. 
A atribuição de significado aos resultados produzidos nos espaços de poder (sejam leis, políticas públicas ou outros) é uma tarefa que nos pertence, enquanto sujeitos e sociedade. Essa tarefa, assim como a prática cotidiana de cuidado, de defesa dos direitos, está inserida nessa vastidão que separa as instituições das transformações sociais que buscamos. 
Alerta: este não é um convite a desistir das disputas sobre os espaços formais de poder. Afinal, as instituições, quando alinhadas com um projeto popular de país, tem a capacidade de potencializar as conquistas de um povo. É somente uma reflexão sobre as limitações desses espaços. Espaços formais de poder e a potência que somos enquanto seres humanos únicos e enquanto coletividade. 
Podem mudar as leis para que elas chancelem a desigualdade ou a violência, mas a alteração de leis não muda o nosso sentido de justiça, não apaga um firme propósito de combate às opressões. Temos, posso ver, um espaço imenso em que podemos continuar a ser, em que podemos levar adiante, sem pausa, projetos de vida comprometidos com justiça social, igualdade, diversidade e afeto. 
Continuaremos - é preciso! - buscando cravar os valores, registrados em nossa Constituição, nas entranhas do Estado brasileiro. Portanto, o convite que faço aqui é para que a gente renove e expanda o nosso compromisso diário de afirmação política dos direitos para todas as nossas relações, os nossos afetos, nosso trabalho, nossa vida como um todo. 
Esta é a nossa história enquanto Nação, este é um caminho que conhecemos, que está registrado em nossa ancestralidade. O que é a nossa cultura popular, senão o caminho encontrado pelo povo brasileiro para resistir e existir dentro de uma sociedade que lhes negava a possibilidade de ser? O espaço da arte e do pensamento é infinito, o espaço da interação social e dos afetos, também. Temos um vasto espaço para vivenciar e afirmar a nossa humanidade. Existir nos tempos vindouros, como tudo o que somos e queremos ser, é uma forma de resistir. 
Que em 2019 sejamos, com tudo o que somos e com tudo o que queremos ser, enquanto gente, enquanto povo. Que possamos viver todo e cada dia com mais alteridade, diálogo, mais mãos dadas e exercitando o estender de mãos. Possamos amar, mais e melhor.
Feliz ano novo!
Camila Gomes é advogada, integrante da Rede Nacional de Advogados e Advogadas Populares (Renap) e coordenadora do Núcleo de Direitos Humanos do Escritório Cezar Britto & Advogados Associados.
Publicado originalmente no site Brasil de Fato

domingo, 6 de janeiro de 2019

Universidade pública, autonomia e liberdade de ensinar: valores que a constituição de 1988 consagrou

José Geraldo de Sousa Junior
O que mais se projeta da Constituição no tempo presente, é a promessa ainda não realizada de concretizar direitos em percurso instituinte, aqueles que, conforme o parágrafo segundo de seu artigo quinto, derivam do regime e dos princípios que moldam a arquitetura da própria Constituição, notadamente os que se fundam no movimento solidário e mundializado de afirmação dos direitos humanos solenemente declarados há 70 anos.
A Constituição é ainda o projeto de construção de uma sociedade que se comprometa com a superação das desigualdades, da pobreza que exclui, aliena e desumaniza, que rompa com o atraso colonialista que infantiliza, tutela, espolia e oprime o trabalhador (subalternização pela classe), o gênero (subordinação patriarcal da mulher e segmentos identitários) e as etnias (desumanização pelo racismo e pelas discriminações de todos os matizes). Ela é ainda a promessa de instituição de um projeto de sociedade que supere a cultura do favor enquanto aponta para a construção de uma sociedade plural, fundada na dignidade, na cidadania e nos direitos.
Numa manifestação de caráter celebratório acerca de marco tão simbólico quanto o de 30 anos de continuidade constitucional, o mais longevo no período pós-colonial brasileiro, nele incluído o tempo republicano, é quase natural que um antigo dirigente universitário pense a Constituição pelo modo como ela designou entre seus valores e princípios aqueles que dão relevo a universidade: a liberdade de ensinar, a autonomia institucional e a educação superior como um bem público.
Começando por esse último enunciado é sempre bom lembrar que a retomada política da tensão entre o público e o privado, que agora se assiste quando se examina os fundamentos das reformas em curso, notadamente desde a PEC de Teto de Gastos voltada para assegurar financiamento de desempenho econômico-financeiro às custas de investimentos sociais – saúde, educação – recoloca o impasse que em 1988 dividiu os engajamentos sobre serem tais bens, sociais, públicos, responsabilidade do Estado, ou privados, deixados à dinâmica apropriadora, acumuladora,  movida por interesse do Mercado.
Essa tensão, que na saúde opôs os debates entre a OMC – Organização Mundial do Comércio e  a área de Direitos Humanos da ONU, representando os debates da Conferencia da OMC em Doha, em 2001, em embates cruciais para preservar contra os interesses econômicos do Mercado  (Propriedade Intelectual, Patentes, Concorrência) contrastes éticos formidáveis que puseram em causa a necessidade de acesso a medicamentos essenciais, sobretudo em países em desenvolvimento, fazendo sobressair fundamentos prevalentes destinados a salvaguardar a saúde pública. Isso se revela na Constituição de 1988, fazendo incidir como valor a saúde como direito de todos e dever do estado.
Não é coincidência que esse impasse retorne agora quando se busca extrair da “velha” Constituição uma outra Constituição modelada nas reformas em curso, não só no quesito saúde, mas também no requisito educação. Aqui, o pano de fundo da questão é o mesmo. Também a educação e com mais nitidez a educação superior, é tensionada sob esse terrível cabo de guerra.
Em 2002, na cidade de Porto Alegre, ainda sob o impacto da resolução adotada naquele ano pela mesma OMC, de incluir a educação superior como um serviço comercial regulado no marco do Acordo Geral de Comércio de Serviços (GATS, sigla em inglês), Reitores de Universidades Públicas Ibero-Americanas, autoridades governamentais e especialistas se reuniram na III Cumbre de Reitores dessas universidades para discutir os perigos postos pelo modelo neoliberal de mercado. Tratava-se de analisar as ameaças às universidades públicas e a globalização, num encontro radical que teve como eixo a educação superior frente a Davo.
A Cúpula e a obra vêm a registro para, entre as muitas e agudas reflexões, chamar a atenção para o texto de Marco Antônio Rodrigo Dias, ex-professor da UnB e quadro da UNESCO, e seu ensaio A OMC e a educação superior para o mercado.
Em seu estudo, para o qual carreou cifras inimagináveis levantadas entre outras agencias pelo banco de negócios norte-americano Merril Lynch, o professor Marco Antonio Dias afirma que o mercado mundial de conhecimento, somente através da Internet foi calculado para o ano de 2000, em 9,4 bilhões de dólares, tendente a alcançar 53 bilhões no ano de 2003. E, de acordo com as mesmas fontes, o valor da comercialização de produtos vinculados ao ensino superior nos países da OCDE foi da ordem de 30 bilhões de dólares em 1999. Para o professor, com base nessas informações pode-se dizer que a importância dos serviços, o que vai muito além da educação, representa, na economia norte-americana, dois terços de seus resultados e 80% de seu mercado de emprego.
Esses dados, diz o professor representam números inacreditáveis e, à medida que novos dados são analisados, se constata que todos são extraordinários.E, para os que relutam em aceitar a prioridade ao comércio sobre os direitos humanos, a capacidade dos países de formar seus cidadãos conscientes e com capacidade critica estará efetivamente condenada, se o que rege as ações é uma concepção que dá prioridade aos aspectos comerciais. [1]
A Constituição de 1988 é a expressão de uma formidável mobilização da comunidade acadêmica e da sociedade civil, que se orientou pelo conceito do papel social que a universidade realiza e de que a educação é um bem público e mesmo quando se realiza de modo privado, por impulso de mercado, não pode delirar dos valores que o Constituinte levou para o seu texto. Esses princípios são corolários de duas institucionalidades fundamentais, que a Constituição de 1988 sufragou e que reclamam a sua defesa intransigente já por lealdade à soberania popular que se manifestou de modo constituinte, já por compromisso histórico conforme acima acentuado: a autonomia universitária e a liberdade de ensinar.
A responsabilidade dessa exigência de defesa da autonomia e da liberdade de ensinar, se imbrica na responsabilidade de defender a Constituição e a estimá-la. Resistir aos movimentos desconstituintes e com eles, a redução dos espaços autônomos das universidades, uns e outros, seguidamente afetados, interrompidos.
Disso trata livro de Amanda Travincas originado de tese premiada pela CAPES no ano de 2015, em ciências sociais e humanidades. [2] O livro de Amanda portanto, e a bem estribada fundamentação que ele traz, se constitui numa âncora formidável para apoiar a resistência necessária contra as recalcitrâncias abusivas que ainda se obstinam no obscurantismo e  na objeção turrona hostil à inteligência, em tentativas ocasionais de intervir nas universidades. Felizmente, por enquanto,  essas ocorrências têm sido rejeitadas, algumas liminarmente arquivadas outras extintas em instancias de revisão. No geral tem prevalecido o reconhecimento de que os princípios enunciados no inciso II, do artigo 206, da Constituição Federal salvaguardam a cátedra ao estabelecer que fazem parte do conteúdo da educação: a liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber.

Os 30 anos da constituição e a universidade pública: desafios e tarefas da conjuntura

Em boa medida os desafios e as tarefas que se colocam na conjunta, em face dos impasses que põem a Constituição numa encruzilhada, implicam em tomar consciência e posição, ao que Boaventura de Sousa Santos, desde escritos anteriores e mais recentemente caracterizou como assedio neoliberal às universidades : “A ideia de que o único valor do conhecimento é o valor de mercado é o que irá matar a universidade. Uma universidade que é ‘sustentável’ porque financia a si mesma é uma universidade insustentável como bem comum, porque se transformou em uma empresa”. [3]
Para ele o presente, controlado pelo neoliberalismo, é uma época plena de perigos para a universidade pública: em face do ciclo global conservador e reacionário, isto é, o domínio total do capital financeiro”. O projeto neoliberal, segundo ele, busca a construção de um capitalismo universitário”: “Começou com a ideia de que a universidade deveria ser relevante para criar as competências que o mercado exige”, seguiu com as propostas de tributação e privatização. “A fase final é a ideia de que a universidade dever ser ela mesma um mercado, a universidade como empresa”. Se a universidade é uma mercadoria a mais, precisa ser medida: daí os rankings globais.
Por isso, a ideologia neoliberal colide assim com a ideia de “universidade como um bem comum”, uma das conquistas obtidas a partir da Reforma de Córdoba (1918). “É um momento difícil por várias razões, e uma delas é que não há um ataque político, mas, sim, um ataque despolitizado. É um ataque que tem duas dimensões: cortes orçamentários e a luta contra a suposta ineficiência ou corrupção, uma luta muito seletiva, porque se sabe que as universidades públicas são em geral muito bem gerenciadas em comparação com outras instituições.
Conforme Boaventura três razões pelas quais a universidade é um alvo desejado pelo regime neoliberal:
Sua produção de conhecimento independente e crítico questiona “a ausência de alternativas que o neoliberalismo tenta produzir em nossas cabeças todos os dias. Se não há alternativas, não há política, porque a política é só alternativas. É por isso que muitas das medidas contra a universidade não parecem políticas, mas, sim, econômicas, os cortes financeiros, ou jurídicos, a luta contra a corrupção. O que está por trás é a ideia de que a universidade pode ser um fermento de alternativas e resistência”.
O pensamento neoliberal busca um presente eterno, quer evitar toda tensão entre passado, presente e futuro. E a universidade sempre foi, com todas as limitações, a possibilidade de criticar o presente em relação ao passado e com vistas a um futuro diferente”.
“A universidade ajudou a criar projetos nacionais (obviamente, excludentes dos povos originários) e o neoliberalismo não quer projetos nacionais. Por sua vez, a universidade sempre foi internacionalmente solidária, com base na ideia de um bem comum. Mas, o capitalismo universitário quer outro tipo de internacionalismo: a franquia, que as universidades possam comprar produtos acadêmicos em todo o mundo”.
Finaliza convocando o espírito de Córdoba e da Reforma de 1918, para pensar política e epistemológicamente modos de romper as limitações impostas pelo neoliberalismo e radicalizar a utopia democratizadora: a universidade, concluiu  deve se restituir, fazer um uso contra-hegemônico de sua autonomia e “transformar-se em uma pluriversidade, teórica e politicamente.
[1] DIAS, Marco Antônio Rodrigues. A OMC e a educação superior para o mercado. In BROVETTO, Jorge; ROJAS MIX, Miguel; PANIZZI, Wrana Maria (orgs). A Educação Superior Frente a Davos; La Educación Superior Frente a Davos. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2003.
[2] TRAVINCAS, Amanda Costa Thomé. A Tutela Jurídica da Liberdade Acadêmica no Brasil. A liberdade de ensinar e seus limites. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2018.
[3] Exposição na Conferencia Regional de Educação Superior da América Latina e o Caribe. Córdoba: CRES, 2018.
José Geraldo de Sousa Junior é professor titular da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília.