Boaventura de Sousa Santos*
O resultado das eleições desta semana mostrou a necessidade de novas estratégias para que as esquerdas sobrevivam e consigam ampliar seu público. Para isso, o sociólogo português Boaventura de Sousa Santos, professor da Universidade de Coimbra, Portugal, defende que a esquerda precisa parar de falar para os convertidos e começar a estudar elementos importantes a uma grande parcela da população brasileira.
"A esquerda tem de abandonar a obsessão das reuniões secretas e de linguagem altamente codificada que só converte os convertidos. Têm de estudar as estratégias das igrejas neopentecostais para aprender o que se deve e o que não se deve fazer".
Para ele, o erro do PT nos últimos meses foi "foi ter subestimado a eficácia da demonização do petismo" e ter mirado apenas para o potencial de voto a Lula, sem refletir sobre novas oportunidades.
A entrevista é de Marina Gama Cubas, publicada por CartaCapital, 01-11-2018.
O sociólogo, autor do livro A difícil democracia e Esquerdas do mundo, uni-vos! (editora Boitempo), destaca ainda que os movimentos sociais podem ser uma das saídas para os problemas das esquerdas no Brasil. "Os movimentos sociais são a chave para a reinvenção das esquerdas e são o seu grande teste para a capacidade de elas prevalecerem num contexto hostil. Os movimentos sociais são os territórios físicos, sociais e culturais onde as esquerdas se podem curar tanto do sectarismo como do entreguismo".
Eis a entrevista.
O que significa a vitória de Bolsonaro?
Significa a prova cabal de que sistema político brasileiro precisa ser profundamente reformado. Tal como está: transforma o compadrio, a corrupção, as alianças perigosas, a incoerência política e a confusão ideológica em condições incontornáveis de governabilidade; promove o isolamento das elites partidárias em relação às privações e aspirações das grandes maiorias sobretudo das mais pobres ou mais vulneráveis à discriminação e à violência; não permite que os três órgãos de soberania (Executivo, Legislativo e Judiciário) exerçam os seus poderes com contenção, ou seja, sem violarem gravemente as competências de uns de outros.
Essa escolha diz o que sobre a sociedade brasileira? E sobre os partidos políticos que se apresentam hoje?
Diz que a sociedade brasileira é uma sociedade que apresenta uma combinação tóxica de três tradições de desigualdade e discriminação: capitalismo, colonialismo e hetero-patriarcado. A história continua a pesar demasiado para o Brasil poder deixar de ser o eterno país do futuro. E depois destas eleições o futuro ficou ainda um pouco mais distante do presente. Mas as últimas semanas também mostraram que os democratas brasileiros têm mais apego à democracia do que o registrado pelo Latinobarómetro. O medo não matou a esperança.
Como o campo progressista brasileiro pode se organizar para que um novo paradigma de senso comum, crítico e racional permeie o processo decisório popular brasileiro?
O Brasil é hoje um laboratório de significado mundial. Está a mostrar que a democracia liberal representativa não se sabe defender dos antidemocratas. Para se defender tem de se articular com a democracia participativa. Para isso o campo progressista tem de voltar aos territórios onde gente digna sobrevive em condições indignas. Tem de abandonar a obsessão das reuniões secretas e de linguagem altamente codificada que só converte os convertidos. Têm de estudar as estratégias das igrejas neopentecostais para aprender o que se deve e o que não se deve fazer. E tem sobretudo de recuperar a memória dos círculos de cultura e das comunidades eclesiais de base.
A atmosfera social brasileira durante o processo eleitoral deflagrou episódios de violência motivados e potencializados pelo discurso de intolerância. Segundo o filósofo Karl Popper, a tolerância ilimitada leva, paradoxalmente, ao desaparecimento da tolerância. Como a sociedade brasileira pode estabelecer limites às ondas de intolerância?
A tolerância é um termo pernicioso apesar de popular. A gente só tolera o intolerável, aquilo com que nada partilhamos nem com que nos podemos enriquecer. O problema é outro, é o da cultura de convivência democrática com a diferença política, social, cultural e comportamental. O problema é o reconhecimento do direito mais fundamental: o direito a ser iguais quando a diferença nos inferioriza e o direito a ser diferentes quando a igualdade nos descaracteriza.
Tentando fazer uma distinção entre os erros das partes, na opinião do senhor, quais foram os principais equívocos do PT e quais foram os de Fernando Haddad nessa eleição?
O maior erro do PT foi ter subestimado a eficácia da demonização do petismo. Eu compreendo o erro. Um partido que sempre governou com a direita dificilmente poderia imaginar que pudesse ser identificado com o "perigo comunista". O PT apenas valorizou que Lula da Silva era o candidato mais popular nas sondagens. Negligenciou que logo abaixo dele estava Bolsonaro, a versão mais primária e visceral do ódio ao PT tão laboriosamente construído pela Globo.
Acredita que o nome de Haddad saiu mais forte do pleito? Na sua opinião, ele tem chances de ser o novo nome no campo de esquerda e/ou progressista?
Saiu bastante mais forte sobretudo porque teve de tolerar uma partida tardia e afirmar uma identidade própria sem o apoio entusiasta de alguns setores do PT. Será certamente um novo nome se não for apenas um nome novo para um passado que, mal ou bem, foi rejeitado. Para isso, terá de entender que o tempo do hegemonismo partidário terminou. Só será um nome novo se souber articular-se de forma leal e horizontal com outros nomes novos, nomeadamente com a Manuela D'Ávila, o Guilherme Boulos e a Sonia Guajajara.
Quais aspectos Haddad deveria melhorar em si mesmo para se tornar uma liderança política para a população nos próximos anos?
Tem apenas que continuar a ser o que sempre foi: um político honesto que usa a sua inclinação moderadora e moderada para unir as forças de esquerda e não para se unir às forças de direita que apenas o aceitarão enquanto o puderem usar, como aconteceu no passado recente.
O que deverá acontecer com a esquerda brasileira nos próximos anos? Ou no que precisam estar preocupados para sobreviver?
No Brasil como noutros países há várias esquerdas e todas elas têm pecado pelo sectarismo e pelo isolacionismo. No atual contexto tal tipo de conduta é o caminho para o suicídio. As esquerdas têm de voltar a ir para as periferias e para as retaguardas(não para as vanguardas onde a auto-congratulação é fácil e viciante) e têm de unir-se sem perder as suas respetivas identidades. Apenas muito cientes que o que as une é mais do que as separa. O que as une é elas serem no seu conjunto os garantes da continuidade da democracia. Isto é novo e difícil de fazer crer às próprias esquerdas mas é, em meu entender, o que decorre da natureza do ciclo reacionário em que globalmente nos encontramos. De maneira chocante, a direita brasileira vem-nos a dar desde 2015 (para me referir apenas ao período mais recente) um espetáculo triste e aterrador: só é democrática quando se pode servir da democracia para perpetuar os seus privilégios.
Os movimentos sociais que ressurgiram nessa eleição deverão perdurar ou ocorrerá certa resignação a partir de agora? Acredita que se manterão sem uma ligação fisiológica com os partidos políticos?
Os movimentos sociais são a chave para a reinvenção das esquerdas e são o seu grande teste para a capacidade de elas prevalecerem num contexto hostil. Os movimentos sociais são os territórios físicos, sociais e culturais onde as esquerdas se podem curar tanto do sectarismo como do entreguismo. Os movimentos sociais não têm um DNA de esquerda. Há movimentos sociais de extrema-direita.
* Extraído da Página de IHU (Instituto Humanitas): http://www.ihu.unisinos.br/584330-os-movimentos-sociais-sao-a-chave-para-a-reinvencao-das-esquerdas.
É urgente radicalizar o experimento democrático, pois "mesmo que você se apoie em baionetas, você não pode se assentar nelas". Entrevista especial com José Geraldo de Sousa Junior
É urgente radicalizar o experimento democrático, pois "mesmo que você se apoie em baionetas, você não pode se assentar nelas". Entrevista especial com José Geraldo de Sousa Junior
O jurista e ex-reitor da Universidade de Brasília José Geraldo de Sousa Junior é um pesquisador atento
às dinâmicas sociais, ao movimento das ruas e ao mundo das leis e das
instituições. Ele acompanha os riscos que afetam a democracia brasileira e as ameaças
que podem emergir das urnas. Mesmo assim, garante que seu sentimento “mais
recôndito” continua a ser o de se “sintonizar, de vibrar no diapasão do
movimento inexorável de emancipação dos sujeitos na história e na construção do
país”.
Em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line,
ele aponta três condições que seriam necessárias para “operar a transição entre
a ditadura
instalada no Brasil em 1964e a retomada de um governo civil comprometido
com a retomada da democracia”: anistia; constituinte; e
a memória e a verdade na política. Isso permitiria que se
realizasse uma Justiça de Transição, processo pelo qual seriam apuradas as
responsabilidades pelas violações e crimes contra a humanidade e os direitos
humanos, ao mesmo tempo em que houvesse reparação pelos “danos perpetrados
contra vítimas submetidas de todos os modos vis aos agentes e às estruturas
autoritárias”. O mais importante, ainda, seria “reeducar para a política e para
a cidadania”.
Na avaliação dele, o Brasil passou de
maneira limitada pelas duas etapas iniciais, mas “jamais aprofundou o resgate
da memória e da verdade na política, no máximo reparando,
mas recusando responsabilizar (verdade, mas não justiça)”. Lembra que, em
países vizinhos, “até generais e ex-presidentes autoinstalados nas insígnias de
poder foram submetidos a julgamentos e alguns morreram no cárcere cumprindo
penas”. No Brasil, “eles permaneceram intocados e agora se
reapresentam deseducados e ressentidos, com suas práticas antidemocráticas”.
O jurista admite que a democracia está em crise, “mas apenas em sentido dialético,
hegeliano, de tensão entre velho e novo que se coimplicam”. No seu
entendimento, a crise pode vir a ser de renovação, de transformação. “Ajudar o
novo a nascer e prestar exéquias ao velho, que assombra como espectro.” O
velho, no caso, “é a democracia liberal, censitária, patrimonialista,
de elites que se arrogam a titularidade do político”.
Ele entende que se atravessa uma crise da representação porque “há novos sujeitos, não
só homens, também mulheres; não só héteros, mas homoafetivos; não só brancos,
mas matizes étnicas diversas; não só católicos, mas cristãos de todas as
confissões e crenças de diferentes tradições; não só um povo identitariamente
hegemônico, mas uma plurinacionalidade; não só um modo de produção, mas
diferentes soluções para a produção e a reprodução da existência social”. Ao
pensar no limite da representação, afirma que “a urgência é a de
radicalizar o experimento democrático e atuar politicamente para uma governança
compartilhada que leve a uma contínua democratização da democracia”.
Por fim, permitindo-se uma fala mais pessoal, afirma que lhe
“cabe partilhar com os jovens” as suas angústias, “sem a elas sucumbir”. Na
conjuntura, reconhece que “há ainda o estertorar do velho enquanto o novo se agita”.
E conclui: “Permaneçam se assim for o caso, tristes na razão, mais se deixem
ser felizes no serviço e na ação política, para a transformação justa
do mundo”.
José Geraldo de Sousa Junior é graduado em Ciências
Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal -
AEUDF, mestre e doutor em Direito pela Universidade de Brasília - UnB, onde
leciona desde 1985 e foi reitor de 2008 a 2012.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – No primeiro turno desta eleição
presidencial, o candidato que finalizou à frente expressou em toda a sua
trajetória política e durante a atual campanha um posicionamento violento e
preconceituoso, opondo-se às instituições democráticas básicas. Um dos pontos
que mais se destaca é o enaltecimento da ditadura, da tortura e do primeiro
agente do Estado que a Justiça reconheceu como torturador. Como se chegou a uma
situação dessas? Por que a brutalidade como projeto político não está sendo veementemente
repudiada pela maioria dos eleitores?
José Geraldo de Sousa Junior – Tenho sustentado
que três condições seriam necessárias para operar a transição entre a ditadura
instalada no Brasil em 1964 e a retomada de um governo civil
comprometido com a retomada da democracia: a anistia,
a constituinte e a memória e a verdade na
política. Essas condições permitem realizar o que se denomina Justiça de Transição, que pressupõe apurar
responsabilidades e sancionar condutas que tenham implicado violações e crimes
contra a humanidade e os direitos humanos, reparar danos perpetrados contra
vítimas submetidas de todos os modos vis aos agentes e às estruturas
autoritárias e, mais importante, reeducar para a política e para a cidadania.
O Brasil passou limitadamente (a anistia
incluiu violadores; a constituinte não foi autônoma e contrabandeou membros do
sistema ditatorial) pelas duas etapas iniciais e jamais aprofundou o resgate
da memória e da verdade na política, no máximo reparando, mas
recusando responsabilizar (verdade, mas não justiça). Nos países vizinhos, até
generais e ex-presidentes autoinstalados nas insígnias de poder foram
submetidos a julgamentos e alguns morreram no cárcere cumprindo penas. No Brasil,
eles permaneceram intocados e agora se reapresentam deseducados e ressentidos,
com suas práticas antidemocráticas. Basta ver o discurso que os
aglutina. Sua última expressão foi afirmar um objetivo que reponha o país no
modelo de 40 anos atrás.
A educação para a democracia é necessariamente uma
educação para a cidadania e para os direitos humanos - José Geraldo de
Sousa Jr.
A educação para a democracia é
necessariamente uma educação para a cidadania e para os direitos humanos, tanto
mais necessária quando esse autoritarismo hierarquizante inculcado
em nossa mentalidade não supera em nós a sua origem ainda não expurgada do
colonial, com seus vícios de um modo corrupto de exercitar a política, o
mandonismo, o clientelismo, o filhotismo, o cunhadismo, o nepotismo, o
coronelismo, o patrimonialismo; e com seu limites político-sociais, o racismo,
o domínio de classe e a misoginia. Muitos eleitores se reconhecem nessa
identidade comum.
Esses fatores não se realizam no espontâneo das interações
intersubjetivas do social, ganham contornos por meio de instituições – a
escola, as igrejas, o governo, o Judiciário, a prática parlamentar, as
corporações e, sobretudo, os meios de comunicação – que contribuem para
recalcar e para amortecer expectativas emancipatórias já emergentes num social
que aspira transformar-se pela ação democrática de seus movimentos críticos e
contestatórios do status quo.
IHU On-Line – Nos últimos anos, observa-se uma judicialização da política. Por que os
magistrados assumiram esse protagonismo e qual o efeito dessa situação?
José Geraldo de Sousa Junior – Tratei desses
temas em debate acerca do papel e das funções de juízes e do Judiciário, em
seminário realizado na última década do século 20, e posteriormente em livro de
cuja organização participei [padre José Ernanne Pinheiro, José Geraldo de Sousa Junior, Melillo
Dinis e Plínio de Arruda Sampaio (orgs). Ética,
Justiça e Direito. Reflexões sobre a reforma do Judiciário, Rio de Janeiro:
Editora Vozes, 1ª. edição, 1996], mostrando que as profundas alterações que se
dão na sociedade e nos valores que estruturam as bases éticas das instituições afetam
igualmente o Judiciário e os juízes, postos diante da necessidade de
compreender essas mudanças. O claro esgotamento do modelo ideológico da cultura
legalista da formação dos juristas e da função adjudicatória que lhe é
consequência, caracterizando o agir dos magistrados – quando já entre eles se
assiste a um franco questionamento ao papel e à função social que exercitam –,
não poucas vezes tem empurrado seus principais órgãos e operadores à inusitada
situação identificada pelo sociólogo Boaventura de Sousa Santos, segundo a qual, “faz-se da lei
uma promessa vazia”.
Elas também interpelam os agentes públicos responsáveis pela
formulação de políticas públicas legislativas, funcionais e judiciárias, na
medida da oferta de análises críticas às modernizações meramente funcionais do
aparato, sem levar em conta novas subjetividades sociais que abrem perspectivas
para outros modos de considerar o próprio direito ou a estabelecer soluções não
judiciais e até mesmo comunitárias para conhecer, mediar e resolver conflitos.
Um pouco desse processo pode ser demonstrado nos estudos que
compõem a série Pensando o Direito, que a Secretaria de Assuntos
Legislativos, do Ministério da Justiça, promoveu em seus editais dirigidos aos
grupos universitários de pesquisa. Num desses trabalhos, que tive a
oportunidade de liderar (Observatório do Judiciário, Série Pensando o
Direito, UnB/UFRJ, PNUD/Secretaria de Assuntos Legislativos/Ministério da
Justiça, Brasília, nº 15/2009), foi possível estabelecer pesquisa com
assessorias jurídicas de movimentos sociais e extrair de suas observações a
visão negativa dos modelos adjudicatórios do sistema legal e judiciário, presos
às normas constituídas como unidade de análise das relações de conflito e
incapazes de realizar até mesmo as promessas constitucionais de realização da
justiça, entre outros fatores, pela “resistência a trabalhar com o direito da rua”, pela “baixa sensibilidade para as demandas
da comunidade”, pelos “limites culturais para a percepção de sujeitos e
demandas inscritas nos conflitos sociais”, pela manutenção de “corpo com
formação técnica desvinculada das experiências do mundo da vida”, pela “postura
institucional burocrática” e pela “pouca permeabilidade ao controle social”.
Em contrapartida, pediam esses prestamistas de uma Justiça
atualizada e modernizada para além do simplesmente
funcional-burocrático-legal: “respeito às temporalidades democráticas”,
“fortalecimento comunitário”, “educação em Direitos Humanos”, “uso dos meios de
comunicação”, “conscientização e sensibilização” e, em síntese, “reconhecimento
e acreditamento do protagonismo das experiências de mediação social realizadas
fora das instâncias estatais”. Remeto ao texto do relatório publicado no volume
indicado, especialmente, as ementas explicativas das categorias acima
destacadas, conforme as páginas 22, 23, 26 e 27 do Relatório, na página do MJ (acesse aqui).
As reformas do Judiciário em curso atingem o núcleo
central, funcional, organizativo do sistema de Justiça como estrutura de poder,
mas não o abre à participação social democrática - José Geraldo de
Sousa Jr.
No fundo, o que está em causa não é só reivindicar acesso
à justiça, mas um repensar e reorientar a própria concepção de
justiça para a qual ter acesso. E isso não pode ocorrer sem que se
abra o tema à participação popular porque, como eu próprio já afirmei, as
reformas do Judiciário em curso atingem o núcleo central, funcional,
organizativo do sistema de Justiça como estrutura de poder, mas não o abre à
participação social democrática. O tipo de acesso à Justiça que tem sido
debatido é ainda o “acesso a um sistema de justiça patrimonialista, sexista, patriarcalista, que
criminaliza os movimentos sociais”. Uma reforma do Judiciário de raiz
precisa ser construída pelos movimentos sociais, e, neste sentido, requer abrir
espaços de articulação das grandes pautas que envolvem a democratização da
justiça (acesse aqui o texto Reforma do Judiciário precisa de participação popular).
IHU On-Line – O STF, na condução das questões relativas à
atual crise política, vem demonstrando que postura? Essa conduta está correta?
José Geraldo de Sousa Junior – Para responder a
essa linha de interpelação, remeto a comentário que fiz em coluna no
jornal Estado de Direito sobre pesquisa recente, Porteiro ou Guardião? O Supremo Tribunal Federal em Face aos
Direitos Humanos, estudo coordenado e redigido por Antonio Escrivão
Filho, atendendo a termo de referência formulado pela Articulação
Justiça e Direitos Humanos - JusDH.
Com efeito, desde a sua tese de doutorado defendida na Universidade
de Brasília - UnB, a que se pode ter acesso pelo Repositório de Teses da
UnB [Mobilização social do direito e expansão política da justiça: análise
do encontro entre movimento camponês e função judicial. 2017. 315 f., il.
Tese (Doutorado em Direito) – Universidade de Brasília, Brasília, 2017], Escrivão
Filho oferece o resultado de uma pesquisa que tem por objeto o
fenômeno de encontro entre o movimento social e a função judicial no Brasil,
analisando a experiência do movimento camponês a partir da década de 1980, com
foco empírico (primário e secundário) e bibliográfico nos conflitos
fundiários e noMovimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra - MST,
observando a sua capacidade de reivindicação e mobilização constitutiva
(criação) e instituinte (efetivação) de direitos.
Neste cenário, segundo o resumo do trabalho, observa-se
um fenômeno de expansão política da sociedade brasileira, e com ela uma
dialética de expansão política do direito, no bojo da ativação social dos
direitos fundamentais. De modo complementar, neste período observa-se ainda a
densificação das funções de controle judicial sobre a sociedade e os entes
estatais, o que, por via de consequência, proporciona uma potencial transferência
da deliberação de assuntos de elevada intensidade política para a arena
judicial – como a relação ‘Estado-sociedade’ inscrita nos direitos fundamentais
– culminando, enfim, no fenômeno identificado pela noção de expansão política
da justiça. Identifica-se, assim, que a análise da mobilização social do
direito realizada pelo movimento camponês, e o respectivo padrão de
enfrentamento judicial com proprietários, tanto pode ser melhor analisada sob o
enfoque da expansão política da justiça, como fornece elementos para a própria
compreensão do fenômeno da expansão judicial no Brasil, a partir do regime de
enunciado democrático.
Esse é o mesmo cenário, embora alargado em alcance
histórico e político, no qual Escrivão, aqui denominando contexto, instala sua
análise sobre o Supremo Tribunal Federal em face dos direitos humanos.
Trata-se, diz ele, de reconhecer a política como o campo constitutivo (de
criação) e instituinte (de efetivação) de direitos, a partir do que antigos e
novos movimentos sociais, urbanos e rurais, comunitários e eclesiais, locais e
nacionais, de gênero e étnico-raciais entram em cena, primeiro deslocando o
lócus da ação política dos espaços institucionais para achá-la na rua, espaço
público por excelência, depois, ocupando também os espaços institucionais para
então disputar a participação no próprio processo constituinte de 1987-88.
Assim que, se não parece possível afirmar a existência de um regime democrático
sem direitos fundamentalmente referidos à cidadania – ou seja, às garantias de
dignidade, bem-estar social e participação ativa na vida política da sociedade
– não soaria lógico conceber um regime de direitos sem identificar que, por
detrás da sua conquista, traduzida em reconhecimento jurídico-institucional,
estão os sujeitos que irromperam a história, superando violências, exploração e
opressões cotidianas para, a cada novo momento, a cada nova emergência em luta
social, afirmar novos direitos.
Pensando, pois, os direitos e principalmente os direitos
humanos, como a resultante política das lutas concretas pela dignidade, nesse
contexto, para o autor, de pouco ou nada adianta o reconhecimento
jurídico-normativo de novos direitos, se ele não for acompanhado por uma
equivalente e muitas vezes drástica transformação dos órgãos estatais, institucionalmente
desenhados e politicamente delegados para o exercício das funções de proteção,
defesa e efetivação de direitos.
Esse é o contexto em que se constitucionaliza o sistema de Justiça e o próprio Supremo
Tribunal Federal, num descompasso que a pesquisa identifica, entre as
expectativas instituintes da soberania popular e as recalcitrâncias
constitucionalizadas de aparatos institucionais pouco afeitos à necessidade de
seu desenho em trânsito democrático. Razão pela qual o autor vai configurar o
contexto de institucionalização do sistema de Justiça e
do Supremo Tribunal Federal, com uma anotação incisiva
relativamente a tal descompasso.
Em outras palavras, ele diz a positivação de
direitos e até mesmo de direitos humanos desfaz-se em encantos e ilusões
imobilizantes se, de um lado, não conta com um processo social de tomada de
consciência, reivindicação e mobilização instituinte e, de outro, não encontra
uma institucionalidade concebida, organizada e culturalmente comprometida com a
proteção e efetivação destes direitos. De pouco ou nada adianta novos direitos,
se a institucionalidade responsável pela sua implementação (Executivo), regulação
(Legislativo) e aplicação (Judiciário) não os acompanhar no processo histórico
de mudança política.
Estará o Supremo à altura de se confirmar
guardião da Constituição? Pesquisa de opinião popular realizada em
maio de 2018, pela CNT/MDA, sobre o comportamento do Poder Judiciário brasileiro, trouxe resultado inédito
e alarmante. Para a pergunta “o que você acha da justiça brasileira?”, 55,7%
responderam que acham ruim ou péssima; 33,6%, regular; e somente 8,8%
aprovaram. A pergunta “como você acha que ela trata as questões de justiça?”, 90,3%
acreditam que ela não trata todos iguais e apenas 6,1% acham que ela trata
todos iguais e é justa.
Mas não se pode tolerar ou se deixar conduzir pela
disposição fascista, autoritária, de simplesmente desconstituir o Tribunal e de
modo sumário criminalizar ministros, seus membros, conforme gralham agora os
corvos que ajudaram a criar - José Geraldo de Sousa Jr.
Se os números repercutem como sinal de alarme, outras
ocorrências factuais corroboram os sintomas de uma institucionalidade sob
desconfiança, em descrédito, percebida como partidária e parcial em sentido
político. Juízes da Suprema Corte sofrem escrachos em aviões,
restaurantes e nas ruas, no Brasil e no Exterior. Há notícias de ampliação do
sistema de segurança pessoal desses magistrados e há poucos dias se anunciou a
instalação, no aeroporto de Brasília, com alto custo, de sala especial para o
trânsito de ministros do STF, poupando-os de constrangimentos ou
ameaças, atormentados que se sentem em consequência de ventos que eles e elas
próprios semearam, prestes a cair-lhes por cima qual punho suspenso por ira
insatisfeita (Isaías, 10-3).
Ainda agora um recém-eleito parlamentar, vindo da caserna,
correligionário dessa visão de terra arrasada, fala em criminalização
de ministros do STF e revela uma plataforma para o expurgo
institucional que se avizinha. Mas não se pode, entretanto, tolerar ou se
deixar conduzir pela disposição fascista, autoritária, de simplesmente
desconstituir o Tribunal e de modo sumário criminalizar ministros, seus
membros, conforme gralham agora os corvos que ajudaram a criar.
O certo é que esse tipo de exposição acaba dissolvendo a
aura de intangibilidade que irradiava simbolicamente do Judiciário,
de tal modo que agora se desvenda uma realidade submersa que mostra entranhas
necrosadas ou em estado de deterioração no âmago do sistema de Justiça. Notícia
impactante informa que o Congresso peruanoaprovou recentemente
(20/7/2018), por unanimidade (118 votos), a destituição dos integrantes
do Conselho Nacional da Magistratura - CNM do país. Os sete
conselheiros do órgão estão envolvidos em um escândalo de corrupção atingindo
os mais altos níveis do Judiciário peruano.
O CNM tem funções similares ao Conselho
Nacional de Justiça - CNJ no Brasil, como a de melhorar a
gestão e fiscalizar o Judiciário. Em meio à crise, agudizada por
fortes protestos populares, o presidente do Supremo Tribunal do Peru acabou por
se demitir.
Assim, volta a aparecer nos discursos de crítica aos
sistemas de Justiça na América Latina a palavra de ordem que se
inscrevia em muros de várias cidades sul-americanas, nos anos 1990/2000: que
se vayan todos.
IHU On-Line – A democracia está em crise? Se sim, qual a
dimensão disso e como sair desse quadro crítico?
José Geraldo de Sousa Junior – Crise admito, mas apenas em sentido dialético,
hegeliano, de tensão entre velho e novo que se coimplicam. Crise, portanto, que
pode vir a ser de renovação, de transformação. Ajudar o novo a nascer e prestar
exéquias ao velho, que assombra como espectro. O velho é a democracia
liberal, censitária, patrimonialista, de elites
que se arrogam a titularidade do político. Portanto, crise da
representação. Porque há novos sujeitos, não só homens, também mulheres; não só
héteros, mas homoafetivos; não só brancos, mas matizes étnicas diversas; não só
católicos, mas cristãos de todas as confissões e crenças de diferentes tradições;
não só um povo identitariamente hegemônico, mas uma plurinacionalidade; não só
um modo de produção, mas diferentes soluções para a produção e a reprodução da
existência social. E porque também há distintas percepções sobre a equidade
distributiva que não seja subordinada ao egoísmo acumulativo do
controle dos excedentes da produção social.
O velho é a democracia liberal, censitária,
patrimonialista, de elites que se arrogam a titularidade do político. Portanto,
crise da representação - José Geraldo de Sousa Jr.
O limite da representação, no que ela seja apta a dar conta
de todo esse potencial de subjetividades tituláveis, é que a democracia já
produziu, inclusive no Brasil, experimentos de plena participação,
alguns dos quais mencionados no correr desta entrevista. Penso que a urgência é
a de radicalizar o experimento democrático e atuar politicamente para uma
governança compartilhada que leve a uma contínua democratização da
democracia.
IHU On-Line – Qual a importância dos movimentos sociais após a
redemocratização? Eles seguem vigorosos ou sofrem com as tentativas de
enfraquecê-los?
José Geraldo de Sousa Junior – Os movimentos
sociais continuam ocupando espaço público, a rua (por isso meu projeto contínuo
há 30 anos tem sido O Direito Achado na Rua). O problema é que eles lidaram com
o paradoxo de terem construído a plataforma de um modelo de governo democrático
de base popular. Ou seja, para sair da ditadura, os movimentos sociais ocuparam
a rua e na sua mobilização reivindicaram outro modelo de democracia.
Não mais representativa das excelências, mas a que ele, o povo, exercita na
forma da participação direta. E aí criou uma democracia que não é de delegados,
mas de presença ativa, que modificou as instituições. Porque o Congresso,
a Justiça e o governo foram obrigados a incluir na sua
estrutura administrativa outras formas de participação, tais como conselhos,
audiências públicas, planos de políticas públicas. E o povo experimentou essa
experiência até 2016 (final do governo Dilma Rousseff, que sofreu
impeachment) de que direitos se realizam diretamente pelo seu próprio
protagonismo. Caso contrário, viram promessas vazias.
E se me perguntam se a chegada de um governo ilegítimo e
as constantes retiradas de direitos não levariam a reduzir o poder de força
desses movimentos? A minha resposta continua a ser a convicção de que o povo
conquistou de tal modo esse espaço reivindicatório que o obscurantismo
do período colonial subjacente a esse processo reaparece num momento
de tomar do povo esse papel. O momento que a gente vive é essa tensão. Não é a
derrota do povo, mas a tentativa de tomar do povo o que ele conquistou. Tivemos
isso ao longo da nossa história, mas num contexto de passado em que a emergência
da cidadania, a cidadania do protesto, das mobilizações, vinha de uma
cultura de muita opressão.
Essa experiência histórica nos ensinou, claro, mas isso não
opera no vazio. A tensão existe e esse é o momento de recidivas do autoritarismo, de retorno das estruturas coloniais.
Não mais numa experiência de colonialismo, mas de colonialidade, que são
aquelas formas oligárquicas de exercício de privilégios pelas características
das elites que se originam daquela experiência e tentam, ainda, sufocar,
subordinar e adestrar. Mas o povo não é mais ingênuo no sentido de se
reconhecer num lugar subalterno. Tem a consciência de que sua capacidade social
é por definição vitoriosa.
IHU On-Line – O programa do PT propunha anteriormente uma nova Assembleia
Constituinte, e o vice-presidente da chapa de Jair Bolsonaro, general Mourão,
também falou da possibilidade de se fazer uma nova Constituinte. Entretanto, os
dois candidatos que disputam o segundo turno voltaram atrás acerca desse ponto.
Como o senhor avalia a discussão política em torno da Constituição? A Carta de
1988 dá conta das necessidades do país e contém mecanismos para o
fortalecimento da democracia?
A Constituição ainda é a promessa de superação da
cultura do favor, do apadrinhamento, do clientelismo, do nepotismo, do
cunhadismo, do prebendalismo, para o estabelecimento de uma sociedade plural,
fundada na dignidade, na cidadania e nos direitos - José Geraldo de Sousa
Jr.
José Geraldo de Sousa Junior – A pedido de minha
reitora, publiquei no dia 5 de outubro, no Portal da Universidade de
Brasília - UnB, um pequeno texto que, a propósito de marcar os 30 anos da
Constituição de 1988 e, ainda que orientado para celebrá-la na
perspectiva do ensino universitário público, parte de uma reflexão que leva em
conta a questão que a pergunta suscita.
No meu caso, é registrável todo o meu engajamento com
a Constituição, seu processo constituinte e as muitas intervenções
que realizei no sentido de valorizá-la e de defendê-la. Algumas dessas
reflexões se fizeram fortemente no espaço do IHU.
Nessas intervenções, o que mais tenho destacado é o legado
que se projeta da Constituição Federal brasileira no tempo
presente, vale dizer, a promessa ainda não realizada de concretizar direitos em
percurso instituinte. Direitos que, conforme o parágrafo segundo de seu artigo
quinto, derivam do regime e dos princípios que moldam a arquitetura da própria
Constituição, notadamente os que se fundam no movimento solidário e
mundializado de afirmação dos direitos humanos. Nesse sentido, a Constituição é
ainda o projeto de construção de uma sociedade que se comprometa com a superação
das desigualdades, da pobreza que exclui, aliena e desumaniza, do atraso
colonialista que infantiliza, tutela, espolia e oprime os trabalhadores pela
subalternização de classe, as mulheres e pessoas LGBTI, pela
subordinação heteropatriarcal, a população negra e os povos indígenas,
quilombolas e comunidades tradicionais pela desumanização, pelo racismo e pelas
discriminações de todos os matizes. É, portanto, a promessa de superação
da cultura do favor, do apadrinhamento, do clientelismo,
do nepotismo, do cunhadismo, do prebendalismo,
para o estabelecimento de uma sociedade plural, fundada na dignidade, na
cidadania e nos direitos.
A Constituição de 1988 contrapõe-se, assim, à afirmação
censitária, em benefício exclusivo dos homens letrados, de bem (porque
proprietários), heterossexuais assim declarados, confessionais, fascinados
pelos imperativos da acumulação possessiva de um sistema de mercado que tudo
coisifica, para se realizar, por meio das lutas sociais, na Constituição
Cidadã, que qualifica a democracia e a radicaliza pela participação popular
deliberativa, o controle social das políticas e das demais funções públicas,
nas formas previstas e inventadas, a partir da dinâmica desses processos que
configuram os direitos. Vale esclarecer que não se faz referência aqui a
direitos como quantidades estocáveis em prateleiras de um almoxarifado
legislativo, mas como relações sociais que se ressignificam em
experimentalismos emancipatórios.
Abertas às expectativas distributivistas e solidárias, para
a realização das esperanças e dos sonhos humanizadores da sociedade brasileira,
a Constituição oferece direção para nortear (ou melhor dizer,
sulear, em homenagem a Paulo Freire)
o trânsito político em momentos de crise, nas descontinuidades e nas tensões
sociais e institucionais próprias da república. Mas resta ainda, e muito
fortemente, o apelo à democracia como processo político de construção
permanente de direitos.
De fato, o pensamento crítico mais avançado tem
caracterizado a democracia como uma invenção, porque ela é a
possibilidade de criação permanente de liberdades e de direitos, por meio da
experimentação social e muitas vezes contra o já estabelecido. Podemos tomar
como exemplo a norma relativa à família e às relações que a formalizam, material
e subjetivamente, e observamos que o casamento vem sendo interpelado pela união
estável de afetos e a relação homem e mulher por outras formas conjugais não
confinadas à diferenciação sexual. Também sobre as variações relativas ao
acesso à propriedade, à terra e ao território, testemunhamos uma crescente
contraposição entre o invadir que criminaliza e o ocupar que politiza todo o
processo, em consequência da promessa constitucional de moradia e de reforma
agrária.
Direitos são promessas, mas não podem se tornar
promessas vazias. O apelo democrático do artigo 5º leva a essa consciência, ou
seja, a de que é a cidadania protagonista, ativa, insurgente, achada
na rua, o núcleo de uma subjetividade coletiva (porque de sujeitos
coletivos de direito), em movimentos (sociais e emancipatórios), a razão
legitimadora do processo político e realizadora contínua do processo de
afirmação de direitos já conquistados e de criação de novos direitos.
As duas posições levantadas na pergunta dão a medida dos
impasses que hoje confrontam a Constituição Federal de 1988, que se
inscrevia em um movimento de transição entre a ditadura instalada
em 1964, por meio do golpe militar, e as ações de
retomada da recuperação civil e republicana da política, em direção
a um projeto de reconstrução democrática no Brasil. A experiência dessa
transição, que se realizou por meio de lutas pela anistia,
pela Constituinte e pela memória, verdade e justiça, em um processo sem garantias,
exigiu uma postura de engajamento e resistência em face de diversas ameaças. As
energias utópicas acumuladas ao longo desse processo devem animar agora as
forças emancipatórias do social para se avançar, sem temer enfrentamentos, na
defesa da democracia brasileira. Afinal, estamos diante novamente de eventos que a ameaçam.
Pense-se, por exemplo, a edição do decreto legislativo para
suspensão da iniciativa do Executivo de constituir
procedimentos – como método de governança e de gestão – de medidas de abertura
e regulamentação dos instrumentos de participação na Administração
Pública, rechaçadas por seu caráter “bolivariano”. Ora, essas
medidas apenas cumpriam o já estabelecido na Constituição e em
leis, por meio da realização de conferências, da instalação de conselhos,
audiências públicas, comissões, gestão de planos, consultas, Amici
Curiae etc., formando assim um extenso leque de intervenções
vinculantes do social ao processo de governança, do Legislativo e da
administração da Justiça. Isso sem deixar de mencionar aquelas institucionalmente
previstas na Constituição, cujos frutos são notáveis, a exemplo das leis de
iniciativa popular, entre elas, a que resultou na constitucionalização do Direito
de Morar ou a de inabilitação eleitoral denominada “Lei da Ficha
Limpa”.
Mas ataques às práticas democráticas, como esse, guardam
continuidades com diversas iniciativas de reforma constitucional que
se chocam com o projeto inscrito em 1988, revelando estar em curso um movimento
duplo de desdemocratização e de desconstitucionalização no Brasil.
Tais reformas colidem violentamente com os princípios que orientaram o
esforço constituinte cidadão de 1988, na medida em que retiram
direitos, transferem ativos e reorientam o orçamento público em detrimento de
políticas sociais, de um lado, e em benefício do grande capital e da
estrangeirização das riquezas nacionais, por outro. Desse modo, vale reiterar,
essas são reformas que atentam contra a sociedade e a democracia brasileiras.
Nessa conjuntura, a Constituição Federal vem sofrendo um processo
de captura institucional para justificar a retirada de direitos, em vez de
cumprir seu mandato de instrumento mediador do direito – processo, de Direitos
Achados na Rua. Trata-se não de substituí-la, porque não há um momento
constituinte que justifique uma outra Constituição, mas dar-se
conta de que enfrentamos uma disputa ideológica e discursiva sobre sua
realização.
IHU On-Line – O senhor acredita na possibilidade de uma nova ditadura ser
implantada no Brasil? Por quê?
No dia do professor, a candidatura visita um símbolo
de repressão e grita alto e em mau som “caveira”, uma senha para os tempos
sombrios, para liberar os fantasmas dos porões - José Geraldo de Sousa
Jr.
José Geraldo de Sousa Junior – A ditadura está sendo claramente anunciadacomo objetivo
programático da plataforma de direita favorita, mas ainda não sufragada, nas
eleições em curso. E não é uma falácia se se tem em conta o percurso político e
biográfico das candidaturas (presidente e vice), e se se leva em consideração o
modo como a mentalidade intolerante e violenta que as práticas sociais mais
difundidas entre os adeptos dessa intenção claramente as percebem, acolhem e
reproduzem. É um desejo já não mais inconsciente de um fascismo que se alimenta
e se regozija com os discursos que ilustram, prefigurando uma disposição
voluntária de servir, de se deixar subjugar e de recalcar ressentimentos:
criminalização, censura, tortura, expurgo, banimento, extermínio. No dia
do professor, a candidatura visita um símbolo de repressão e grita
alto e em mau som “caveira”, uma senha para os tempos sombrios, para liberar os
fantasmas dos porões.
Não releva tais ameaças designar o procedimento eletivo em
curso. No Brasil, o alcance do sentido retórico e formal da
institucionalização pelo procedimento e pelo jurídico põe em relevo o fato de
que todas as experiências autoritárias de nossa formação social tomaram forma
jurídica. Todo o regime de 1964, com a ditadura que se instalou no
país, se representou com forma jurídica, inclusive constitucional, mantendo
a Constituição de 1946, promulgando a sua própria de 1967 e
afeiçoando-a ao seu recrudescimento autoritário com a emenda plena de 1969 (que
muitos denominam de Constituição), todas circunscritas a um sistema normativo
sobredeterminante, denominado Ato Institucional (como expressão “constituinte” do
poder “revolucionário”, com todas as aspas possíveis).
Anote-se o quanto, nessa medida, o “sistema” incorporou a
expressão formal do Direito, com a linguagem atualizada das
garantias fundamentais, indicando em seu texto a vigência do habeas corpus e da
salvaguarda de exame judicial dos atos administrativos, enquanto no cotidiano
de governança se censurava, se torturava e se praticavam assassinatos
políticos, sob a reserva de resguardo à “segurança nacional”, a partir de ações
interditadas ao alcance de habeas corpus ou à apreciação de sua própria
legalidade pelo Poder Judiciário.
É nesse passo que o Estado de Direito Democrático se converte em Estado
Democrático de Direita. Esse passo se dá na medida em que a convergência
entre osinteresses de poder e de acumulação capitalista já
não assimila sequer o discurso democrático, mesmo retórico, como, por exemplo,
o que se prestou a legitimar a sua emergência hegemônica para se afirmar como
expressão dominante (a burguesia patrimonialista francesa afirmando os direitos
do homem para arrebatar à aristocracia seus bens dominiais e seu poder
político). Ou, no golpe de Luiz Bonaparte (18 Brumário),
escancarando situações em que a sua própria legalidade se torna um estorvo: “A
legalidade nos sufoca”, proclamava Odilon Barrot, o chefe de
governo contra a legalidade “dele próprio”, para pôr em prática a política
reacionária de restrição às liberdades de imprensa e de reunião e de dissolução
dos “clubes” e outras formas de organização da oposição política à nova ordem
instalada com o golpe e ativada pelos pica-paus e milicianos.
Ou ainda, o que assistimos agora em nosso próprio país, com
a Constituição arguida contra a própria Constituição, para
dela extrair-se, com o uso meramente formal de um enunciado, vale dizer, a
previsão de aplicação de procedimento de afastamento do presidente ou da
presidenta da República, uma retórica mobilizadora de engajamentos (sociais,
políticos, jurídicos), delirantes de seu necessário fundamento material, a
precisa tipificação de conduta que assim possa ser configurada como crime que
justifique o afastamento (impeachment). Por isso, a configuração desse
processo como um golpe, sem armas, sem quartelada, mas uma ruptura
com a base de legitimidade do sistema constitucional-jurídico, um atentado à
democracia, uma forma de traduzir, sem nenhuma sutileza, o Estado
Democrático da Direita, que se vale da lei para esvaziá-la de suas melhores
promessas.
IHU On-Line – Qual a sua análise acerca do perfil dos
deputados federais e senadores eleitos?
José Geraldo de Sousa Junior – Confesso que me
coloco mais otimista (otimismo crítico) que pessimista (pessimismo deprimido).
Seguindo a onda, é clara a arregimentação fascista com a formação de uma bancada
até então inexistente na esteira do pequeno condottiere. Basta ver
a bancada de seu partido que salta de um para 54 deputados. Mas é notável que
em meio à maior ofensiva que um partido tenha sofrido desde a cassação de
registro do antigo PCB, nos anos 1940, o PT tenha
ainda elegido a maior bancada da Câmara. Junto com os deputados
eleitos pelo PSOL, pelo PSB, pela Rede,
pelo PDT, pelo PROS, pelo PCdoB, forma-se
um núcleo ética e politicamente forte para qualificar uma base parlamentar.
Acrescente-se a isso a significativa ampliação da representação
feminina, em si, um fato auspicioso, tanto mais se entre essas deputadas se
inculcar uma sororidade política. Claro que no Senadoo quadro é
outro, mas há espaço para o exercício político mobilizado por causas
civilizatórias que deem ensejo a salvaguardar, em aliança com o social,
conquistas democráticas, como fez o antigo MDB na conjuntura
bipartidária, criando impasses éticos por meio da atuação de parlamentares
aguerridos logo denominados e consagrados como autênticos democratas leais ao
povo e à cidadania.
IHU On-Line – Conforme as pesquisas revelam, Jair Bolsonaro será
o novo presidente do Brasil. Se isso se confirmar, o que acontecerá?
José Geraldo de Sousa Junior – Acho que
chegaremos ao limite da impossibilidade concretizadora da sua proposta e da
realidade. Como dizia um político do século 20, mesmo que você se apoie em
baionetas, no fundo você não pode se assentar nelas. Essa governança,
se acontecer, terá de ser construída, e isso vai ser difícil, caso essa
hipótese se concretize.
Hoje a gente não consegue ser autoritário nem
mais com o filho de quatro anos, que diz logo que vai consultar o Conselho
Tutelar. Não vão conseguir conduzir o trabalho e a educação na base de
palmatórias e chibatas, será preciso que se exercite a democracia.
Caso contrário eles vão para a vala da história ou, o que é pior, vão para o
aterro sanitário da história.
Só que isso não será mais em ciclos de cem anos, como
antigamente, mas em ciclos de cem dias. Lembre como há pouco, questão de meses,
estava o mercado simbólico eleitoral. Com toda a força dos meios de
comunicação, biografias se dissiparam no ar.
IHU On-Line – E se houver uma virada e Fernando Haddad for eleito, qual a
sua projeção?
José Geraldo de Sousa Junior – Uma dura e
difícil tarefa de reconstruir do salvado partidário uma plataforma capaz de
recuperar a confiança social e a capacidade política de liderar um projeto
de sociedade fundada na democracia e no reconhecimento dos direitos
que realizem a dignidade do humano. A elaboração de um programa forte de educação
para a cidadania que desperte na consciência social o sentido
coparticipativo da responsabilidade de compartilhar poder e de defender as
instituições democráticas. A clareza de que alianças podem se dar em arco
amplo, porém sem perder de vista que o limite de transigência está na baliza da inclusão
social, do trabalhador, dos vulneráveis, dos sem Justiça e sem direitos,
isso em todos os âmbitos, econômico, financeiro-tributável, legislativo,
judiciário, pedagógico, incluindo acesso à comunicação e à informação, e
social, como sujeitos e destinatários das políticas públicas e sociais.
IHU On-Line – Do ponto de vista pessoal, qual o seu sentimento? Fale de suas
percepções pessoais sobre o momento atual e o futuro do país.
Não há um momento constituinte que justifique uma
outra Constituição, mas dar-se conta de que enfrentamos uma disputa ideológica
e discursiva sobre sua realização - José Geraldo de Sousa Jr.
José Geraldo de Sousa Junior – Meu sentimento
mais recôndito continua a ser o de me sintonizar, de vibrar no diapasão do
movimento inexorável de emancipação dos sujeitos na história e
na construção do país. Ainda quando nem todos se arrepiem numa escala de mesma
e simultânea tonalidade. Os ruídos e as dissonâncias do tempo do movimento,
mais agudos ou mais graves, são próprios do processo do ensaio de
manifestação do social. É importante não se impacientar, nem recriminar o
andamento ainda insensível à harmonia, do mover-se em conjunto para uma
intensificação da promessa apoteótica. Povo não é tema, não é partitura que se
deva executar no limite da melodia composta desde uma pré-compreensão autoral
que lhe é exterior. É realidade e não pode ser desconsiderado ainda que, em
suas reações de conjuntura, vague na inconsciência do que verdadeiramente o
constitui como sujeito emancipado. Tanto mais quanto entre a sua consciência
real (aferível por pesquisas) e a sua consciência possível que se desencadeia
ao imprevisível (lembra o sociólogo Lucien Goldmann, tão
atentamente lido por Paulo Freire), sombreiam as distorções
ideológicas, das religiões e crenças, das reduções legalistas, do simbólico
repressor da ordem militarizada e das ilusões despistadoras engendradas pelos
meios de comunicação.
Contra tudo isso, a consciência autônoma aflora, ai dos
capatazes que vigiam o seu despertar. A consequência é dramática e os empurra a
todos – os fariseus que se agarram à ortodoxia das leis que sufragam antigos
privilégios, os centuriões que pensam tudo poder, mas não podem assentar-se em
suas baionetas caladas, os ilusionistas de um mundo artificial que leva a
delírios – para o aterro sanitário da história. Goldmannadvertiu: o
povo que agora cuspia na tumba do czar era o mesmo que no dia anterior beijava
o chão que ele pisava.
E o que me cabe partilhar com os jovens, nós os
velhos que aprendemos a exercitar, sem a elas sucumbir, as nossas angústias.
Na conjuntura, há ainda o estertorar do velho enquanto o novo
se agita. Permaneçam se assim for o caso, tristes na razão, mais se deixem ser
felizes no serviço e na ação política, para a transformação justa do
mundo.