O Direito Achado na Rua: nossa conquista é do tamanho da nossa luta

quarta-feira, 22 de julho de 2015

TRAMAS, MAB e O Direito Achado na Rua: existe amor na universidade (Cartas do Mondego)

Ludmila Cerqueira Correia*

Coimbra, 21 de julho de 2015.

Já tinha ouvido falar da Raquel Rigotto e das atividades que ela vem desenvolvendo na Universidade Federal do Ceará, mas só agora a conheci pessoalmente e pude saber um pouco mais sobre a atuação do Núcleo TRAMAS (Trabalho, Meio Ambiente e Saúde), num seminário realizado no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. Nos primeiros minutos da sua apresentação me identifiquei logo com a proposta do núcleo e, a partir de três palavras: contra hegemonia, dissidência e insurgência na universidade, mais uma vez, confirmei que a extensão universitária engajada, aliada à formação e à pesquisa, junto aos movimentos sociais, é que faz a diferença para uma educação crítica e de qualidade, e que seja comprometida com a transformação social. Foram quase três horas incansáveis sobre o percurso, os aprendizados e frutos do TRAMAS, que culminaram com o que Raquel chamou de “reencantamento da juventude crítica com novas epistemologias e com a universidade”.   
Sua apresentação me conectou com as ações que promovemos no Centro de Referência em Direitos Humanos da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), e também com as atividades que iniciamos no Curso de Direito de Santa Rita (UFPB), na matéria Direitos dos Grupos Socialmente Vulneráveis. Nos anos de 2012, 2013 e 2014, realizamos atividades de extensão dentro dessa matéria junto a movimentos sociais da Paraíba. Um deles foi o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB). Naquela oportunidade, ao conhecerem a realidade das famílias vítimas da construção da barragem de Acauã, estudantes da graduação em direito construíram junto com o MAB na Paraíba um blog** para dar maior visibilidade à sua situação e divulgar a sua luta, uma demanda desse movimento no estado, que ainda não tinha um veículo de comunicação próprio na internet. E nessa semana, as esperanças se renovam nas trincheiras dessa luta: o Ministério Público Federal na Paraíba recebeu do MAB e da Universidade Federal de Campina Grande documentos que servirão de base para o inquérito civil público da barragem de Acauã***.
Essas atividades em conjunto com movimentos sociais não são novidade nas universidades brasileiras e, nos cursos de direito, felizmente, têm crescido nos últimos anos com os projetos de extensão engajados e as assessorias jurídicas populares universitárias. Mas é preciso dizer que tais práticas têm, dentre outras, uma fonte significativa: O Direito Achado na Rua, que desde a sua criação, tem sido incorporado como referência nos meios acadêmicos e sociais e nas atividades de ensino, pesquisa e extensão em direito e direitos humanos.
Em tempos de cólera, de autoritarismo, de fascismo social e de ódio, afirmar a universidade como sujeito social, ao lado das comunidades e movimentos sociais, não pode parecer tão óbvio como poderíamos imaginar. Basta dar uma lida na última provocação de Reinaldo Azevedo, na sua coluna na Folha de São Paulo****, em que afirma: “Chegou a hora de a companheirada se tornar vítima de seus religiosos fanáticos, formados nas escolas de direito contaminadas por doutrinadores do partido e esquerdistas ainda mais obtusos. É uma pena que não só os petistas paguem o pato. Esses vetustos jovens senhores são crias de exotismos como "direito achado na rua", "combate ao legalismo", "neoconstitucionalismo" e afins, correntes militantes que consideram a letra da lei o lixo dos "catedraúlicos", pecha que um desses teóricos amalucados pespegava em juízes que insistiam em se ater aos códigos.”
Ora pois, só posso dizer uma coisa a esse senhor, após conhecer de perto a história de Inês de Castro e a fonte dos amores em Coimbra: agora Inês é morta! Continuaremos bebendo dessa fonte, é ela que nos inspira e propaga amor na universidade, é ela que nos instiga para continuar transformando a realidade.


* Ludmila Cerqueira Correia é doutoranda em Direito, Estado e Constituição no Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade de Brasília, integrante do Grupo de Pesquisa O Direito Achado na Rua, bolsista CAPES em estágio doutoral no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, professora do Departamento de Ciências Jurídicas da Universidade Federal da Paraíba e Coordenadora do Grupo de Pesquisa e Extensão Loucura e Cidadania (Centro de Referência em Direitos Humanos da UFPB).



segunda-feira, 6 de julho de 2015

O Direito Achado na Rua é indispensável às carreiras jurídicas

Jacques Távora Alfonsin

Algumas provas para ingresso de brasileiras/os em carreiras jurídicas do Estado estão colocando, como conhecimento prévio necessário para isso, matérias previstas nos editais dos concursos abertos para essas funções públicas, extremamente oportunas e convenientes para a importância das prestações de serviço inerentes as ditas carreiras. 
         Dois concursos, pelo menos, um para o ingresso na carreira de promotor/a de justiça em Minas Gerais e outro para a função de analista de planejamento e orçamento do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, estão exigindo conhecimentos do tipo, por exemplo, Escola do Direito livre; Direito achado na rua; direito civil e os pobres; Sociologia jurídica das emancipações; Direito como instrumento de opressão social; O ‘custo social’ do Direito e a análise econômica do Direito sob a ótica dos direitos fundamentais; A proteção internacional dos direitos econômicos, sociais e culturais; Direitos humanos relativos à igualdade (a mulher na ordem internacional, a proteção dos direitos reprodutivos, a proteção da criança e do adolescente, a proteção aos portadores dos de deficiência física); O dever de informação do Poder Público quanto aos arquivos secretos da ditadura militar: direito humano à memória coletiva.
         Isso constitui um sinal muito significativo de uma parte do Poder do Poder Público estar interessada numa prestação de serviços moderna, próxima do povo, ético-politicamente fiel a valores, até, metajurídicos, a um outro paradigma de visão da realidade e interpretação das leis para a sua mais justa aplicação. Não é pouco exigir das/os candidatas/os interessadas/os em exercer funções públicas como as de promotor/a de justiça, previstas nesses editais, conhecerem, além do direito achado na rua, direito civil e os pobres, direito como instrumento de opressão social,  direitos relativos à mulher, inclusive na ordem internacional, o dever de o Poder Público franquear o acesso aos arquivos secretos da ditadura militar, etc...  
         Fora de um normativismo comprovadamente vencido e até alienado, muito vinculado ainda às fontes europeias do direito, esse novo paradigma em vez de descer, ele sobe em relação ao povo, ou seja, parte do sujeito que tem direito de cobrar o mais e o melhor dos serviços públicos e não a mesmice – na letra, historicamente inadequada e na aplicação, institucionalmente ineficiente – do nosso ordenamento jurídico, pois é justamente essa a razão de o edital exigir conhecimento do “direito como instrumento de opressão social.” 
         As/Os futuras/os promotoras/es de Minas Gerais e as/os analistas de planejamento e orçamento do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, pelo que se deduz dos editais convocatórios desses concursos, não serão meros repetidores daquele tipo de afirmação de poder da autoridade pública que desconhece não ser um fim em si, sabe que a lei, igualmente, só merece respeito quando se traduz em respeito, também, à dignidade humana, aos direitos humanos fundamentais, cujas garantias não permaneçam apenas previstas em qualquer ordenamento, mas efetivadas no dia a dia da população.
         A simples lembrança do Direito Achado na Rua, assim, deve ser saudada como saber indispensável ao ingresso nessas carreiras jurídicas, por força de uma conquista popular daqueles juristas teórica e praticamente identificados com os direitos das/os pobres e excluídas, como José Geraldo de Sousa Junior e Boaventura de Sousa Santos, entre outros/as. 
Um reflexo claro dessa doutrina já podia ser visto, salvo melhor juízo,  no importante questionamento que José Reinaldo de Lima Lopes faz sobre as garantias devidas aos direitos sociais no nosso país: “[...] quais as ações que asseguram, garantem e viabilizam os tais “direitos sociais”? A quem corresponde o dever reflexo respectivo? A resposta a essa indagação ultrapassa a análise pura e simples do texto legal, ou dos textos legais, supera a exegese e a filologia jurídica. Coloca-se na esfera da teoria geral do direito, pois trata do ordenamento de modo geral e de uma categoria jurídica em si antes de um instituto jurídico particular. Coloca-se também na esfera da teoria do Estado, pois diz respeito às relações fundamentais da organização da cidadania. Coloca-se também na esfera da Filosofia do Direito, visto que diz respeito à justificação racional da justiça de uma norma e, muito particularmente, à realização da justiça. Do ponto de vista prático, o tema é de relevância extraordinária para os profissionais do Direito: uma enorme série de questões hoje discutida nos tribunais, nos órgãos legislativos e na Administração Pública tem a ver com os direitos sociais. O despreparo jurídico para lidar com o tema, no entanto, parece tão grande quanto a gravidade das questões sociais brasileiras”. (Direito Subjetivo e Direitos Sociais: o dilema do judiciário no Estado social de direito. In: FARIA, José Eduardo (org.). Direitos Humanos, Direitos Sociais e Justiça. São Paulo: Malheiros, 1994, p. 114.)
         O despreparo reclamado por José Reinaldo está sendo enfrentado nesses concursos. Sem uma proximidade, que poderia ser chamada de epidérmica com o povo pobre e até miserável do Brasil presente na dura realidade por ele vivida, conforme preconizam essas doutrinas jurídicas, os direitos sociais titulados por esse povo prosseguirão distantes da sua eficácia, embora existentes e válidos. Ainda que prestacionais, prosseguirão sem prestação, ainda que básicos e meios de vida, prosseguirão negando a qualidade dela, ainda que condições de liberdade, prosseguirão cerceados por aquele tipo de interpretação da lei  que os hierarquiza em grau inferior aos patrimoniais, mesmo quando  previstos como garantes da igualdade de todas/os perante à lei continuarão ignorando as materiais diferenças sociais da nossa realidade.
         Existe pairando sobre esse novo paradigma de visão dos fatos e de interpretação das leis um novo pluralismo jurídico, aquele que não reserva ao Estado a exclusividade da produção do direito, nem ao Poder Judiciário a exclusividade de interpretação dos ordenamentos jurídicos. Há um novo ar presente na elaboração e na aplicação das regras constitucionais, muito diferente da forma como isso acontecia na América do Sul, até bem pouco tempo. Uma prova de que esse novo paradigma tem menos chance de ser puramente regulatório e muito mais emancipatório, como prega Boaventura de Sousa Santos, pode ser visto nas novas Constituições da Bolívia, do Equador e da Venezuela: “[...] as primeiras décadas do século XXI serão anos constituintes na América Latina, seguindo o percurso iniciado no último decênio do século passado. Em efeito, desde as manifestações constituintes da década de noventa, o constitucionalismo latino-americano parece ter assumido um perfil diferenciado e diferenciador, em sintonia com os processos de mudança que, de forma paralela, têm sido vivenciados por vários países. De alguma forma, os países latino-americanos estão sendo protagonistas de um quarto momento constituinte, transcendental na história da democracia.” (WOLKMER, Antônio Carlos e MELO, Milena Petters (orgs.). Constitucionalismo Latino-Americano: tendências contemporâneas. Curitiba: Juruá, 2013, p. 50)
         Isso revela quão oportuna tem sido a iniciativa popular de se fazer aqui no Brasil uma consulta plebiscitária para saber-se do próprio povo titular da soberania se quer, ou não, instalar uma nova e exclusiva Assembleia Constituinte, capaz de colocar o país em sintonia com esses novos e bons tempos. Já é hora, ainda mais hoje, quando a nação arrisca passar do aprofundamento de uma crise por enquanto ainda constitucional para uma crise resistindo como constituída e sem perspectiva de ser solucionada por outra, nesse caso necessária, constituinte.