O Direito Achado na Rua: nossa conquista é do tamanho da nossa luta
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terça-feira, 30 de julho de 2013
MAS O OLÉ FOI DO POVO
Miguel Lanzellotti Baldez, Presidente do Centro de Estudos do Direito Crítico, é autor no vol. 3 de O Direito Achado na Rua – Introdução Crítica ao Direito Agrário
segunda-feira, 22 de julho de 2013
Próximo encontro do grupo Dialogos Lyrianos
Data: 28/07/2013 (domingo), às 16h
Local: Faculdade de Direito da UnB
Pauta: Apresentação da AJUP Roberto Lyra Filho
quinta-feira, 18 de julho de 2013
A HISTÓRICA OCUPAÇÃO DA CÂMARA DE VEREADORES DE PORTO ALEGRE*
José Carlos Moreira da Silva Filho
Vice-Presidente da Comissão de Anistia do Ministério da
Justiça
Professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais
da PUC/RS
Para quem não se lembra, a onda de manifestações que se espalhou pelo Brasil teve início com a consistente mobilização do Bloco de Lutas pelo Transporte Público da cidade de Porto Alegre, impedindo que a Prefeitura realizasse o aumento da tarifa.
É bom também lembrar que desde o início houve a tentativa de rotular genericamente as ações do Movimento como coisa de vândalos e baderneiros, de gente violenta e intolerante.
Passado o histórico mês de junho de 2013 e antecipando a Greve Geral que parou o país no dia 11 de julho do mesmo ano, os jovens do Bloco de Lutas ocuparam a Câmara de Vereadores de Porto Alegre, convidaram os vereadores a se sentarem no chão junto com eles e começaram a questioná-los sobre o porquê da inoperância daquela casa na busca da transparência sobre os custos do transporte público e na luta pelo passe livre para estudantes, idosos e desempregados.
Desde então, o Bloco de Lutas tem dado um magnífico exemplo de cidadania e exercício democrático. Contrariando o desconforto de vereadores que veem no povo apenas um partícipe amorfo que comparece às urnas de 4 em 4 anos e nada mais, jovens com dreadlocks, violões, bumbos, berimbaus, sacolas ecológicas, gorros e tocas de lã, além de jaquetas e camisetas coloridas, e muita vontade e disposição de debater com profundidade temas centrais para grande parte da população - como direitos humanos, saúde, educação, cultura, trabalho, democratização da mídia, liberdade religiosa, homofobia, segurança pública, e, é claro, transporte público - ocuparam o Plenário da assim chamada "Casa do Povo" e deram novo alento a uma política viciada em trocas, compadrios e predomínio de interesses empresariais em detrimento dos interesses populares.
O que acontece na Câmara de Vereadores de Porto Alegre é algo inédito cercado de simbolismos valiosos. De maneira ordeira, solidária, sem preconceitos, esses jovens se organizaram em diferentes Grupos de Trabalho e promoveram na Câmara no último final de semana um riquíssimo seminário focado na elaboração de dois projetos de lei, um pelo passe livre e outro pela transparência das contas.
Com o apoio dos vereadores simpáticos às lutas populares e respeitosos no diálogo com a sociedade civil organizada, exercitaram uma mídia alternativa, com transmissão das atividades em tempo real, oferecendo várias coletivas de imprensa aos veículos tradicionais; questionaram as divisões de gênero e a homofobia no modo como organizaram os banheiros e sua limpeza; questionaram a existência de símbolos religiosos em um ambiente público de um Estado laico; questionaram a produção de alimentos com produtos químicos e o monopólio de grandes empresas alimentícias consumindo, durante a ocupação, alimentos orgânicos e oriundos da produção de pequenos agricultores; deram aulas de negociação e resistência aos estupefatos vereadores ligados à Presidência da Casa, que demonstraram, por sua vez, total despreparo para lidar com o povo organizado e grande receio em vê-los de tão perto; constituíram um grupo de segurança para evitar depredações e ações violentas praticadas por agentes infiltrados que querem desmoralizar o movimento; e, por fim, criaram o cenário para a produção de um valioso precedente judicial.
Ao contrário do que desgraçadamente ocorreu, por exemplo, na repressão da Brigada Militar gaúcha ao assentamento do MST em São Gabriel e na ação da Polícia Militar de São Paulo em Pinheirinho, um juiz, no caso a juíza gaúcha Cristina Luisa Marquesan da Silva, teve a sensibilidade de perceber que em uma democracia de alta intensidade, os órgãos do Estado não podem tratar os movimentos sociais como criminosos, mas sim como cidadãos que exercem o seu legítimo direito de participação e de resistência a políticas e normas opressivas. Daí que após a visita do Oficial de Justiça relatando o caráter pacífico, organizado e produtivo da ocupação, a juíza argumentou que não se justificava a repressão para operar a reintegração de posse e marcou uma audiência de Conciliação.
O que ocorre em Porto Alegre evidencia que a receita básica a ser buscada para a crise política é o diálogo e a abertura dos partidos, sindicatos e autoridades políticas tradicionais aos movimentos sociais, naturalmente mais horizontais, espontâneos e sintonizados com as reais demandas da sociedade em seus mais diferentes setores.
Por fim, é possível sentir e perceber nesses jovens a herança militante, corajosa e consciente daqueles outros jovens que lutaram e tombaram diante da ditadura civil-militar ocorrida no Brasil de 1964 a 1988. Parabéns ao Bloco de Lutas pelo seu exemplo!
* Uma versão reduzida foi publicada no Jornal Zero Hora (Porto Alegre) de hoje (18/07/2013).
segunda-feira, 15 de julho de 2013
2ª. Carta de Nagoya
Diego Nepomuceno Nardi
Há alguns meses atrás, quando
enviei o primeiro e-mail relatando minhas experiências ao Prof. José Geraldo,
havia mencionado que os primeiros dias por aqui haviam sido marcados por uma
ausência, um sentimento de incompletude.
E eles assim continuam. Ausência de abraços, de manifestações políticas
abertas; ausência de Universidade ocupada e viva; ausência de extensão e de
espaços construídos horizontalmente; falta de relações interpessoais que se
abrem na intimidade aos amigxs; falta da casa cheia, da cumplicidade que vai
para além do cuidadosamente programado e dos espaços
muito bem delimitados.
Nos primeiros dois meses, a
reação que tive ao não familiar foi o isolamento. Um desconforto profundo e uma
tentativa persistente de recriá-lo, sem dar espaço para as possibilidades de
deixar-se afetar que se abrem diante de mim.
Nas aflições de não encontrar um lugar para pertencer, para dar vazão aos anseios de prosseguir debatendo, atuando e levantando pautas como gênero, emancipação, extensão, política estudantil, sempre me voltava (e ainda me volto) às amigas e amigos que se fazem presente, ainda que a dois oceanos de distância. Numa dessas conversas, caiu em minhas mãos um texto do Da Matta, “O Ofício do Etnólogo, ou como Ter Anthropological Blues”. Há coisas ali com as quais não há como concordar, porém, a evocação feita em tom profético (e que me foi um caminho para trilhar) diz: para descobrir é preciso relacionar-se. Criticando o ofício do antropólogo, Da Matta tenta evidenciar a forma como os sentimentos e as emoções se insinuam no trabalho de campo.
Apesar de não estar assumindo o
papel de um antropólogo em minha aproximação com o exótico que é, para mim, a
sociedade japonesa, essa marginalização, que se manifesta em sentimento de
segregação, é indispensável ao estranhamento. E faz um tempo que, ao invés de
tentar suprimir o estranhamento e buscar, unilateralmente, construir
explicações para o não familiar, tenho me esforçado em relacionar-me. Uma
relação baseada no confronto entre minha subjetividade e aquelas que hoje me
circundam, entre o familiar e o exótico, o confronto que, como conclui Da
Matta, desloca nossa própria subjetividade. E desde o primeiro momento que aqui
cheguei, minha subjetividade está sendo deslocada. Nesse deslocamento
relaciono-me intensamente com minha própria cultura: talvez por isso, mais do
que nunca, tenho pensado sobre questões que remetem ao meu lugar no mundo
(Brasileiro? Latino Americano?). Nunca antes contestei tanto minha própria
realidade, lançando dúvidas e questionamentos sobre situações que, até pouco
tempo, não problematizava.
Esse deslocamento tem a
possibilidade de me levar não a entender por inteiro as relações e regras
hierárquicas que marcam a sociedade
japonesa, mas a estabelecer um diálogo, e - recolocando em contexto diverso a
frase de Da Matta – “permitir dialogar com as formas hierárquicas que convivem
conosco”, afinal “o homem não se enxerga sozinho. (...) ele precisa do outro
como seu espelho e seu guia”.
Desde então, aos poucos, tenho
conseguido o companheirismo e confiança daqueles que não apenas se propõem a
construir esse diálogo, mas me levam e me guiam por caminhos que, inicialmente,
não estavam abertos. Talvez, o que eu esteja tentando é, justamente, sem cair
nas armadilhas de um relativismo ou universalismo infecundos, assumir as
possibilidades de um diálogo intercultural baseado em uma hermenêutica
diatópica: perceber que os topoi de
minha cultura são tão incompletos quanto ela mesma, e contribuir, dentro de
minhas possibilidades, para que aquelxs que se propõe a construir esse diálogo
ampliem a consciência sobre a incompletude que também atinge suas próprias
culturas.
domingo, 14 de julho de 2013
DESCULPE, PRESIDENTE EVO MORALES
Boaventura de Sousa Santos
Diretor do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra
Esperei uma semana que o governo do meu país pedisse formalmente desculpas pelo ato de pirataria aérea e de terrorismo de estado que cometeu, juntamente com a Espanha, a França e a Itália, ao não autorizar a escala técnica do seu avião no regresso à Bolívia depois de uma reunião em Moscovo, ofendendo a dignidade e a soberania do seu país e pondo em risco a sua própria vida.
Não esperava que o fizesse, pois conheço e sofro o colapso diário da legalidade nacional e internacional em curso no meu país e nos países vizinhos, a mediocridade moral e política das elites que nos governam, e o refúgio precário da dignidade e da esperança nas consciências, nas ruas e nas praças, depois de há muito terem sido expulsas das instituições. Não pediu desculpa. Peço eu, cidadão comum, envergonhado por pertencer a um país e a um continente que é capaz de cometer esta afronta e de o fazer de modo impune, já que nenhuma instância internacional se atreve a enfrentar os autores e os mandantes deste crime internacional. O meu pedido de desculpas não tem qualquer valor diplomático, mas tem um valor talvez ainda superior, na medida em que, longe de ser um acto individual, é a expressão de um sentimento coletivo, muito mais vasto do que pode imaginar, por parte de cidadãos indignados que todos os dias juntam mais razões para não se sentirem representados pelos seus representantes. O crime cometido contra si foi mais uma dessas razões. Alegrámo-nos com seu regresso em segurança a casa e vibramos com a calorosa acolhida que lhe deu o seu povo ao aterrar em El Alto. Creia, Senhor Presidente, que, a muitos quilómetros de distância, muitos de nós estávamos lá, embebidos no ar mágico dos Andes.
O Senhor Presidente sabe melhor do que qualquer de nós que se tratou de mais um acto de arrogância colonial no seguimento de uma longa e dolorosa história de opressão, violência e supremacia racial. Para a Europa, um presidente índio é sempre mais índio do que presidente e, por isso, é de esperar que transporte droga ou terroristas no seu avião presidencial. Uma suspeita de um branco contra um índio é mil vezes mais credível que a suspeita de um índio contra um branco. Lembra-se bem que os europeus, na pessoa do Papa Paulo III, só reconheceram que a gente do seu povo tinha alma humana em 1537 (bula Sublimis Deus), e conseguiram ser tão ignominiosos nos termos em que recusaram esse reconhecimento durante décadas como nos termos em que finalmente o aceitaram. Foram precisos 469 anos para que, na sua pessoa, fosse eleito presidente um indígena num país de maioria indígena. Mas sei que também está atento às diferenças nas continuidades. A humilhação de que foi vítima foi um ato de arrogância colonial ou de subserviência colonial? Lembremos um outro “incidente” recente entre governantes europeus e latino-americanos. Em 10 de Novembro de 2007, durante a XVII Cimeira Iberoamericana realizada no Chile, o Rei de Espanha, desagradado pelo que ouvia do saudoso Presidente Hugo Chávez, dirigiu-se-lhe intempestivamente e mandou-o calar. A frase “Por qué no te callas” ficará na história das relações internacionais como um símbolo cruelmente revelador das contas por saldar entre as potências ex-colonizadoras e as suas ex-colónias. De facto, não se imagina um chefe de Estado europeu a dirigir-se nesses termos publicamente a um seu congénere europeu, quaisquer que fossem as razões.
O Senhor Presidente foi vítima de uma agressão ainda mais humilhante, mas não lhe escapará o facto de que, no seu caso, a Europa não agiu espontaneamente. Fê-lo a mando dos EUA e, ao fazê-lo, submeteu-se à ilegalidade internacional imposta pelo imperialismo norte-americano, tal como, anos antes, o fizera ao autorizar o sobrevoo do seu espaço aéreo para voos clandestinos da CIA, transportando suspeitos a caminho de Guantánamo, em clara violação do direito internacional. Sinais dos tempos, Senhor Presidente: a arrogância colonial europeia já não pode ser exercida sem subserviência colonial. Este continente está a ficar demasiado pequeno para poder ser grande sem ser aos ombros de outrem. Nada disto absolve as elites europeias. Apenas aprofunda a distância entre elas e tantos europeus, como eu, que vêem na Bolívia um país amigo e respeitam a dignidade do seu povo e a legitimidade das suas autoridades democráticas.
Diretor do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra
Esperei uma semana que o governo do meu país pedisse formalmente desculpas pelo ato de pirataria aérea e de terrorismo de estado que cometeu, juntamente com a Espanha, a França e a Itália, ao não autorizar a escala técnica do seu avião no regresso à Bolívia depois de uma reunião em Moscovo, ofendendo a dignidade e a soberania do seu país e pondo em risco a sua própria vida.
Não esperava que o fizesse, pois conheço e sofro o colapso diário da legalidade nacional e internacional em curso no meu país e nos países vizinhos, a mediocridade moral e política das elites que nos governam, e o refúgio precário da dignidade e da esperança nas consciências, nas ruas e nas praças, depois de há muito terem sido expulsas das instituições. Não pediu desculpa. Peço eu, cidadão comum, envergonhado por pertencer a um país e a um continente que é capaz de cometer esta afronta e de o fazer de modo impune, já que nenhuma instância internacional se atreve a enfrentar os autores e os mandantes deste crime internacional. O meu pedido de desculpas não tem qualquer valor diplomático, mas tem um valor talvez ainda superior, na medida em que, longe de ser um acto individual, é a expressão de um sentimento coletivo, muito mais vasto do que pode imaginar, por parte de cidadãos indignados que todos os dias juntam mais razões para não se sentirem representados pelos seus representantes. O crime cometido contra si foi mais uma dessas razões. Alegrámo-nos com seu regresso em segurança a casa e vibramos com a calorosa acolhida que lhe deu o seu povo ao aterrar em El Alto. Creia, Senhor Presidente, que, a muitos quilómetros de distância, muitos de nós estávamos lá, embebidos no ar mágico dos Andes.
O Senhor Presidente sabe melhor do que qualquer de nós que se tratou de mais um acto de arrogância colonial no seguimento de uma longa e dolorosa história de opressão, violência e supremacia racial. Para a Europa, um presidente índio é sempre mais índio do que presidente e, por isso, é de esperar que transporte droga ou terroristas no seu avião presidencial. Uma suspeita de um branco contra um índio é mil vezes mais credível que a suspeita de um índio contra um branco. Lembra-se bem que os europeus, na pessoa do Papa Paulo III, só reconheceram que a gente do seu povo tinha alma humana em 1537 (bula Sublimis Deus), e conseguiram ser tão ignominiosos nos termos em que recusaram esse reconhecimento durante décadas como nos termos em que finalmente o aceitaram. Foram precisos 469 anos para que, na sua pessoa, fosse eleito presidente um indígena num país de maioria indígena. Mas sei que também está atento às diferenças nas continuidades. A humilhação de que foi vítima foi um ato de arrogância colonial ou de subserviência colonial? Lembremos um outro “incidente” recente entre governantes europeus e latino-americanos. Em 10 de Novembro de 2007, durante a XVII Cimeira Iberoamericana realizada no Chile, o Rei de Espanha, desagradado pelo que ouvia do saudoso Presidente Hugo Chávez, dirigiu-se-lhe intempestivamente e mandou-o calar. A frase “Por qué no te callas” ficará na história das relações internacionais como um símbolo cruelmente revelador das contas por saldar entre as potências ex-colonizadoras e as suas ex-colónias. De facto, não se imagina um chefe de Estado europeu a dirigir-se nesses termos publicamente a um seu congénere europeu, quaisquer que fossem as razões.
O Senhor Presidente foi vítima de uma agressão ainda mais humilhante, mas não lhe escapará o facto de que, no seu caso, a Europa não agiu espontaneamente. Fê-lo a mando dos EUA e, ao fazê-lo, submeteu-se à ilegalidade internacional imposta pelo imperialismo norte-americano, tal como, anos antes, o fizera ao autorizar o sobrevoo do seu espaço aéreo para voos clandestinos da CIA, transportando suspeitos a caminho de Guantánamo, em clara violação do direito internacional. Sinais dos tempos, Senhor Presidente: a arrogância colonial europeia já não pode ser exercida sem subserviência colonial. Este continente está a ficar demasiado pequeno para poder ser grande sem ser aos ombros de outrem. Nada disto absolve as elites europeias. Apenas aprofunda a distância entre elas e tantos europeus, como eu, que vêem na Bolívia um país amigo e respeitam a dignidade do seu povo e a legitimidade das suas autoridades democráticas.
quinta-feira, 11 de julho de 2013
A Voz de Brasília
Brasília Encontro, Revista do Correio Braziliense, edição julho de 2013
Capa | Manifestações »
Capa | Manifestações »
A voz de Brasília
Empresários, políticos, artistas,
representantes da sociedade e manifestantes analisam os protestos e
sugerem o que pode ser feito para melhorar a vida na capital
Leilane Menezes - Colunista
Publicação:09/07/2013 14:39Atualização:10/07/2013 18:07
Planejada
para delimitar, Brasília nasceu cheia de explicações sobre o uso dos
espaços urbanos. Um setor é dos hotéis; outro, apenas de hospitais. Até a
diversão tem um setor só dela. Embora as definições nem sempre sejam
respeitadas, a cidade não se mistura. Caminhos pouco se cruzam. O
transporte público não embaralha classes sociais, como se vê fora do
país. Ônibus abarrotados de operários, carros que carregam apenas o
motorista e as dificuldades dos pedestres – faltam calçadas e passarelas
– reforçam os contrastes das ruas, diariamente. Talvez por isso alguns
tenham dito que Brasília não se parecia consigo mesma, no último 17 de
junho, quando 10 mil pessoas, em grande parte jovens, de classes sociais
diversas, dividiram o espaço mais emblemático do quadradinho, a
Esplanada dos Ministérios.
As faixas do Eixo Monumental, sempre cheias de motores, foram pisadas por quem caminhava rumo à mudança. Deu-se ao evento, criado e alimentado em redes sociais, o nome de Marcha do Vinagre. Queriam ironizar a prisão de manifestantes contra o aumento do preço das passagens de ônibus em São Paulo que carregavam a solução líquida, capaz de amenizar efeitos de bombas de gás lacrimogêneo, método mais usado pela polícia para dispersar protestos.
O estudante do ensino médio Jimmy Lima, de 17 anos, aluno da rede pública, morador do Plano Piloto, foi o criador da página virtual que convidava todos a marcharem. Teve a ideia após se chocar com a violência policial em São Paulo. Em dois dias, 210 mil pessoas foram convidadas e 15 mil confirmaram presença. “Não era possível ficar parado diante de tudo o que estava acontecendo. Não imaginava essa proporção”, afirmou Jimmy. A mãe dele, a coordenadora de um colégio público, Janaína de Morais Carreiro, de 37 anos, estava entre os caras-pintadas, em 1992, quando 100 mil protestaram em frente ao Palácio do Planalto pelo impeachment do então presidente Fernando Collor, atual senador, e apoiou a atitude do filho.
Há várias análises para o poder de mobilização dos protestos atuais. As explicações vão do aumento da parcela da população com acesso à internet ao crescimento da classe média (com melhores salários, mas ainda sem acesso a boas escolas e hospitais e, portanto, indignada). Uma das visões, além das causas históricas, econômicas e culturais, enxerga a questão pelo viés da psicologia. “O movimento de ocupação das ruas, aparentemente, ganhou muita força por meio da internet, que ajudou a romper com o que os psicólogos sociais chamam de ignorância pluralística. A despeito do nome pomposo, é um estado psicológico corriqueiro e manifesta-se em inúmeras situações sociais. Diz respeito à nossa incapacidade de conhecer o que realmente ‘está na cabeça’ de nossos concidadãos, colegas estudantes ou de trabalho, e constitui-se em um inibidor poderoso do comportamento”, explicam os professores do Departamento de Psicologia Social e do Trabalho da Universidade de Brasília (UnB) Fabio Iglesias e Ronaldo Pilati, em artigo publicado pela instituição e disponível no site oficial.
De acordo com os especialistas, o caráter de conexão em rede permite o acesso a inúmeros conteúdos, de milhares de pessoas, que trazem uma clara sinalização de que a insatisfação é compartilhada, produzindo um efeito cascata e sem precedentes de rompimento do padrão conformista.
No dia 17, quem saía do trabalho parou para ver a manifestação, que terminou com gente no alto do poder, literalmente, ao subir na plataforma do Congresso. A sombra do povo cresceu, refletiu-se nas cúpulas, símbolos do lugar onde decisões importantes são tomadas. A Polícia Militar negociou a descida e reagiu quando um grupo tentou invadir o prédio, usou gás lacrimogêneo e spray de pimenta, sem força física ou tiros.
Cenário diferente do visto em dias anteriores. Três dias antes da Marcha do Vinagre, em 14 de junho, 250 pessoas queimaram pneus em frente ao Estádio Nacional, para questionar os gastos da Copa. No dia seguinte, durante o jogo entre Brasil e Japão, a polícia usou balas de borracha, bombas de gás lacrimogêneo, cavalaria e spray de pimenta, em frente à arena, e foi acusada de cometer excessos. Pelo menos 27 feridos foram encaminhados a hospitais. A maior manifestação do período ocorreu em 20 de junho. Começou tranquila, apesar dos 35 mil adeptos. No fim, um espetáculo do vandalismo, com ministérios, o Palácio do Itamaraty e a Catedral depredados.
A repressão policial e a presença de arruaceiros entre manifestantes não diminuíram as conquistas do movimento. A Câmara dos Deputados derrubou a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 37, que limitava o poder de investigação do Ministério Público. A Casa aprovou a destinação de mais recursos para educação e saúde. O governo federal propôs um pacote de medidas, que inclui plebiscito a respeito da reforma política. Entre as mudanças sugeridas, estão regras mais duras com relação ao financiamento de campanha e aos crimes contra a administração pública. A vontade do povo pautou o governo. Desdobramentos dessas e de outras decisões baseadas no apelo popular, assim como o rumo das mobilizações, permanecem incertos.
Para o jurista José Geraldo de Sousa Júnior, ex-reitor da UnB, autor do projeto Direito Achado na Rua e mediador de conflitos sociais da OAB, haverá um momento de trégua, o que não significa o abandono da luta. “Quando for necessário, a mobilização virá cada vez mais forte, porque há uma memória da experiência comum e um horizonte do que se avançou na política”, acredita. Segundo ele, o movimento de hoje é mais crítico, consciente e massivo, mais apto a construir agenda do que o de 1988, mas só é forte porque viveu 1988. “E 1988 viveu a experiência de 1968. Cada vez é mais contundente, porque cada vez mais temos recortes da sociedade lutando: mulheres, índios, homossexuais, catadores de papel... Quando há uma crise, eles se integram num protagonismo mais forte. Isso é a cidadania construída na rua.”
Aos 53 anos, Brasília viu seus filhos saírem de casa para exigir: transporte público de qualidade (e gratuito), reforma política, acesso à saúde e à educação, entre dezenas de outras pautas sobre direitos humanos. A cidade é palco de protestos semanalmente, nenhum deles, entretanto, defende causas tão amplas ou conta com apoio de um público de perfil diversificado. Dessa vez, quem nunca havia participado de protestos sentiu-se convidado a engrossar o coro. O morador de Taguatinga Victor Hugo Lobo Alves, de 21 anos, estudante de informática, participou de três protestos em menos de duas semanas. “Essa causa é do povo inteiro. Tentei chamar meu pai, minha mãe, mas eles não tiveram disposição. Fui sozinho. A luta principal é contra a corrupção. A partir da melhor administração das verbas públicas, a educação melhora e a saúde também. Temos o dinheiro para investir, mas ele não chega aonde deveria”, explicou Victor Hugo, que usa transporte público e defende o passe livre.
O
jovem não é filiado a partido político e se preocupava pouco em
fiscalizar os poderes públicos. Com os protestos, ganhou consciência da
importância de acompanhar de perto o processo político. “Quem devia
fiscalizar também se corrompe. Só resta o povo para cuidar dos próprios
interesses. Podemos fazer a diferença. Ainda há muita luta pela frente.
Faltam muitos assuntos para discutir: por exemplo, por que temos um dos
piores asfaltos do mundo se pagamos tão caro? Por que pagamos caro pela
gasolina se temos petróleo?”, avalia.
A frase compartilhada como lema nas redes sociais afirma que “o gigante acordou”. Mas há aqueles que nunca dormiram. Grupos como o Movimento Passe Livre do DF (MPL-DF) e o Fora Arruda e toda máfia (que mesclava militantes de vários movimentos e terminou com o então governador preso por atrapalhar investigações da Polícia Federal sobre corrupção) empenham-se há tempos por melhorias.
Uma vez por ano, cerca de 5 mil mulheres e homens que apoiam as causas feministas lotam o centro da cidade para pedir respeito à autonomia da mulher e políticas de enfretamento ao machismo e à violência, durante a Marcha das Vadias do DF.
A marcha nasceu em 2011, no Canadá, quando um policial aconselhou mulheres a não se vestirem como “vadias” se não quisessem ser estupradas. A declaração sugeria que vítimas eram culpadas pelo abuso sexual. Dezenas de países protestam contra essa mentalidade, desde então.
Durante o ano, as participantes do movimento brasiliense visitam escolas e comunidades onde a violência contra a mulher é frequente, para oferecer oficinas, esclarecer direitos e promover debates.
Depois
dos protestos recentes, representantes da marcha foram convidadas pela
Presidência da República a participar de encontro, ao lado da juventude
negra militante, do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e
apoiadores do passe livre, para debater prioridades.
“Chegamos a consensos sobre o que precisa ser feito. Nós, da marcha, pedimos à presidente que o fundamentalismo religioso não influencie as decisões do Estado. Nós nos posicionamos contra o projeto de ‘cura gay’ (recentemente retirado de pauta) e repudiamos o Estatuto do Nascituro (que retira o direito ao aborto legal em caso de estupro e propõe pagamento de um salário mínimo mensal à mulher, para despesas com o filho indesejado, até que ele complete 18 anos, caso o estuprador não seja encontrado para pagar pensão)”, afirma Guaia Monteiro, assistente social, uma das organizadoras da Marcha das Vadias.
As manifestações atuais reúnem pessoas de crenças e posicionamentos divergentes sobre temas como a presença de partidos políticos nas marchas, aborto, maioridade penal e interferência de igrejas nos direitos civis. O ponto de convergência entre os movimentos é a imposição da soberania popular, que faz dos protestos um retrato plural de Brasília, a cidade dos problemas e das soluções, dos ministérios e dos monumentos, mas, acima de tudo, de quem a habita.
(*) Com Tereza Rodrigues,
Dominique Lima, Matheus Teixeira, Jéssica Germano e Cecília Garcia
Na Marcha do Vinagre, em 17 de junho, os manifestantes subiram às cúpulas do Congresso Nacional: imagem rodou o mundo
A maior das manifestações de
junho: no dia 20, 35 mil pessoas tomaram as ruas num protesto que
começou pacífico e acabou com vandalismo
As faixas do Eixo Monumental, sempre cheias de motores, foram pisadas por quem caminhava rumo à mudança. Deu-se ao evento, criado e alimentado em redes sociais, o nome de Marcha do Vinagre. Queriam ironizar a prisão de manifestantes contra o aumento do preço das passagens de ônibus em São Paulo que carregavam a solução líquida, capaz de amenizar efeitos de bombas de gás lacrimogêneo, método mais usado pela polícia para dispersar protestos.
Simbolismo: em frente a um cartão-postal da cidade,a imagem de Tatiane Andrade representa a força da juventude brasiliense
O estudante do ensino médio Jimmy Lima, de 17 anos, aluno da rede pública, morador do Plano Piloto, foi o criador da página virtual que convidava todos a marcharem. Teve a ideia após se chocar com a violência policial em São Paulo. Em dois dias, 210 mil pessoas foram convidadas e 15 mil confirmaram presença. “Não era possível ficar parado diante de tudo o que estava acontecendo. Não imaginava essa proporção”, afirmou Jimmy. A mãe dele, a coordenadora de um colégio público, Janaína de Morais Carreiro, de 37 anos, estava entre os caras-pintadas, em 1992, quando 100 mil protestaram em frente ao Palácio do Planalto pelo impeachment do então presidente Fernando Collor, atual senador, e apoiou a atitude do filho.
Policiais reprimiram com
violência manifestação contra os gastos excessivos com a Copa: protesto
marcou a abertura da Copa das Confederações
Há várias análises para o poder de mobilização dos protestos atuais. As explicações vão do aumento da parcela da população com acesso à internet ao crescimento da classe média (com melhores salários, mas ainda sem acesso a boas escolas e hospitais e, portanto, indignada). Uma das visões, além das causas históricas, econômicas e culturais, enxerga a questão pelo viés da psicologia. “O movimento de ocupação das ruas, aparentemente, ganhou muita força por meio da internet, que ajudou a romper com o que os psicólogos sociais chamam de ignorância pluralística. A despeito do nome pomposo, é um estado psicológico corriqueiro e manifesta-se em inúmeras situações sociais. Diz respeito à nossa incapacidade de conhecer o que realmente ‘está na cabeça’ de nossos concidadãos, colegas estudantes ou de trabalho, e constitui-se em um inibidor poderoso do comportamento”, explicam os professores do Departamento de Psicologia Social e do Trabalho da Universidade de Brasília (UnB) Fabio Iglesias e Ronaldo Pilati, em artigo publicado pela instituição e disponível no site oficial.
Em 19 de junho, durante protesto de rodoviários, na Rodoviária do Plano Piloto: manifestantes colocaram fogo em ônibus
De acordo com os especialistas, o caráter de conexão em rede permite o acesso a inúmeros conteúdos, de milhares de pessoas, que trazem uma clara sinalização de que a insatisfação é compartilhada, produzindo um efeito cascata e sem precedentes de rompimento do padrão conformista.
No dia 17, quem saía do trabalho parou para ver a manifestação, que terminou com gente no alto do poder, literalmente, ao subir na plataforma do Congresso. A sombra do povo cresceu, refletiu-se nas cúpulas, símbolos do lugar onde decisões importantes são tomadas. A Polícia Militar negociou a descida e reagiu quando um grupo tentou invadir o prédio, usou gás lacrimogêneo e spray de pimenta, sem força física ou tiros.
Cenário diferente do visto em dias anteriores. Três dias antes da Marcha do Vinagre, em 14 de junho, 250 pessoas queimaram pneus em frente ao Estádio Nacional, para questionar os gastos da Copa. No dia seguinte, durante o jogo entre Brasil e Japão, a polícia usou balas de borracha, bombas de gás lacrimogêneo, cavalaria e spray de pimenta, em frente à arena, e foi acusada de cometer excessos. Pelo menos 27 feridos foram encaminhados a hospitais. A maior manifestação do período ocorreu em 20 de junho. Começou tranquila, apesar dos 35 mil adeptos. No fim, um espetáculo do vandalismo, com ministérios, o Palácio do Itamaraty e a Catedral depredados.
Antes da depredação do
Itamaraty, o proteto do dia 20 seguia em paz: 35 mil pessoas, de vários
movimentos, juntaram-se na Esplanada
A repressão policial e a presença de arruaceiros entre manifestantes não diminuíram as conquistas do movimento. A Câmara dos Deputados derrubou a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 37, que limitava o poder de investigação do Ministério Público. A Casa aprovou a destinação de mais recursos para educação e saúde. O governo federal propôs um pacote de medidas, que inclui plebiscito a respeito da reforma política. Entre as mudanças sugeridas, estão regras mais duras com relação ao financiamento de campanha e aos crimes contra a administração pública. A vontade do povo pautou o governo. Desdobramentos dessas e de outras decisões baseadas no apelo popular, assim como o rumo das mobilizações, permanecem incertos.
Manifestação de 26 de junho: durante o dia, pacífica. À noite, vandalismo
Para o jurista José Geraldo de Sousa Júnior, ex-reitor da UnB, autor do projeto Direito Achado na Rua e mediador de conflitos sociais da OAB, haverá um momento de trégua, o que não significa o abandono da luta. “Quando for necessário, a mobilização virá cada vez mais forte, porque há uma memória da experiência comum e um horizonte do que se avançou na política”, acredita. Segundo ele, o movimento de hoje é mais crítico, consciente e massivo, mais apto a construir agenda do que o de 1988, mas só é forte porque viveu 1988. “E 1988 viveu a experiência de 1968. Cada vez é mais contundente, porque cada vez mais temos recortes da sociedade lutando: mulheres, índios, homossexuais, catadores de papel... Quando há uma crise, eles se integram num protagonismo mais forte. Isso é a cidadania construída na rua.”
Momento da invasão do Palácio do Itamaraty, durante manifestação no dia 20: pelo menos 82 pessoas ficaram feridas
Aos 53 anos, Brasília viu seus filhos saírem de casa para exigir: transporte público de qualidade (e gratuito), reforma política, acesso à saúde e à educação, entre dezenas de outras pautas sobre direitos humanos. A cidade é palco de protestos semanalmente, nenhum deles, entretanto, defende causas tão amplas ou conta com apoio de um público de perfil diversificado. Dessa vez, quem nunca havia participado de protestos sentiu-se convidado a engrossar o coro. O morador de Taguatinga Victor Hugo Lobo Alves, de 21 anos, estudante de informática, participou de três protestos em menos de duas semanas. “Essa causa é do povo inteiro. Tentei chamar meu pai, minha mãe, mas eles não tiveram disposição. Fui sozinho. A luta principal é contra a corrupção. A partir da melhor administração das verbas públicas, a educação melhora e a saúde também. Temos o dinheiro para investir, mas ele não chega aonde deveria”, explicou Victor Hugo, que usa transporte público e defende o passe livre.
Crianças também foram levadas às ruas por seus pais: essa marcha dos pequenos aconteceu no Parque da Cidade no dia 26 de junho
No dia 24 de junho, muitos brasilienses
não viram a semifinal da Copa das
Confederações: eles foram manifestar
em frente ao Congresso
não viram a semifinal da Copa das
Confederações: eles foram manifestar
em frente ao Congresso
A frase compartilhada como lema nas redes sociais afirma que “o gigante acordou”. Mas há aqueles que nunca dormiram. Grupos como o Movimento Passe Livre do DF (MPL-DF) e o Fora Arruda e toda máfia (que mesclava militantes de vários movimentos e terminou com o então governador preso por atrapalhar investigações da Polícia Federal sobre corrupção) empenham-se há tempos por melhorias.
Uma vez por ano, cerca de 5 mil mulheres e homens que apoiam as causas feministas lotam o centro da cidade para pedir respeito à autonomia da mulher e políticas de enfretamento ao machismo e à violência, durante a Marcha das Vadias do DF.
A marcha nasceu em 2011, no Canadá, quando um policial aconselhou mulheres a não se vestirem como “vadias” se não quisessem ser estupradas. A declaração sugeria que vítimas eram culpadas pelo abuso sexual. Dezenas de países protestam contra essa mentalidade, desde então.
Durante o ano, as participantes do movimento brasiliense visitam escolas e comunidades onde a violência contra a mulher é frequente, para oferecer oficinas, esclarecer direitos e promover debates.
Manifestantes da Marcha das Vadias
protestam uma vez por ano: grupo
já ativo no Distrito Federal
protestam uma vez por ano: grupo
já ativo no Distrito Federal
“Chegamos a consensos sobre o que precisa ser feito. Nós, da marcha, pedimos à presidente que o fundamentalismo religioso não influencie as decisões do Estado. Nós nos posicionamos contra o projeto de ‘cura gay’ (recentemente retirado de pauta) e repudiamos o Estatuto do Nascituro (que retira o direito ao aborto legal em caso de estupro e propõe pagamento de um salário mínimo mensal à mulher, para despesas com o filho indesejado, até que ele complete 18 anos, caso o estuprador não seja encontrado para pagar pensão)”, afirma Guaia Monteiro, assistente social, uma das organizadoras da Marcha das Vadias.
Protesto um dia antes da abertura da Copa das Confederações: início da repressões em Brasília
As manifestações atuais reúnem pessoas de crenças e posicionamentos divergentes sobre temas como a presença de partidos políticos nas marchas, aborto, maioridade penal e interferência de igrejas nos direitos civis. O ponto de convergência entre os movimentos é a imposição da soberania popular, que faz dos protestos um retrato plural de Brasília, a cidade dos problemas e das soluções, dos ministérios e dos monumentos, mas, acima de tudo, de quem a habita.
(*) Com Tereza Rodrigues,
Dominique Lima, Matheus Teixeira, Jéssica Germano e Cecília Garcia
quarta-feira, 10 de julho de 2013
Protestos podem voltar mais fortes e incontroláveis, diz sociólogo Boaventura de Sousa Santos
Boaventura de Sousa Santos aponta a insatisfação popular como fruto da
expansão da classe média brasileira, que ficou mais exigente. Para ele,
só uma reforma política profunda pode evitar que povo volte às ruas.
Os protestos no Brasil perderam intensidade, mas, se o governo não der
uma resposta rápida às reivindicações do povo, podem voltar ainda mais
fortes – e de forma incontrolável. O alerta é do português Boaventura de
Sousa Santos, doutor em sociologia pela Universidade de Yale (EUA) e
diretor do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra
(Portugal).
Autor de estudos sobre emancipação social, direitos coletivos e democracia participativa, ele vê a onda de indignação que tomou as ruas do país como fruto das mudanças vividas pela sociedade brasileira nas últimas décadas. A classe média, afirma, cresceu e com ela as demandas dos cidadãos por melhores serviços públicos ganharam força.
Para Boaventura, o Congresso está “divorciado das prioridades dos cidadãos” e, por isso, uma reforma política se faz necessária. “Há medidas de emergência que têm de ser tomadas, mas nada disso é possível se não houver uma reforma política profunda. Neste momento todo o sistema político tende a perverter e a inverter as suas prioridades”, afirma em entrevista à DW Brasil.
Deutsche Welle: Como o senhor avalia a onda de protestos?
Boaventura de Sousa Santos: As manifestações foram uma surpresa tanto no plano interno como no plano internacional. Tudo levava a crer que tudo no Brasil estava indo bem. Internamente, os próprios partidos, especialmente o do governo, foram apanhados de surpresa. O que foi surpresa foi o motivo para que a explosão ocorresse. Havia um mal-estar, e ele resulta do êxito das políticas que foram instituídas no Brasil a partir de 2003 [quando Lula assumiu o poder] e que fizeram com que 40 milhões de pessoas entrassem para a classe média.
Elas criaram expectativas não só no que diz respeito à sua vida, mas também ao modo como se posicionam na sociedade, ao modo como usam os serviços públicos. E esses 40 milhões começaram a ver que, nos últimos tempos, pelo menos, havia uma certa estagnação dessas políticas. Os serviços públicos não acompanharam as transformações sociais.
A chamada "classe C" ficou mais exigente?
Eu penso que sim, pois as políticas de inclusão realizadas nos últimos dez anos atingiram seu limite e as formas de participação não são hoje tão eficazes quanto eram. Além disso, o serviço público não se desenvolveu como deveria. O caso da saúde é significativo. Por outro lado, num país que tem uma tradição de movimentos sociais fortes, eles viram suas atividades nos últimos tempos se tornarem bastante restringidas. Por isso começou a haver uma certa frustração quanto às prioridades do governo e, naturalmente, um desgaste.
Que medidas o governo Dilma deveria tomar para atender às exigências da população?
A medida fundamental é uma reforma política. Fica evidente que há medidas de emergência que têm de ser tomadas, mas nada disso é possível se não houver uma reforma política profunda, porque neste momento todo o sistema político tende a perverter e a inverter as suas prioridades. Dilma tomou essa medida corajosa, de propor uma revisão constitucional, mas o Congresso não tem grande vontade política para uma reforma política profunda.
As respostas que o governo e o Congresso deram até agora não são satisfatórias?
Como é que o Congresso é capaz de aprovar num prazo de uma semana tantas leis e questões importantes, como a [tipificação da] corrupção como crime hediondo? Essa correria tem um lado positivo e um lado negativo. Isso mostra que o Congresso só se move se houver pressão popular. Portanto, esse é o lado negativo: o Congresso está divorciado das prioridades dos cidadãos e só acorda quando os cidadãos o obrigam a acordar. É por isso que é necessária uma reforma política.
As manifestações são muito importantes para pressionar as instituições, os partidos e os governos, mas elas não fazem propriamente uma formulação política. O que elas fazem é pressão para que haja formulação política. Vimos no Brasil como as agendas eram tão diversas quanto a composição das classes presentes nos protestos. Houve uma forte presença da juventude. As manifestações têm uma composição e, misturadas nelas, há forças aproveitadoras que tentaram tirar dividendos contra o PT. Mas elas são uma minoria. É uma insatisfação popular, sobretudo das camadas mais jovens, contra uma política que não responde aos seus anseios.
É possível manter uma mobilização de massa a longo prazo?
Mesmo nos casos dos países que ela se mantém durante mais tempo, como durante o Occupy, nos EUA, e agora no Egito, tudo acontece por etapas. Portanto, há momentos de refluxo. E eu penso que, no caso brasileiro, ela não se aguenta neste momento, embora possa vir a explodir mais tarde. Neste momento há uma certa espera, uma espera com esperança de que alguma coisa se faça. Se ela não se fizer, a situação pode voltar, pode até, aliás, ser mais incontrolável. Se não houver uma reposta rápida a estas reivindicações, o refluxo atual voltará eventualmente mais incontrolável e mais forte.
Muitos manifestantes nas ruas levantaram uma bandeira antipartidarista. Existe atualmente uma crise de representatividade no sistema político brasileiro?
Acho que sim. E neste momento não só no [sistema político] brasileiro, mas também no europeu. E ocorre fundamentalmente do fato de que os governos hoje estão capturados pelo capital financeiro internacional, se ver bem, em função das exigências do capital financeiro. O próprio Brasil compromete uma parte significativa de sua arrecadação para o pagamento do serviço da dívida. E este também é o caso da Europa. No fundo, é isso que está criando essa crise de representação, na medida em que os cidadãos não se sentem representados pelos seus representantes e é isso que faz com que as pessoas venham para a rua.
As manifestações foram, de certa forma, uma demonstração de decepção com o governo. Esse governo do PT, apesar das medidas de inclusão social, perdeu a credibilidade?
Não. O problema é que, enfim, é um governo de esquerda que, no entanto, tem uma coligação problemática, dada a organização partidária no Brasil. O problema é que os brasileiros conhecem muito bem o que foram as políticas de direita [dos governos] anteriores, nenhum deles realizou as políticas de inclusão social que agora têm lugar. E, portanto, há um certo descrédito na política em seu conjunto. O PT e o governo da presidente Dilma têm uma crise de legitimidade a resolver. E só podem resolver com mais democracia, com mais políticas de inclusão, com mais dinheiro para os cidadãos e menos para as grandes empreiteiras e para o grande capital financeiro internacional.
Autor de estudos sobre emancipação social, direitos coletivos e democracia participativa, ele vê a onda de indignação que tomou as ruas do país como fruto das mudanças vividas pela sociedade brasileira nas últimas décadas. A classe média, afirma, cresceu e com ela as demandas dos cidadãos por melhores serviços públicos ganharam força.
Para Boaventura, o Congresso está “divorciado das prioridades dos cidadãos” e, por isso, uma reforma política se faz necessária. “Há medidas de emergência que têm de ser tomadas, mas nada disso é possível se não houver uma reforma política profunda. Neste momento todo o sistema político tende a perverter e a inverter as suas prioridades”, afirma em entrevista à DW Brasil.
Deutsche Welle: Como o senhor avalia a onda de protestos?
Boaventura de Sousa Santos: As manifestações foram uma surpresa tanto no plano interno como no plano internacional. Tudo levava a crer que tudo no Brasil estava indo bem. Internamente, os próprios partidos, especialmente o do governo, foram apanhados de surpresa. O que foi surpresa foi o motivo para que a explosão ocorresse. Havia um mal-estar, e ele resulta do êxito das políticas que foram instituídas no Brasil a partir de 2003 [quando Lula assumiu o poder] e que fizeram com que 40 milhões de pessoas entrassem para a classe média.
Elas criaram expectativas não só no que diz respeito à sua vida, mas também ao modo como se posicionam na sociedade, ao modo como usam os serviços públicos. E esses 40 milhões começaram a ver que, nos últimos tempos, pelo menos, havia uma certa estagnação dessas políticas. Os serviços públicos não acompanharam as transformações sociais.
A chamada "classe C" ficou mais exigente?
Eu penso que sim, pois as políticas de inclusão realizadas nos últimos dez anos atingiram seu limite e as formas de participação não são hoje tão eficazes quanto eram. Além disso, o serviço público não se desenvolveu como deveria. O caso da saúde é significativo. Por outro lado, num país que tem uma tradição de movimentos sociais fortes, eles viram suas atividades nos últimos tempos se tornarem bastante restringidas. Por isso começou a haver uma certa frustração quanto às prioridades do governo e, naturalmente, um desgaste.
Que medidas o governo Dilma deveria tomar para atender às exigências da população?
A medida fundamental é uma reforma política. Fica evidente que há medidas de emergência que têm de ser tomadas, mas nada disso é possível se não houver uma reforma política profunda, porque neste momento todo o sistema político tende a perverter e a inverter as suas prioridades. Dilma tomou essa medida corajosa, de propor uma revisão constitucional, mas o Congresso não tem grande vontade política para uma reforma política profunda.
As respostas que o governo e o Congresso deram até agora não são satisfatórias?
Como é que o Congresso é capaz de aprovar num prazo de uma semana tantas leis e questões importantes, como a [tipificação da] corrupção como crime hediondo? Essa correria tem um lado positivo e um lado negativo. Isso mostra que o Congresso só se move se houver pressão popular. Portanto, esse é o lado negativo: o Congresso está divorciado das prioridades dos cidadãos e só acorda quando os cidadãos o obrigam a acordar. É por isso que é necessária uma reforma política.
Sousa Santos diz que existe uma crise de representatividade no sistema político brasileiro e de outros países
Para o senhor, quem são os manifestantes?As manifestações são muito importantes para pressionar as instituições, os partidos e os governos, mas elas não fazem propriamente uma formulação política. O que elas fazem é pressão para que haja formulação política. Vimos no Brasil como as agendas eram tão diversas quanto a composição das classes presentes nos protestos. Houve uma forte presença da juventude. As manifestações têm uma composição e, misturadas nelas, há forças aproveitadoras que tentaram tirar dividendos contra o PT. Mas elas são uma minoria. É uma insatisfação popular, sobretudo das camadas mais jovens, contra uma política que não responde aos seus anseios.
É possível manter uma mobilização de massa a longo prazo?
Mesmo nos casos dos países que ela se mantém durante mais tempo, como durante o Occupy, nos EUA, e agora no Egito, tudo acontece por etapas. Portanto, há momentos de refluxo. E eu penso que, no caso brasileiro, ela não se aguenta neste momento, embora possa vir a explodir mais tarde. Neste momento há uma certa espera, uma espera com esperança de que alguma coisa se faça. Se ela não se fizer, a situação pode voltar, pode até, aliás, ser mais incontrolável. Se não houver uma reposta rápida a estas reivindicações, o refluxo atual voltará eventualmente mais incontrolável e mais forte.
Muitos manifestantes nas ruas levantaram uma bandeira antipartidarista. Existe atualmente uma crise de representatividade no sistema político brasileiro?
Acho que sim. E neste momento não só no [sistema político] brasileiro, mas também no europeu. E ocorre fundamentalmente do fato de que os governos hoje estão capturados pelo capital financeiro internacional, se ver bem, em função das exigências do capital financeiro. O próprio Brasil compromete uma parte significativa de sua arrecadação para o pagamento do serviço da dívida. E este também é o caso da Europa. No fundo, é isso que está criando essa crise de representação, na medida em que os cidadãos não se sentem representados pelos seus representantes e é isso que faz com que as pessoas venham para a rua.
As manifestações foram, de certa forma, uma demonstração de decepção com o governo. Esse governo do PT, apesar das medidas de inclusão social, perdeu a credibilidade?
Não. O problema é que, enfim, é um governo de esquerda que, no entanto, tem uma coligação problemática, dada a organização partidária no Brasil. O problema é que os brasileiros conhecem muito bem o que foram as políticas de direita [dos governos] anteriores, nenhum deles realizou as políticas de inclusão social que agora têm lugar. E, portanto, há um certo descrédito na política em seu conjunto. O PT e o governo da presidente Dilma têm uma crise de legitimidade a resolver. E só podem resolver com mais democracia, com mais políticas de inclusão, com mais dinheiro para os cidadãos e menos para as grandes empreiteiras e para o grande capital financeiro internacional.
domingo, 7 de julho de 2013
Construção da cidadania
ENTREVISTA/José Geraldo de Sousa
LEILANE MENEZES
As seguidas manifestações de jovens pelas ruas de Brasília e do país trouxeram uma nova motivação para José Geraldo de Sousa. Ex-reitor da Universidade de Brasília com extenso trabalho na mediação de conflitos sociais, ele defende a abertura do pensamento jurídico, que, de acordo com ele, precisa se flexibilizar para traduzir os anseios do povo. Na avaliação do ex-reitor, a maioria dos jovens engajados do DF tem ligação com o quadro de alunos ou professores da universidade mais importante do Centro-Oeste. José Geraldo é uma das vozes ressonantes da academia.
Assumiu o principal cargo administrativo da UnB em 2008. Ocupou a vaga após a crise na gestão de Timothy Mulholland, acusado de improbidade administrativa e absolvido pela Justiça. Em 2012, deu lugar ao atual reitor. Estudioso de movimentos populares, José Geraldo defende a teoria de que o direito deve ser fruto de transformações sociais.
A UnB contribuiu para a recente mobilização social? Uma grande parte dos manifestantes vem aqui desse território. Gente que já viveu a experiência da ocupação da reitoria (que pedia a saída de Mulholland) e sempre participa de assembleias. Eles têm experiência em reivindicar. Naquela relação estapafúrdia que a Secretaria de Segurança Pública do DF estabeleceu entre alguns jovens de Brasília, querendo criminalizar o protesto, todos eram da UnB.
O que se pode esperar do movimento que foi às ruas? A força de um novo modo de fazer interlocução no campo da política. O de ocupar a esfera pública, no caso a rua, considerando a dimensão simbólica que a expressão rua traz, ela é o lugar de acontecimento, de construção de cidadania e de construção do direito. Uma representação forte no imaginário poético e sociológico brasileiro, que tem valorizado esse âmbito de protagonismo. Lembrando Marshall Berman (filósofo estadunidense): “A rua é onde a multidão se transforma em povo e se faz sujeito da própria história”.
O protesto é heterogêneo: tem muitas vozes e uma pauta recheada de itens. Isso é bom ou ruim? Tentar desqualificar essa presença pelo argumento da alienação, da falta de informação, é um erro. Com isso, se ignora um elemento crucial da experiência histórica e política, que é a relação entre a consciência real e a consciência possível. A real é aquela que você pode medir pela capacidade de responder a certas perguntas como: o que é a PEC 37? A possível é a que está subliminarmente incorporada na cultura de uma geração, na subjetividade de segmentos que acumulam experiências e transmitem-nas de vários modos. No tempo do impeachment, quando Collor pediu que se vestisse verde e amarelo, as diferentes gerações, politizadas ou não, saíram de preto. Não houve palavra de ordem para isso. Foi uma fusão dessa subjetividade possível, que se materializou numa grande mobilização.
O organizador da Marcha do Vinagre tem 17 anos. Estamos vendo uma geração politizada? Muita gente tem também desqualificado a ação juvenil e estudantil sobre o pressuposto de que a conjuntura atual é descolada da ação política. É outra consideração falsa. A política pode ser feita de muitas maneiras. Quando a gente imagina que ela não se realiza, é porque a gente não a reconhece quando é feita de forma não tradicional.
Brasília tem histórico de lutas? A comunidade do Paranoá lutou pelo direito à moradia, muita gente não lembra. Em Brasília, para além do planejar do urbanismo, há um protagonismo da história na qual os sujeitos reivindicam a polis para construir cidadania. Na Vila Telebrasília, o outdoor de aparência tosca, na porta da comunidade diz: “Aqui tem história”. Nunca vi nada assim, em outro lugar do mundo. Também trabalhamos a pedagogia das virtudes, como o exemplo da faixa de pedestres. Foram as crianças que cobraram dos pais o respeito à regra, não por medo da multa, mas por cidadania.
O que esse processo diz sobre a sociedade atual? Essa presença fortalece a ideia de democracia direta, que já havia sido experimentada quando na transição da ditadura para um governo civil, abrindo espaço constituinte, para pensar outra forma de valorização da participação popular, permitindo que o povo fosse finalmente reconhecido como a fonte principal da política e do direito. A soberania popular é o que se revela nesse processo, com tal força que os poderes derivados dessa soberania (Executivo, Legislativo e Judiciário) estão correndo atrás e buscando legitimidade.
terça-feira, 2 de julho de 2013
O Inferno Urbano e a Política do Favor, Tutela e Cooptação
Marilena Chauí*
O estopim das manifestações paulistanas foi o aumento da tarifa do transporte público e a ação contestatória da esquerda com o Movimento Passe Livre (MPL), cuja existência data de 2005 e é composto por militantes de partidos de esquerda. Em sua reivindicação específica, o movimento foi vitorioso sob dois aspectos. Conseguiu a redução da tarifa e definiu a questão do transporte público no plano dos direitos dos cidadãos, e portanto afirmou o núcleo da prática democrática, qual seja, a criação e defesa de direitos por intermédio da explicitação (e não do ocultamento) dos conflitos sociais e políticos.
O inferno urbano
Não foram poucos os que, pelos meios de comunicação, exprimiram sua perplexidade diante das manifestações de junho de 2013: de onde vieram e por que vieram se os grandes problemas que sempre atormentaram o país (desemprego, inflação, violência urbana e no campo) estão com soluções bem encaminhadas e reina a estabilidade política? As perguntas são justas, mas a perplexidade, não, desde que voltemos nosso olhar para um ponto que foi sempre o foco dos movimentos populares: a situação da vida urbana nas grandes metrópoles brasileiras.
Quais os traços mais marcantes da cidade de São Paulo nos últimos anos e, sob certos aspectos, extensíveis às demais cidades? Resumidamente, podemos dizer que são os seguintes:
- explosão do uso do automóvel individual. A mobilidade urbana se tornou quase impossível, ao mesmo tempo em que a cidade se estrutura com um sistema viário destinado aos carros individuais em detrimento do transporte coletivo, mas nem mesmo esse sistema é capaz de resolver o problema;
- explosão imobiliária com os grandes condomínios (verticais e horizontais) e shopping centers, que produzem uma densidade demográfica praticamente incontrolável, além de não contar com redes de água, eletricidade e esgoto, os problemas sendo evidentes, por exemplo, na ocasião de chuvas;
- aumento da exclusão social e da desigualdade com a expulsão dos moradores das regiões favorecidas pelas grandes especulações imobiliárias e a consequente expansão das periferias carentes e de sua crescente distância com relação aos locais de trabalho, educação e serviços de saúde. (No caso de São Paulo, como aponta Erminia Maricato, deu-se a ocupação das regiões de mananciais, pondo em risco a saúde de toda a população; em resumo: degradação da vida cotidiana das camadas mais pobres da cidade);
- o transporte coletivo indecente, indigno e mortífero. No caso de São Paulo, sabe-se que o programa do metrô previa a entrega de 450 quilômetros de vias até 1990; de fato, até 2013, o governo estadual apresenta 90 quilômetros. Além disso, a frota de trens metroviários não foi ampliada, está envelhecida e mal conservada; à insuficiência quantitativa para atender à demanda, somam-se atrasos constantes por quebra de trens e dos instrumentos de controle das operações. O mesmo pode ser dito dos trens da CPTM, também de responsabilidade do governo estadual. No caso do transporte por ônibus, sob responsabilidade municipal, um cartel domina completamente o setor sem prestar contas a ninguém: os ônibus são feitos com carrocerias destinadas a caminhões, portanto feitos para transportar coisas, e não pessoas; as frotas estão envelhecidas e quantitativamente defasadas com relação às necessidades da população, sobretudo as das periferias da cidade; as linhas são extremamente longas porque isso as torna mais lucrativas, de maneira que os passageiros são obrigados a trajetos absurdos, gastando horas para ir ao trabalho, às escolas, aos serviços de saúde e voltar para casa; não há linhas conectando pontos do centro da cidade nem linhas interbairros, de modo que o uso do automóvel individual se torna quase inevitável para trajetos menores.
Em resumo: definidas e orientadas pelos imperativos dos interesses privados, as montadoras de veículos, empreiteiras da construção civil e empresas de transporte coletivo dominam a cidade sem assumir nenhuma responsabilidade pública, impondo o que chamo de inferno urbano.
A tradição paulistana de lutas
Recordando: a cidade de São Paulo (como várias das grandes cidades brasileiras) tem uma tradição histórica de revoltas populares contra as péssimas condições do transporte coletivo, isto é, a tradição do quebra-quebra quando, desesperados e enfurecidos, os cidadãos quebram e incendeiam ônibus e trens (à maneira do que faziam os operários no início da Segunda Revolução Industrial, quando usavam os tamancos de madeira – em francês, os sabots, donde a palavra francesa sabotage, sabotagem – para quebrar as máquinas). Entretanto, não foi esse o caminho tomado pelas manifestações atuais e valeria a pena indagar por quê. Talvez porque, vindo da esquerda, o MPL politiza explicitamente a contestação, em vez de politizá-la simbolicamente, como faz o quebra-quebra.
Recordando: nas décadas de 1970 a 1990, as organizações de classe (sindicatos, associações, entidades) e os movimentos sociais e populares tiveram um papel político decisivo na implantação da democracia no Brasil pelos seguintes motivos: introdução da ideia de direitos sociais, econômicos e culturais para além dos direitos civis liberais; afirmação da capacidade auto-organizativa da sociedade; introdução da prática da democracia participativa como condição da democracia representativa a ser efetivada pelos partidos políticos. Numa palavra: sindicatos, associações, entidades, movimentos sociais e movimentos populares eram políticos, valorizavam a política, propunham mudanças políticas e rumaram para a criação de partidos políticos como mediadores institucionais de suas demandas.
Isso quase desapareceu da cena histórica como efeito do neoliberalismo, que produziu:
- fragmentação, terceirização e precarização do trabalho (tanto industrial como de serviços), dispersando a classe trabalhadora, que se vê diante do risco da perda de seus referenciais de identidade e de luta;
- refluxo dos movimentos sociais e populares e sua substituição pelas ONGs, cuja lógica é distinta daquela que rege os movimentos sociais;
- surgimento de uma nova classe trabalhadora heterogênea, fragmentada, ainda desorganizada que, por isso, ainda não tem suas próprias formas de luta e não se apresenta no espaço público e, por isso mesmo, é atraída e devorada por ideologias individualistas como a “teologia da prosperidade” (do pentecostalismo) e a ideologia do “empreendedorismo” (da classe média), que estimulam a competição, o isolamento e o conflito interpessoal, quebrando formas anteriores de sociabilidade solidária e de luta coletiva.
Erguendo-se contra os efeitos do inferno urbano, as manifestações guardaram da tradição dos movimentos sociais e populares a organização horizontal, sem distinção hierárquica entre dirigentes e dirigidos. Mas, diversamente dos movimentos sociais e populares, tiveram uma forma de convocação que as transformou num movimento de massa, com milhares de manifestantes nas ruas.
O pensamento mágico
A convocação foi feita por meio das redes sociais. Apesar da celebração desse tipo de convocação, que derruba o monopólio dos meios de comunicação de massa, é preciso mencionar alguns problemas postos pelo uso dessas redes, que possui algumas características que o aproximam dos procedimentos da mídia:
- é indiferenciado: poderia ser para um show da Madonna, para uma maratona esportiva etc., e calhou ser por causa da tarifa do transporte público;
- tem a forma de um evento, ou seja, é pontual, sem passado, sem futuro e sem saldo organizativo porque, embora tenha partido de um movimento social (o MPL), à medida que cresceu passou à recusa gradativa da estrutura de um movimento social para se tornar um espetáculo de massa. (Dois exemplos confirmam isso: a ocupação de Wall Street pelos jovens de Nova York, que, antes de se dissolver, tornou-se um ponto de atração turística para os que visitavam a cidade; e o caso do Egito, mais triste, pois, com o fato de as manifestações permanecerem como eventos e não se tornarem uma forma de auto-organização política da sociedade, deram ocasião para que os poderes existentes passassem de uma ditadura para outra);
- assume gradativamente uma dimensão mágica, cuja origem se encontra na natureza do próprio instrumento tecnológico empregado, pois este opera magicamente, uma vez que os usuários são, exatamente, usuários, e portanto não possuem o controle técnico e econômico do instrumento que usam – ou seja, desse ponto de vista, encontram-se na mesma situação que os receptores dos meios de comunicação de massa. A dimensão é mágica porque, assim como basta apertar um botão para tudo aparecer, assim também se acredita que basta querer para fazer acontecer. Ora, além da ausência de controle real sobre o instrumento, a magia repõe um dos recursos mais profundos da sociedade de consumo difundida pelos meios de comunicação, qual seja, a ideia de satisfação imediata do desejo, sem qualquer mediação;
- a recusa das mediações institucionais indica que estamos diante de uma ação própria da sociedade de massa, portanto indiferente à determinação de classe social; ou seja, no caso presente, ao se apresentar como uma ação da juventude, o movimento assume a aparência de que o universo dos manifestantes é homogêneo ou de massa, ainda que, efetivamente, seja heterogêneo do ponto de vista econômico, social e político, bastando lembrar que as manifestações das periferias não foram apenas de “juventude” nem de classe média, mas de jovens, adultos, crianças e idosos da classe trabalhadora.
No ponto de chegada, as manifestações introduziram o tema da corrupção política e a recusa dos partidos políticos. Sabemos que o MPL é constituído por militantes de vários partidos de esquerda e, para assegurar a unidade do movimento, evitou a referência aos partidos de origem. Por isso foi às ruas sem definir-se como expressão de partidos políticos, e em São Paulo, quando, na comemoração da vitória, os militantes partidários compareceram às ruas foram execrados, espancados e expulsos como oportunistas – sofreram repressão violenta por parte da massa.
A crítica às instituições políticas não é infundada, possui base concreta:
- no plano conjuntural: o inferno urbano é, efetivamente, responsabilidade dos partidos políticos governantes;
- no plano estrutural: no Brasil, sociedade autoritária e excludente, os partidos políticos tendem a ser clubes privados de oligarquias locais, que usam o público para seus interesses privados; a qualidade dos Legislativos nos três níveis é a mais baixa possível e a corrupção é estrutural; como consequência, a relação de representação não se concretiza porque vigoram relações de favor, clientela, tutela e cooptação;
- a crítica ao PT: de ter abandonado a relação com aquilo que determinou seu nascimento e crescimento, isto é, o campo das lutas sociais auto-organizadas, e ter-se transformado numa máquina burocrática e eleitoral (como têm dito e escrito muitos militantes ao longo dos últimos vinte anos).
Isso, porém, embora explique a recusa, não significa que esta tenha sido motivada pela clara compreensão do problema por parte dos manifestantes. De fato, a maioria deles não exprime em suas falas uma análise das causas desse modo de funcionamento dos partidos políticos, qual seja, a estrutura autoritária da sociedade brasileira, de um lado, e, de outro, o sistema político-partidário montado pelos casuísmos da ditadura. Em lugar de lutar por uma reforma política, boa parte dos manifestantes recusa a legitimidade do partido político como instituição republicana e democrática. Assim, sob esse aspecto, apesar do uso das redes sociais e da crítica aos meios de comunicação, a maioria dos manifestantes aderiu à mensagem ideológica difundida anos a fio pelos meios de comunicação de que os partidos são corruptos por essência. Como se sabe, essa posição dos meios de comunicação tem a finalidade de lhes conferir o monopólio das funções do espaço público, como se não fossem empresas capitalistas movidas por interesses privados. Dessa maneira, a recusa dos meios de comunicação e as críticas a eles endereçadas pelos manifestantes não impediram que grande parte deles aderisse à perspectiva da classe média conservadora difundida pela mídia a respeito da ética.
De fato, a maioria dos manifestantes, reproduzindo a linguagem midiática, falou de ética na política (ou seja, a transposição dos valores do espaço privado para o espaço público), quando, na verdade, se trataria de afirmar a ética da política (isto é, valores propriamente públicos), ética que não depende das virtudes morais das pessoas privadas dos políticos, e sim da qualidade das instituições públicas enquanto instituições republicanas. A ética da política, no nosso caso, depende de uma profunda reforma política que crie instituições democráticas republicanas e destrua de uma vez por todas a estrutura deixada pela ditadura, que força os partidos políticos a fazer coalizões absurdas se quiserem governar, coalizões que comprometem o sentido e a finalidade de seus programas e abrem as comportas para a corrupção. Em lugar da ideologia conservadora e midiática de que, por definição e por essência, a política é corrupta, trata-se de promover uma prática inovadora capaz de criar instituições públicas que impeçam a corrupção, garantam a participação, a representação e o controle dos interesses públicos e dos direitos pelos cidadãos. Numa palavra, uma invenção democrática.
Ora, ao entrar em cena o pensamento mágico, os manifestantes deixam de lado o fato de que, até que uma nova forma da política seja criada num futuro distante, quando, talvez, a política se realizará sem partidos, por enquanto, numa república democrática (ao contrário de numa ditadura), ninguém governa sem um partido, pois é este que cria e prepara quadros para as funções governamentais para a concretização dos objetivos e das metas dos governantes eleitos. Bastaria que os manifestantes se informassem sobre o governo Collor para entender isso: Collor partiu das mesmas afirmações feitas por uma parte dos manifestantes (partido político é coisa de “marajá” e é corrupto) e se apresentou como um homem sem partido. Resultado: não teve quadros para montar o governo nem diretrizes e metas coerentes e deu feição autocrática ao governo, isto é, “o governo sou eu”. Deu no que deu.
Além disso, parte dos manifestantes está adotando a posição ideológica típica da classe média, que aspira por governos sem mediações institucionais, e, portanto, ditatoriais. Eis porque surge a afirmação de muitos manifestantes, enrolados na bandeira nacional, de que “meu partido é meu país”, ignorando, talvez, que essa foi uma das afirmações fundamentais do nazismo contra os partidos políticos.
Assim, em lugar de inventar uma nova política, de ir rumo a uma invenção democrática, o pensamento mágico de grande parte dos manifestantes se ergueu contra a política, reduzida à figura da corrupção. Historicamente, sabemos onde isso foi dar. E por isso não nos devem surpreender, ainda que devam nos alarmar, as imagens de jovens militantes de partidos e movimentos sociais de esquerda espancados e ensanguentados durante a manifestação de comemoração da vitória do MPL. Já vimos essas imagens na Itália dos anos 1920, na Alemanha dos anos 1930 e no Brasil dos anos 1960-1970.
Conclusão provisória
Do ponto de vista simbólico, as manifestações possuem um sentido importante que contrabalança os problemas aqui mencionados.
Não se trata, como se ouviu dizer nos meios de comunicação, que finalmente os jovens abandonaram a “bolha” do condomínio e do shopping center e decidiram ocupar as ruas (já podemos prever o número de novelas e minisséries que usarão essa ideia para incrementar o programa High School Brasil, da Rede Globo). Simbolicamente, malgrado eles próprios e malgrado suas afirmações explícitas contra a política, os manifestantes realizaram um evento político: disseram não ao que aí está, contestando as ações dos Poderes Executivos municipais, estaduais e federal, assim como as do Poder Legislativo nos três níveis. Praticando a tradição do humor corrosivo que percorre as ruas, modificaram o sentido corriqueiro das palavras e do discurso conservador por meio da inversão das significações e da irreverência, indicando uma nova possibilidade de práxis política, uma brecha para repensar o poder, como escreveu um filósofo político sobre os acontecimentos de maio de 1968 na Europa.
Justamente porque uma nova possibilidade política está aberta, algumas observações merecem ser feitas para que fiquemos alertas aos riscos de apropriação e destruição dessa possibilidade pela direita conservadora e reacionária.
Comecemos por uma obviedade: como as manifestações são de massa (de juventude, como propala a mídia) e não aparecem em sua determinação de classe social, que, entretanto, é clara na composição social das manifestações das periferias paulistanas, é preciso lembrar que uma parte dos manifestantes não vive nas periferias das cidades, não experimenta a violência do cotidiano experimentada pela outra parte dos manifestantes. Com isso, podemos fazer algumas indagações. Por exemplo: os jovens manifestantes de classe média que vivem nos condomínios têm ideia de que suas famílias também são responsáveis pelo inferno urbano (o aumento da densidade demográfica dos bairros e a expulsão dos moradores populares para as periferias distantes e carentes)? Os jovens manifestantes de classe média que, no dia em que fizeram 18 anos, ganharam de presente um automóvel (ou estão na expectativa do presente quando completarem essa idade) têm ideia de que também são responsáveis pelo inferno urbano? Não é paradoxal, então, que se ponham a lutar contra aquilo que é resultado de sua própria ação (isto é, de suas famílias), mas atribuindo tudo isso à política corrupta, como é típico da classe média?
Essas indagações não são gratuitas nem expressão de má vontade a respeito das manifestações de 2013. Elas têm um motivo político e um lastro histórico.
Motivo político: assinalamos anteriormente o risco de apropriação das manifestações rumo ao conservadorismo e ao autoritarismo. Só será possível evitar esse risco se os jovens manifestantes levarem em conta algumas perguntas:
- estão dispostos a lutar contra as ações que causam o inferno urbano, e portanto enfrentar pra valer o poder do capital de montadoras, empreiteiras e cartéis de transporte, que, como todos sabem, não se relacionam pacificamente (para dizer o mínimo) com demandas sociais?
- estão dispostos a abandonar a suposição de que a política se faz magicamente sem mediações institucionais?
- estão dispostos a se engajar na luta pela reforma política, a fim de inventar uma nova política, libertária, democrática, republicana, participativa?
- estão dispostos a não reduzir sua participação a um evento pontual e efêmero e a não se deixar seduzir pela imagem que deles querem produzir os meios de comunicação?
Lastro histórico: quando Luiza Erundina, partindo das demandas dos movimentos populares e dos compromissos com a justiça social, propôs a Tarifa Zero para o transporte público de São Paulo, ela explicou à sociedade que a tarifa precisava ser subsidiada pela prefeitura e que não faria o subsídio implicar cortes nos orçamentos de educação, saúde, moradia e assistência social, isto é, dos programas sociais prioritários de seu governo. Antes de propor a Tarifa Zero, ela aumentou em 500% a frota da CMTC (explicação para os jovens: CMTC era a antiga empresa municipal de transporte) e forçou os empresários privados a renovar sua frota. Depois disso, em inúmeras audiências públicas, apresentou todos os dados e planilhas da CMTC e obrigou os empresários das companhias privadas de transporte coletivo a fazer o mesmo, de maneira que a sociedade ficou plenamente informada quanto aos recursos que seriam necessários para o subsídio. Ela propôs, então, que o subsídio viesse de uma mudança tributária: o IPTU progressivo, isto é, o imposto predial e territorial seria aumentado para os imóveis dos mais ricos, que contribuiriam para o subsídio junto com outros recursos da prefeitura. Na medida que os mais ricos, como pessoas privadas, têm serviçais domésticos que usam o transporte público e, como empresários, têm funcionários usuários desse mesmo transporte, uma forma de realizar a transferência de renda, que é base da justiça social, seria exatamente fazer com que uma parte do subsídio viesse do novo IPTU.
Os jovens manifestantes de hoje desconhecem o que se passou: comerciantes fecharam ruas inteiras, empresários ameaçaram lockout das empresas, nos “bairros nobres” foram feitas manifestações contra o “totalitarismo comunista” da prefeita e os poderosos da cidade “negociaram” com os vereadores a não aprovação do projeto de lei. A Tarifa Zero não foi implantada. Discutida na forma de democracia participativa, apresentada com lisura e ética política, sem qualquer mancha possível de corrupção, a proposta foi rejeitada. Esse lastro histórico mostra o limite do pensamento mágico, pois não basta ausência de corrupção, como imaginam os manifestantes, para que tudo aconteça imediatamente da melhor maneira e como se deseja.
Cabe uma última observação: se não levarem em consideração a divisão social das classes, isto é, os conflitos de interesses e de poderes econômico-sociais na sociedade, os manifestantes não compreenderão o campo econômico-político no qual estão se movendo quando imaginam estar agindo fora da política e contra ela. Entre os vários riscos dessa imaginação, convém lembrar aos manifestantes que se situam à esquerda que, se não tiverem autonomia política e se não a defenderem com muita garra, poderão, no Brasil, colocar água no moinho dos mesmos poderes econômicos e políticos que organizaram grandes manifestações de direita na Venezuela, na Bolívia, no Chile, no Peru, no Uruguai e na Argentina. E a mídia, penhorada, agradecerá pelos altos índices de audiência.
* Marilena Chauí é filosofa, professora na FFLCH da Universidade de São Paulo. Ela é também autora no vol. 3 de O Direito Achado na Rua (Introdução Crítica ao Direito Agrário) e foi membro do Conselho Editorial da Revista Direito e Avesso - Boletim da Nova Escola Jurídica Brasileira (NAIR). Destaque-se, no n. 2, de Direito e Avesso, o artigo de sua autoria: "" Roberto Lyra Filho ou da Dignidade Política do Direito".
segunda-feira, 1 de julho de 2013
Uma esquerda à altura da crise da República
Por Tarso Genro*
Quinta-feira,
27 de junho, Porto Alegre, frente do Palácio Piratini, sede do governo gaúcho.
Nove horas da noite. Na Praça da Matriz, mais de quatro mil manifestantes fazem
seu protesto legítimo em perfeita harmonia, inclusive com as forças da Brigada
Militar, que garantem a segurança para a cidadania manifestar-se livremente. Um
cordão de isolamento de policiais militares, protegidos por escudos, garante a
integridade do Palácio.
Durante
uma hora e meia os policiais aguentam impávidos e disciplinados, por ordem
originária do próprio Governador, uma chuva de pedras, garrafas e paus, jogadas
por aproximadamente 150 mascarados, postados no lado esquerdo do Praça, fundidos
no meio de uns 200 manifestantes, que não impedem suas ações violentas e
provocativas, mas inibem uma resposta da Polícia, cuja reação poderia atingir
pessoas que, inocentemente ou não, não estavam envolvidas na “ação direta”.
No
céu, um helicóptero com letreiros eletrônicos voeja rente à Praça, com dizeres
contra a existência dos Partidos e afirma que, desta forma –sem os partidos- o
Brasil “tem jeito”. Quem promoveu este vôo? Quem o pagou? Como ele se conecta
com as manifestações?
Dentro
do Palácio um “governo de partidos”, eleito no primeiro turno, que governa com
mecanismos de participação popular combinados de forma inédita, tais como o
Orçamento Participativo, o Gabinete Digital, os Conselhos Regionais de
Desenvolvimento, o Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social , a Consulta
Popular. Esta, por exemplo, é um procedimento de votação eletrônica ( 1 milhão e
100 mil votos no anos passado) que, através de perguntas diretas à população,
promove a liberação hierarquizada de recursos (este ano, mais de duzentos
milhões de reais) para investimentos, principalmente em pequenas obras e nas
áreas da saúde e da educação.
Seguramente,
neste evento emblemático temos três protagonistas claros da crise: a cidadania
manifestando-se na defesa de direitos; grupos “sem rosto” que servem de massa de
manobra para provocações, como ocorre historicamente nestas conjunturas (cujos
objetivos são obscuros, mas funcionam como desestabilizadores da democracia
política); e a direita conspirativa, que trabalha nas “sombras” –no caso, “no
ar”- dando seqüência ao trabalho feito pela mídia dominante, que nos últimos
anos dissolveu o prestígio dos partidos, dos políticos em geral e de todas as
instituições democráticas da República.
As
causas mais visíveis da insatisfação popular, certamente estão nas péssimas
condições do transporte coletivo e do sistema de saúde pública nas grandes
regiões metropolitanas. Ou seja, na verdade faltou Estado, seja como prestador,
seja como organizador-controlador, o que se combinou com o ascenço de milhões de
jovens ao mundo do trabalho e às universidades públicas e não públicas (estas,
através do Prouni), sufocando, não só a mobilidade destas grandes regiões, mas
também a capacidade da estruturas públicas prestarem serviços de mediana
qualidade. De outra parte, os apelos da sociedade consumista oferecem promessas
espetaculares que apenas uma parte da população pode acessar, transformando o
desejo sonegado de muitos em frustração, crime e violência irracional.
Não
se pode omitir que sobre estas condições ocorreu um processo geral de hipnose
fascista, que não tem precedentes na História do país. E esta “hipnose”
concentrou seu convencimento, não na denúncia das desigualdades e da riqueza
concentrada, mas na denúncia da “corrupção”, como se ela fosse uma propriedade e
uma qualidade dos políticos atuais e dos governos atuais.
Não
foi promovido o combate à corrupção como mazela de um Estado reprodutor de
desigualdades e protetor de privilégios corporativos e de classe, pois isso
suporia reconhecer que tanto nos partidos, no serviço público, como nas
empresas, em todas instituições (até mesmo na mídia), há uma grande maioria de
pessoas que não tolera a corrupção e que não a aceita, por princípios morais e
políticos. A campanha foi feita de modo a incriminar de maneira plena a esfera
da política, os partidos e, particularmente, os dois governos que colocaram os
pobres e os trabalhadores como protagonistas da cena pública.
Ao
fazer uma incriminação generalizada colocando, de um lado, a grande imprensa
como a virtude moral do país, e, de outro lado, os partidos e os agentes
públicos como a fontes da corrupção, o que ocorreu foi a degradação dos
instrumentos democráticos para combater a própria corrupção, restando a grande
mídia como fonte de toda a moralidade republicana, com poderes totalitários para
dizer quem presta e quem não presta, quem merece confiança e quem não merece.
Assim, quando um Juiz Privado, a mídia, transforma-se em monopólio do Juízo
Público, estamos entrando numa crise da República: a marginalidade violenta e os
fascistas clássicos e pós-modernos, que emergem nesta situação, não precisam
mais se conter e sentem-se autorizados ideologicamente a saquear e a
incendiar.
É
preciso compreender, porém, que o que está ocorrendo no país não é mera invenção
midiática. É óbvio que os partidos de esquerda e as instituições “dissolvidas”
por esta manipulação sobre a corrupção não são inocentes. Seus vícios, seu
acomodamento ideológico, seu afastamento das questões mais intensas que
desqualificam a vida cotidiana do povo, facilitaram esta agenda da direita que,
como se vê, sorri satisfeita com toda a crise e pretende transformá-la em cavalo
de batalha eleitoral. Nossos partidos precisam captar esta energia criadora que
vem das ruas e transformá-la em políticas democráticas de largo alcance.
Nestas
circunstâncias, a crise da democracia transmudou-se em crise da República. Isso
não quer dizer, no entanto, que o pacto democrático não possa ser recuperado,
tanto pela “via conservadora”, como pela “via da radicalização da democracia”.
Na primeira hipótese, pela “via conservadora”, basta que os poderes voltem a
funcionar em relativa harmonia, para simular que “as coisas começaram a
melhorar”. Se eles voltarem a operar nesta relativa harmonia, os clamores
populares poderão deixar de ser valorizados pelos meios de comunicação e a
situação poderá se acalmar, mas a democracia não será revalorizada e a República
não será reformada. Nem serão criadas novas instituições que permitam fortalecer
a intervenção do povo no processo político e, em consequência, as “crises” virão
ainda mais fortes no futuro.
A
essência da crise atual, portanto, é que os poderes republicanos e as suas
instituições políticas não tem mais chances de recuperar sua plena legitimidade
para dar eficiência à democracia -capacidade de resposta à justas demandas
populares-, sem novas formas de participação nas decisões públicas e sem novas
fontes de legitimação do poder. O Congresso tem mecanismos burocráticos de
funcionamento que permitem, frequentemente, que interesses escusos impeçam
votações e que minorias sem programa e sem princípios dominem a cena
parlamentar, desprestigiando todo o corpo representativo. É preciso um sopro
“direto” do povo para que ele se atualize e se sensibilize com os problemas
reais que o país atravessa.
Falo
aqui de uma assembléia constituinte (revisora) específica, convocada conforme a
Constituição, por Emenda Constitucional, para conectar as instituições políticas
da República com o povo, que é o poder constituinte real. Seu objetivo é
integrar, de forma direta, a atual energia política despertada pelas grandes
manifestações de massas, com delegados eleitos especialmente para fazer a
Reforma Política.
Estes
representantes, eleitos para este fim específico, impossibilitados de
concorrerem nas próximas eleições, (admitido um percentual de representantes
“sem partido”), pressionados democraticamente pela sociedade em movimento
poderiam, através de mudanças substancias nas normas constitucionais que versam
sobre os Partidos, financiamento das campanhas e Direito Eleitoral,
“democratizar a democracia”, como diz Boaventura Souza Santos. E assim expandir
os marcos da participação direta do povo, já previstos na atual Constituição
Federal, combinando-a com a representação estável e previsível dos processos
eleitorais tradicionais.
O
que está ocorrendo durante as manifestações é também a seqüência de uma lenta e
eficaz lavagem cerebral midiática, acolhida amplamente nas “redes sociais”, cujo
objetivo está sintetizado na visão de que “o gigante acordou”, “vamos construir
um novo Brasil” e “vamos varrer com a corrupção”. Tais sínteses traduzem uma
mentira meticulosamente construída, pois os avanços democráticos que o país vem
sofrendo, inclusive na luta contra a corrupção, datam da Constituição de 88 e,
no plano social, dos dois governos do Presidente Lula, ampliados inclusive no
atual governo.
Estas
“palavras de ordem”, induzidas dos porões da direita extrema, levam as novas
gerações a uma romantização do futuro, com graves frustrações de médio prazo.
Embora a crise das regiões metropolitanas -motivação imediata das
inconformidades em pauta- venha de erros e omissões dos atuais e anteriores
governos (especialmente no que refere ao transporte urbano e a saúde), nenhuma
destas questões será resolvida em profundidade nos próximos dez anos. São
bilhões a serem investidos e repassados aos estados e às prefeituras, que
precisam enfrentar as agruras da crise mundial e a promoção de uma Reforma
Tributária, que principalmente desonere os pobres e as novas classes médias e,
em contrapartida, onere as grandes fortunas e as transações do capital
especulativo e rentista.
O
fato é que as grandes mobilizações populares abriram caminhos que estão em
disputa no campo da política. Os partidos de esquerda, se estiveram à altura da
crise atual, se forem mesmo de esquerda e democráticos, devem adotar uma
estratégia unitária de revalorização da ação política e dos partidos,
combinando-a com a criação de novos canais de democracia direta e de
participação popular, articulados com a democracia representativa. Ou seremos
vencidos pelo conservadorismo, que poderá nos levar às novas formas de
totalitarismo pós-moderno, que tanto controlará as mentes, a pauta, como ditará
o que é lícito ou ilícito, numa democracia ainda mais elitista do que a
presente.
*Tarso
Genro é Governador do Estado do Rio Grande do Sul; é autor em O Direito Achado na Rua, desde o primeiro volume da série e, desde antes, na Revista Direito e Avesso - Boletim da Nova Escola Jurídica Brasileira (Nair).