sexta-feira, 30 de setembro de 2016

A incerteza entre o medo e a esperança

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Vivemos em um mundo em que as incertezas, descendentes ou ascendentes, se transformam cada vez mais em incertezas abissais.

Boaventura de Sousa Santos

ufrgs

Diz Espinoza que as duas emoções básicas dos seres humanos são o medo e a esperança. A incerteza é a vivência das possibilidades que emergem das múltiplas relações que podem existir entre o medo e a esperança. Sendo diferentes essas relações, diferentes são os tipos de incerteza. O medo e a esperança não estão igualmente distribuídos por todos os grupos sociais ou épocas históricas. Há grupos sociais em que o medo sobrepuja de tal modo a esperança que o mundo lhes acontece sem que eles possam fazer acontecer o mundo. Vivem em espera, mas sem esperança. Estão vivos hoje, mas vivem em condições tais que podem estar mortos amanhã. Alimentam os filhos hoje, mas não sabem se os poderão alimentar amanhã. A incerteza em que vivem é uma incerteza descendente, porque o mundo lhes acontece de modos que pouco dependem deles. Quando o medo é tal que a esperança desapareceu de todo, a incerteza descendente torna-se abissal e converte-se no seu oposto: na certeza do destino, por mais injusto que seja. Há, por outro lado, grupos sociais em que a esperança sobrepuja de tal modo o medo que o mundo lhes é oferecido como um campo de possibilidades que podem gerir a seu bel-prazer. A incerteza em que vivem é uma incerteza ascendente na medida em que tem lugar entre opções portadoras de resultados em geral desejados, mesmo que nem sempre totalmente positivos. Quando a esperança é tão excessiva que perde a noção do medo, a incerteza ascendente torna-se abissal e transforma-se no seu oposto: na certeza da missão de apropriar o mundo por mais arbitrária que seja.

A maioria dos grupos sociais vive entre esses dois extremos, com mais ou menos medo, com mais ou menos esperança, passando por períodos em que dominam as incertezas descendentes e outros em que dominam as incertezas ascendentes. As épocas distinguem-se pela preponderância relativa do medo e da esperança e das incertezas a que as relações entre um e outra dão azo.

Que tipo de época é a nossa?

Vivemos em uma época em que a pertença mútua do medo e da esperança parece colapsar perante a crescente polarização entre o mundo do medo sem esperança e o mundo da esperança sem medo, ou seja, um mundo em que as incertezas, descendentes ou ascendentes, se transformam cada vez mais em incertezas abissais, isto é, em destinos injustos para os pobres e sem poder e missões de apropriação do mundo para os ricos e poderosos. Uma porcentagem cada vez maior da população mundial vive correndo riscos iminentes contra os quais não há seguros ou, se os há, são financeiramente inacessíveis, como o risco de morte em conflitos armados em que não participam ativamente, o risco de doenças causadas por substâncias perigosas usadas de modo massivo, legal ou ilegalmente, o risco de violência causada por preconceitos raciais, sexistas, religiosos ou outros, o risco de pilhagem dos seus magros recursos, sejam eles salários ou pensões, em nome de políticas de austeridade sobre as quais não têm qualquer controle, o risco de expulsão das suas terras ou das suas casas por imperativos de políticas de desenvolvimento das quais nunca se beneficiarão, o risco de precariedade no emprego e de colapso de expectativas suficientemente estabilizadas para planejar a vida pessoal e familiar ao arrepio da propaganda da autonomia e do empreendedorismo.

Em contrapartida, grupos sociais cada vez mais minoritários em termos demográficos acumulam poder econômico, social e político cada vez maior, um poder quase sempre baseado no domínio do capital financeiro.  Essa polarização vem de longe, mas é hoje mais transparente e talvez mais virulenta. Consideremos a seguinte citação:

Se uma pessoa não soubesse nada acerca da vida do povo deste nosso mundo cristão e lhe fosse perguntado “há um certo povo que organiza o modo de vida de tal forma que a esmagadora maioria das pessoas, noventa e nove por cento delas, vive de trabalho físico sem descanso e sujeita a necessidades opressivas, enquanto um por cento da população vive na ociosidade e na opulência. Se o tal um por cento da população professar uma religião, uma ciência e uma arte, que religião, arte e ciência serão essas?” A resposta não poderá deixar de ser: “uma religião, uma ciência e uma arte pervertidas”.

Dir-se-á que se trata de um extracto dos manifestos do Movimento Occupy ou do Movimentos dos Indignados do início da presente década. Nada disso. Trata-se de uma entrada do diário de Liev Tolstói no dia 17 de março de 1910, pouco tempo antes de morrer.

Quais as incertezas?

Como acabei de referir, as incertezas não estão igualmente distribuídas, nem quanto ao tipo nem quanto à intensidade, entre os diferentes grupos e classes sociais que compõem as nossas sociedades. Há pois que identificar os diferentes campos em que tais desigualdades mais impacto têm na vida das pessoas e das comunidades.

A incerteza do conhecimento. Todas as pessoas são sujeitos de conhecimentos e a esmagadora maioria define e exerce as suas práticas com referência a outros conhecimentos que não o científico. Vivemos, no entanto, uma época, a época da modernidade eurocêntrica, que atribui total prioridade ao conhecimento científico e às práticas diretamente derivadas dele: as tecnologias. Isso significa que a distribuição epistemológica e vivencial do medo e da esperança é definida por parâmetros que tendem a beneficiar os grupos sociais que têm mais acesso ao conhecimento científico e à tecnologia. Para estes grupos a incerteza é sempre ascendente na medida em que a crença no progresso científico é uma esperança suficientemente forte para neutralizar qualquer medo quanto às limitações do conhecimento atual. Para esses grupos, o princípio da precaução é sempre algo negativo porque trava o progresso infinito da ciência. A injustiça cognitiva que isso cria é vivida pelos grupos sociais com menos acesso ao conhecimento científico como uma inferioridade geradora de incerteza quanto ao lugar deles num mundo definido e legislado com base em conhecimentos simultaneamente poderosos e estranhos que os afetam de modos sobre os quais têm pouco ou nenhum controle. Trata-se de conhecimentos produzidos sobre eles e eventualmente contra eles e, em todo caso, nunca produzidos com eles. A incerteza tem uma outra dimensão: a incerteza sobre a validade dos conhecimentos próprios, por vezes ancestrais, pelos quais têm pautado a vida. Terão de os abandonar e substituir por outros? Esses novos conhecimentos são-lhes dados, vendidos, impostos e, em todos os casos, a que preço e a que custo? Os benefícios trazidos pelos novos conhecimentos serão superiores aos prejuízos? Quem colherá os benefícios, e quem, os prejuízos? O abandono dos conhecimentos próprios envolverá um desperdício da experiência? Com que consequências? Ficarão com mais ou menos capacidade para representar o mundo como próprio e para transformá-lo de acordo com as suas aspirações?

A incerteza da democracia. A democracia liberal foi concebida como um sistema de governo assente na incerteza de resultados e na certeza dos processos. A certeza dos processos garantia que a incerteza dos resultados fosse igualmente distribuída por todos os cidadãos. Os processos certos permitiam que os diferentes interesses vigentes na sociedade se confrontassem em pé de igualdade e aceitassem como justos os resultados que decorressem desse confronto. Era esse o princípio básico da convivência democrática. Essa era a teoria mas na prática as coisas foram sempre muito diferentes, e hoje a discrepância entre a teoria e a prática atinge proporções perturbadoras.

Em primeiro lugar, durante muito tempo só uma pequena parte da população podia votar e por isso, por mais certos e corretos que fossem os processos, eles nunca poderiam ser mobilizados de modo a ter em conta os interesses das maiorias. A incerteza dos resultados só em casos muito raros poderia beneficiar as maiorias: nos casos em que os resultados fossem o efeito colateral das rivalidades entre as elites políticas e os diferentes interesses das classes dominantes que elas representavam. Não admira, pois, que durante muito tempo as maiorias tenham visto a democracia de pernas para o ar: um sistema de processos incertos cujos resultados eram certos, sempre ao serviço dos interesses das classes e grupos dominantes. Por isso, durante muito tempo, as maiorias estiveram divididas: entre os grupos que queriam fazer valer os seus interesses por outros meios que não os da democracia liberal (por exemplo, a revolução), e os grupos que lutavam por ser incluídos formalmente no sistema democrático e assim esperar que a incerteza dos resultados viesse no futuro a favorecer os seus interesses. A partir de então as classes e os grupos dominantes (isto é, com poder social e econômico não sufragado democraticamente) passaram a usar outra estratégia para fazer funcionar a democracia a seu favor. Por um lado, lutaram para que fosse eliminada qualquer alternativa ao sistema democrático liberal, o que conseguiram simbolicamente em 1989 no dia em que caiu o Muro de Berlim.

Por outro lado, passaram a usar a certeza dos processos para os manipular de modo a que os resultados os favorecessem sistematicamente. Porém, ao eliminarem a incerteza dos resultados, acabaram por destruir a certeza dos processos. Ao poderem ser manipulados por quem tivesse poder social e econômico para tal, os processos democráticos, supostamente certos, tornaram-se incertos. Pior do que isso, ficaram sujeitos a uma única certeza: a possibilidade de serem livremente manipulados por quem tivesse poder para tal.

Por essas razões, a incerteza das grandes maiorias é descendente e corre o risco de se tornar abissal. Tendo perdido a capacidade e mesmo a memória de uma alternativa à democracia liberal, que esperança podem ter no sistema democrático liberal? Será que o medo é de tal modo intenso que só lhes reste a resignação perante o destino? Ou, pelo contrário, há na democracia um embrião de genuinidade que pode ser ainda usado contra aqueles que a transformaram numa farsa cruel?

A incerteza da natureza. Sobretudo desde a expansão europeia a partir do final do século XV, a natureza passou a ser considerada pelos europeus um recurso natural desprovido de valor intrínseco e por isso disponível sem condições nem limites para ser explorado pelos humanos. Esta concepção, que era nova na Europa e não tinha vigência em nenhuma outra cultura do mundo, tornou-se gradualmente dominante à medida que o capitalismo, o colonialismo e o patriarcado (este último reconfigurado pelos anteriores) se foram impondo em todo o mundo considerado moderno. Esse domínio foi de tal modo profundo que se converteu na base de todas as certezas da época moderna e contemporânea: o progresso. Sempre que a natureza pareceu oferecer resistência à exploração tal foi visto, quando muito, como uma incerteza ascendente em que a esperança sobrepujava o medo. Foi assim que o Adamastor de Luis de Camões foi corajosamente vencido e a vitória sobre ele se chamou Cabo da Boa Esperança.

Houve povos que nunca aceitaram esta ideia da natureza porque aceitá-la equivaleria ao suicídio. Os povos indígenas, por exemplo, viviam em tão íntima relação com a natureza que esta nem sequer lhes era exterior; era, pelo contrário, a mãe-terra, um ser vivente que os englobava a eles e a todos os seres vivos presentes, passados e futuros. Por isso, a  terra não lhes pertencia; eles pertenciam à terra. Essa concepção era tão mais verosímil que a eurocêntrica e tão perigosamente hostil aos interesses colonialistas dos europeus que o modo mais eficaz de a combater era eliminar os povos que a defendiam, transformando-os num obstáculo natural entre outros à exploração da natureza. A certeza  desta missão era tal que as terras dos povos indígenas eram consideradas terra de ninguém, livre e desocupada, apesar de nelas viver gente de carne e osso desde tempos imemoriais.

Essa concepção da natureza foi de tal modo inscrita no projeto capitalista, colonialista e patriarcal moderno que naturalizar  se tornou o modo mais eficaz de atribuir um caráter incontroverso à certeza. Se algo é natural, é assim porque não pode ser doutro modo, seja isso consequência da preguiça e da lascívia das populações que vivem entre os trópicos, da incapacidade das mulheres para certas funções ou da existência de raças e a “natural” inferioridade das populações de cor mais escura.

Essas certezas ditas naturais nunca foram absolutas, mas encontraram sempre meios eficazes para fazerem crer que eram. Porém, nos últimos cem anos elas começaram a revelar zonas de incerteza e, em tempos mais recentes, as incertezas passaram a ser mais verossímeis que as certezas, quando não conduziram a novas certezas de sentido oposto. Muitos fatores contribuíram para isso. Seleciono dois dos mais importantes. Por um lado, os grupos sociais declarados naturalmente inferiores nunca se deixaram vencer inteiramente e, sobretudo a partir da segunda metade do século passado, conseguiram fazer ouvir a sua plena humanidade de modo suficientemente alto e eficaz a ponto de a transformar num conjunto de reivindicações que entraram na agenda social política e cultural. Tudo o que era natural se desfez no ar, o que criou incertezas novas e surpreendentes aos grupos sociais considerados naturalmente superiores, acima de tudo a incerteza de não saberem como manter os seus privilégios senão enquanto não contestados pelas vítimas deles. Daqui nasce uma das incertezas mais tenazes do nosso tempo: será possível reconhecer simultaneamente o direito à igualdade e o direito ao reconhecimento da  diferença? Por que continua a ser tão difícil aceitar o metadireito que parece fundar todos os outros e que se pode formular assim: temos o direito a ser iguais quando a diferença nos inferioriza, temos o direito a ser diferentes quando a igualdade nos descaracteriza?

O segundo fator é a crescente revolta da natureza perante tão intensa e prolongada agressão sob a forma das alterações climáticas que põem em risco a existência de diversas formas de vida na terra, entre elas a dos humanos. Alguns grupos humanos estão já definitivamente afetados, quer por verem os seus habitats submersos pela elevação das águas do mar, quer por serem obrigados a deixar as suas terras desertificadas de modo irreversível.  A terra mãe parece estar a elevar a voz sobre as ruínas da casa que era dela para poder ser de todos e que os humanos modernos destruíram movidos pela cobiça, voracidade, irresponsabilidade, e, afinal, pela ingratidão sem limites. Poderão os humanos aprender a partilhar o que resta da casa que julgavam ser só sua e onde afinal habitavam por cedência generosa da terra mãe? Ou preferirão o exílio dourado das fortalezas neofeudais enquanto as maiorias lhes rondam os muros e lhes tiram o sono, por mais legiões de cães, arsenais de câmeras de vídeo, quilômetros de cercas de arame farpado e de vidros à prova de bala que os protejam da realidade mas nunca dos fantasmas da realidade? Estas são as incertezas cada vez mais abissais do nosso tempo.

A incerteza da dignidade.  Todo o ser humano (e, se calhar, todo o ser vivo) aspira a ser tratado com dignidade, entendendo por tal o reconhecimento do seu valor intrínseco, independentemente do valor que outros lhe atribuam em função de fins instrumentais que lhe sejam estranhos. A aspiração da dignidade existe em todas as culturas e expressa-se segundo idiomas e narrativas muito distintas, tão distintas que por vezes são incompreensíveis para quem não comungue da cultura de que emergem. Nas últimas décadas os direitos humanos transformaram-se numa linguagem e numa narrativa hegemônicas para nomear a dignidade dos seres humanos. Todos os Estados e organizações internacionais proclamam a exigência dos direitos humanos e propõem-se defendê-los. No entanto, qual Alice de Lewis Carrol, em Through the Looking-Glass [Através do Espelho], atravessando o espelho que esta narrativa consensual propõe, ou olhando o mundo com os olhos da Belimunda do romance de José Saramago, Memorial do Convento, que viam no escuro, deparamo-nos com inquietantes verificações: a grande maioria dos seres humanos não são sujeitos de direitos humanos, são antes objetos dos discursos estatais e não estatais de direitos humanos; há muito sofrimento humano injusto que não é considerado violação de direitos humanos; a defesa dos direitos humanos tem sido frequentemente invocada para invadir países, pilhar as suas riquezas, espalhar a morte entre vítimas inocentes; no passado, muitas lutas de libertação contra a opressão e o colonialismo foram conduzidas  em nome de outras linguagens e narrativas emancipatórias e sem nunca fazerem referência aos direitos humanos. Essas inquietantes verificações, uma vez postas ao espelho das incertezas que tenho vindo a mencionar, dão azo a uma nova incerteza, também ela fundadora do nosso tempo. A primazia da linguagem dos direitos humanos é produto de uma vitória histórica ou de uma derrota histórica? A invocação dos direitos humanos é um instrumento eficaz na luta contra a indignidade a que tanto grupos sociais são sujeitos ou é antes um obstáculo que desradicaliza e trivializa a opressão em que se traduz a indignidade e adoça a má consciência dos opressores?

São tantas as incertezas do nosso tempo, e assumem um caráter descendente para tanta gente, que o medo parece estar a triunfar sobre a esperança. Deve esta situação levar-nos ao pessimismo de Albert Camus que em 1951 escreveu amargamente: “Ao fim de vinte séculos a soma do mal não diminuiu no mundo. Não houve nenhuma parusia, nem divina nem revolucionária”? Penso que não. Deve apenas levar-nos a pensar que, nas condições atuais, a revolta e a luta contra a injustiça que produz, difunde e aprofunda a incerteza descendente, sobretudo a incerteza abissal, têm de ser travadas com uma mistura complexa de muito medo e de muita esperança,  contra o destino auto-infligido dos oprimidos e a missão arbitrária dos opressores. A luta terá mais êxito, e a revolta, mais adeptos, na medida em que mais e mais gente se for dando conta de que o destino sem esperança das maiorias sem poder é causado pela esperança sem medo das minorias com poder.

Os países não se demoram nas encruzilhadas – 1ª parte (por Boaventura de Sousa Santos)

http://www.sul21.com.br/jornal/os-paises-nao-se-demoram-nas-encruzilhadas-1a-parte-por-boaventura-de-souza-santos/

O golpe parlamentar-judicial que ocorreu no Brasil vai ter repercussões na vida social e política do país difíceis de prever, ainda que, na versão oficial e na dos EUA, tudo tenha corrido dentro da normalidade democrática. Mas são também de prever repercussões internacionais, não só porque o Brasil é a sétima economia do mundo e assumiu nos últimos anos uma política internacional relativamente autônoma, tanto no plano regional como no plano mundial, através da participação na construção do bloco dos BRICS, mas também porque o modelo de desenvolvimento que adotou nos últimos treze anos pareciam indicar que são possíveis alternativas parciais ao neoliberalismo puro e duro, desde que não se toque na sua guarda avançada, o capital financeiro global (é certo que os BRICS pretendiam a prazo tocar-lhe – banco de desenvolvimento, transações nas moedas próprias – e por isso tornou-se urgente neutralizá-los).
Para especular informadamente sobre possíveis repercussões é preciso determinar a natureza política e constitucional do regime político pós-golpe. Houve golpe porque não foi provado o crime de responsabilidade, o único facto que num regime presidencial podia justificar o impedimento. Assim sendo, é fácil concluir que houve uma interrupção constitucional, mas a sua natureza é difícil de tipificar. Não houve declaração de guerra, não foi declarado o estado de sítio ou o estado de emergência. Foi uma interrupção anômala que resultou do inchamento excessivo de um dos órgãos de soberania, o poder legislativo, com o consentimento e até a colaboração ativa do único órgão de soberania que podia travar a interrupção constitucional, o poder judicial. Visto à luz dos influentes debates dos anos vinte do século passado, o que se passou no Brasil foi o triunfo de Carl Schmitt (primazia do soberano) sobre Hans Kelsen (controle judicial da Constituição). E o curioso é que essa vitória foi assegurada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) ao consentir, por ação ou omissão, nas anomalias constitucionais e interpretações bizarras que se foram acumulando ao longo do processo. Houve pois rendição de um dos órgãos de soberania ao poder soberano. Por isso, rigorosamente, o golpe foi parlamentar-judicial e não apenas parlamentar.
Qual foi no caso o poder soberano? Não foi certamente o povo brasileiro que ainda pouco tempo antes tinha elegido a presidente. Foi um soberano de várias cabeças constituído pela maioria parlamentar, os grandes meios de comunicação, o capital financeiro e as elites capitalistas a ele ligadas, e os EUA, cuja intervenção está por agora pouco documentada mas que se manifestou por várias formas, as mais evidentes das quais foram, por um lado, a visita de John Kerry ao Brasil e a declaração à imprensa junto com José Serra (que na altura nem sequer era um ministro com plenos poderes por o impeachment estar ainda em curso) para salientar as boas condições que se abriam ao fortalecimento das relações entre os dois países. O seguinte trecho das palavras de John Kerry na reunião de 5 de agosto com José Serra são chocantemente elucidativas: “Penso que é uma afirmação honesta dizer que nos últimos anos as discussões políticas no Brasil não permitiram o pleno florescimento do potencial da nossa relação” (http://www.state.gov/secretary/remarks/2016/08/260893.htm). Por outro lado, igualmente esclarecedora é a ida a Washington do senador Aloysio Nunes, no dia seguinte à aprovação do impeachment na Câmara dos Deputados, para conversações com o número três do Departamento de Estado e antigo embaixador no Brasil, Thomas Shannon, a figura mais influente na definição da política norte-americana para o continente.
Neste contexto é importante responder a três perguntas. Qual a natureza do regime político do Brasil depois do golpe parlamentar-judicial? Qual o significado do ato de rendição judicial? Quais os desafios para as forças democráticas? Neste texto respondo às duas primeiras.
Natureza do regime político. É um regime que se define mais facilmente pela negativa do que pela positiva. Não é uma ditadura como a que existiu até 1985; tão pouco é uma democracia como a que existiu até ao golpe; não é uma ditabranda ou democradura, designações em voga para caracterizar os regimes de transição da ditadura para a democracia. Trata-se de um regime nitidamente transicional anômalo sem direção definida para onde irá transitar. Em termos de teoria de sistemas, é um sistema político altamente desequilibrado, numa situação de bifurcação: a mais pequena alteração pode causar grandes mudanças sem que o sentido destas seja previsível. Pode resultar em mais democracia ou em menos democracia mas, em qualquer caso, é de prever que ocorra com alguma turbulência social e política. O desequilíbrio resultou da rutura institucional forçada pelo sector maioritário das elites económicas e políticas, que sentiu ameaçado o regime de acumulação capitalista, e a lógica social do senhor/escravo (no Brasil, a lógica da separação entre a casa grande e a senzala), que legitima muitas das hierarquias sociais das sociedades capitalistas com forte componente oligárquica de raiz colonial. Foi uma ruptura que não visou alterar o sistema político (este mostrou-se, aliás, muito funcional), mas apenas alterar um resultado eleitoral e repor o estado de coisas que vigorava antes da intrusão petista (do PT, Partidos dos Trabalhadores).
As elites agora no governo tudo farão para remendar essa ruptura o mais rapidamente possível. Não podem fazê-lo por via do governo e com medidas que agradem às maiorias, uma vez que a restauração capitalista-oligárquica exige medidas antipopulares. Aliás, é de prever que a destruição das políticas sociais e instituições do período anterior seja realizada rapidamente e sem disfarces de reconciliação social. É de prever uma outra versão da doutrina de choque semelhante à da austeridade imposta pelo FMI e UE aos países do Sul da Europa ou à que está a aplicar o presidente Macri na Argentina, com a ressalva de que Macri ganhou as eleições. Remendar a ruptura por via eleitoral também não é viável porque não é certo que ganhem as eleições. Resta-lhes, pois, usar de novo o judiciário, agora para repor quanto antes a ideia da normalidade institucional. Isso será possível através de algumas decisões judiciais compensatórias que criem a ideia, talvez ilusória mas credível, que as instituições não perderam totalmente a capacidade de limitar a arbitrariedade do poder político e a arrogância do poder social e econômico. A probabilidade de que tal ocorra depende das fraturas que possam surgir no interior do judiciário, como aconteceu em períodos recentes. E se ocorrer, será isso suficiente para reconstituir a normalidade institucional sem a qual a governação será muito difícil? Ninguém pode prever. Acresce que o contexto do golpe parlamentar-judicial faz com que este não se tenha podido concluir com o afastamento da presidente Dilma Rousseff. Tem de continuar até as elites terem a certeza de que a democracia não representa nenhum risco para elas. E para o golpe continuar vai ser necessária ainda muita intervenção do judiciário.
O sistema judiciário: dois pesos duas medidas. O papel central do sistema judiciário nos equilíbrios e desequilíbrios do período pós-1985 deve ser analisado com detalhe, pois isso nos pode ajudar a compreender comportamentos futuros. A operação lava-jato apresenta grandes ambivalências. Se, por um lado, fez com que grandes empresários, políticos e empreiteiros fossem processados criminalmente, rompendo, de alguma maneira com o sentimento de impunidade, por outro, a sua grande base de sustentação é o envolvimento de personagens da esquerda brasileira, em especial do PT. Ou seja, o grande apoio social e midiático que a lava-jato possui é por estar perseguindo a esquerda. Isso fica evidente quando comparamos a operação lava-jato com a operação Satiagraha, que investigava a corrupção e o branqueamento de capitais, envolvendo, principalmente, o banqueiro Daniel Dantas com as privatizações do Governo Fernando Henrique Cardoso. Foi comandada pelo Juiz Federal Fausto de Sanctis e pelo Delegado da Polícia Federal Protógenes Queiroz. Foi grande a reação do STF a essa operação e bem diferente da atual: o Delegado Protógenes Queiroz foi condenado criminalmente, e expulso da Polícia Federal; o Juiz Federal Fausto de Sanctis sofreu perseguição do então presidente do STF, Ministro Gilmar Mendes, quem oficiou o Conselho Nacional de Justiça, CNJ (do qual também era Presidente) para apurar a conduta do juiz. Foi um grande embate da Justiça Federal de primeira instância com o STF. Por seu turno, a prisão do banqueiro Daniel Dantas, que chegou a ser algemado, foi, no fundo, a real origem da Súmula Vinculante 11 do STF, assim ementada: “Só é lícito o uso de algemas em casos de resistência e de fundado receio de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia, por parte do preso ou de terceiros, justificada a excepcionalidade por escrito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade e de nulidade da prisão ou do ato processual a que se refere, sem prejuízo da responsabilidade civil do Estado”.
Talvez isto baste para concluir que no Brasil (e certamente não é caso único) o êxito da justiça criminal contra ricos e poderosos parece estar fortemente relacionado com a orientação político-partidária dos investigados. Mas há mais. A nomeação do ex-presidente Lula como Ministro levou o Juiz Sérgio Moro a cometer um dos atos mais flagrantemente ilegais da justiça brasileira contemporânea: permitir a divulgação do áudio entre a Presidente Dilma e o ex-presidente Lula quando já sabia que ele já não era competente para o processamento. O ministro do STF, Teori Zavascki, escreveu no seu despacho: “Foi também precoce e, pelo menos parcialmente, equivocada a decisão que adiantou juízo de validade das interceptações, colhidas, em parte importante, sem abrigo judicial, quando já havia determinação de interrupção das escutas”. Essa divulgação deu um novo impulso ao movimento a favor do impeachment da presidente Dilma. A propósito, o fato de a Presidente Dilma ter nomeado Lula da Silva como Ministro, ainda que tivesse por motivação exclusiva a alteração de foro competente para julgamento, não constitui por si só uma obstrução da justiça. Com efeito, na época em que era Presidente, Fernando Henrique Cardoso (FHC) atribuiu o status de Ministro ao então Advogado Geral da União (AGU), Gilmar Mendes, com um objetivo semelhante.
De fato, no final da década de 90 do século passado e início do século XX, por conta das privatizações e elevação da carga tributária, vários juízes federais começaram a proferir decisões liminares (que interrompem ações em curso) e a intervir no programa econômico do governo FHC. O Ministro Gilmar Mendes era então Advogado Geral da União e criticava fortemente a postura dos juízes federais. Foram várias ações de improbidade e ações populares contra o governo FHC e o próprio Advogado Geral da União, Gilmar Mendes. Perante o perigo de Gilmar Mendes ter de responder a processos em primeira instância (sobretudo ações de improbidade administrativa), foi editada a Medida Provisória n. 2.049-22, de 28 de agosto de 2000, que lhe garantiu o foro privilegiado e assim o preservou. Em seu art. 13 parágrafo único dispôs: “São Ministros de Estado os titulares dos Ministérios, o Chefe da Casa Civil, o Chefe do Gabinete de Segurança Institucional, o Chefe da Secretaria-Geral e o Chefe da Secretaria de Comunicação de Governo da Presidência da República e o Advogado-Geral da União”. E na altura não houve nenhum tipo de questionamento, nenhuma alegação de inconstitucionalidade ou “criminalização” do presidente FHC por obstrução da Justiça.
A ideia de que na justiça brasileira há dois pesos e duas medidas parece confirmada e é bem possível que em tempos mais próximos surjam mais provas neste sentido. A titulo de exemplo merecerá a pena observar a discrepância entre o ritmo da operação lava-jato centrada em Curitiba e o ritmo da operação lava-jato centrada no Rio de Janeiro (a que investiga os empresários ligados mais ao PMDB, ao ex-governador Sérgio Cabral e ao PSDB).
Apesar de tudo isto, é preciso não perder de vista dois fatos importantes. Por um lado, o sistema judiciário continua a ter um papel central na institucionalidade democrática brasileira, sobretudo enquanto prevalecer o atual sistema político. Por outro lado, como vimos atrás, têm ocorrido fraturas no interior do sistema judiciário e, dependendo das circunstâncias, elas podem ser um contributo importante para re-credibilizar a democracia brasileira. No momento em que o sistema judiciário parece apostado em criminalizar a todo custo uma personalidade com a estatura nacional e internacional do ex-presidente Lula talvez seja bom lembrar os juízes que na época do governo FHC foram objeto de patrulhamento e perseguição quando intervinham com liminares contra a política econômica neoliberal adotada pelo governo. A política econômica que vem aí não será menos dura e vem possuída de um forte impulso revanchista. Também a direita tem o seu Nunca Mais! A maior incógnita é a de saber se as condições, que no passado construíram a credibilidade do STF e deram alguma verosimilhança à ideia de um sistema judicial relativamente independente do poder político do dia, desapareceram para sempre depois deste lamentável conluio político-judicial. A letargia do Conselho Nacional de Justiça, CNJ, e do Conselho Nacional do Ministério Público, CNMP, são verdadeiramente preocupantes.
Lutas institucionais e extrainstitucionais. Em face do que fica dito atrás, o mais provável é que o ato de ruptura institucional provocado de cima para baixo (das elites contra as classes populares) se tenha de vir a confrontar no futuro com atos de ruptura institucional de baixo para cima, isto é, das classes populares contra as elites. Nesse caso, o sistema político funcionará durante algum tempo com uma mistura instável de ações políticas institucionais e extra-institucionais, dividido entre lutas partidárias e decisões do Congresso ou dos tribunais, por um lado, e ação política direta, protestos nas ruas ou ações ilegais contra a propriedade privada ou pública, por outro. Estas últimas vão ser combatidas com elevados níveis de repressão e a eficácia destas é uma questão em aberto.
Com o golpe parlamentar-judicial o regime político brasileiro passou de ser uma democracia de baixa intensidade (eram bem conhecidos os limites do sistema politico e do sistema eleitoral, em particular, para refletir a vontade das maiorias sem manipulação por parte dos média e do financiamento das campanhas eleitorais) para passar a ser uma democracia de baixíssima intensidade (maior distância entre o sistema político e os cidadãos, maior agressividade dos poderes fáticos, menos confiança na intervenção moderadora dos tribunais). Sendo este o regime político, qual será a melhor estratégia por parte das forças democráticas para levar a cabo as lutas políticas que travem a deriva autoritária e reforcem a democracia? Das forças democráticas de direita não é de esperar uma ação vigorosa. As diferentes forças de direita unem-se mais entre si quando estão no governo do que as forças de esquerda. A razão é esta: quando as forças de direita estão no governo têm o comando do governo e o comando reforçado do poder econômico que sempre têm nas sociedades capitalistas; quando as forças de esquerda estão no governo, têm o comando do governo mas não têm o comando do poder econômico. As forças democráticas de direita serão importantes mas tenderão a ser relativamente passivas na defesa da democracia ainda existente. Por esta razão, quer se goste quer não, é nas forças democráticas de esquerda que reside a defesa ativa da democracia e a luta pelo seu reforço.
As forças de esquerda na encruzilhada. As forças de esquerda do Brasil estão num dilema que se pode definir assim: tudo o que têm de fazer a médio e longo prazo para fortalecer a democracia está em contradição com o que têm de fazer a curto prazo para disputar o poder. Como sabemos, este não é um dilema específico da esquerda brasileira mas assume aqui e agora uma acuidade muito especial. Se a política fosse um ramo da lógica, este dilema não teria solução, mas como não é, tudo é possível. Analisarei as possibilidades em próximo artigo.

Boaventura de Sousa Santos é Professor Catedrático Jubilado da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra e Distinguished Legal Scholar da Faculdade de Direito da Universidade de Wisconsin-Madison e Global Legal Scholar da Universidade de Warwick. É igualmente Diretor do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra; Coordenador Científico do Observatório Permanente da Justiça Portuguesa.


quarta-feira, 14 de setembro de 2016

Para um Debate Teórico-Conceitual e Político sobre os Direitos Humanos*

José Geraldo de Sousa Junior Ex-Reitor da UnB (2008-2012), coordena o Projeto O Direito Achado na Rua Compareço entre nostálgico, porque testemunho o encerramento de um ciclo - refiro-me à última edição impressa do Jornal Estado de Direito essa utopia editorial liderada por Carmela Grune – e radiante, conhecendo-a e sabendo que ela avança, por ser utópica – para outro ciclo de um projeto generoso, desde a origem, inscrito num compromisso com a leitura critica que orienta a ação transformadora da realidade social. Escrevi, lá atrás, num dos primeiros números, em 2008, um pequeno artigo tratando do tema de cotas contra a desigualdade social; depois, em 2013, um outro texto elaborado como desafio à magistratura, interpelando-a a impregnar-se do humano que se realiza na rua (penso no meu tema recorrente figurado em O Direito Achado na Rua), para convocar os magistrados a abrirem-se às exigências do justo, para instalar o ato de julgar no campo dos direitos humanos. Na última edição impressa não posso deixar de revisitar essa utopia que vislumbra o estado de direito enquanto materialização de direitos humanos. Ainda que o debate sobre os direitos humanos suscite inúmeras controvérsias, somente posso considerá-lo na medida de um duplo desafio: primeiro, avançar para alem da teoria liberal e das concepções de justiça e de sociedade aprisionadas nesse paradigma; segundo, conhecer-se e ser reconhecido no dialogo com as lutas sociais por emancipação e dignidade. Assim, cogitar da teoria e da história dos direitos humanos, especialmente, a partir do Brasil, parece algo pertinente, sobretudo desde uma aproximação que encontra, na America Latina, novos horizontes epistêmicos; no Estado, um complexo agente de garantia e, simultaneamente, de violação de direitos; e nas lutas sociais, o compromisso ético-político que põe em movimento e dá fundamento a uma sociedade livre, justa e solidária. Juntamente com um parceiro de pesquisa e em co-autoria – refiro-me ao professor Antonio Escrivão Filho, procuramos abrir um debate orientado por esses pressupostos, para interrogar os direitos humanos desde uma perspectiva política, teórica e conceitual, o que fizemos por meio do livro “Para um Debate Teórico-Conceitual e Político sobre os Direitos Humanos” (Editora D’Plácido, Belo Horizonte, 2016). Neste livro, aproveitamos uma reflexão por nós acumulada numa sequência de cursos e escritos que realizamos em conjunto em diferentes espaços e auditórios, construindo uma rica interlocução à base de algumas singularidades. De um lado, recusar a abordagem linear segundo a qual os direitos humanos se manifestam por etapas, como se fossem um suceder de gerações, em espiral evolutiva, de cujo evolver naturalizado derivassem os direitos individuais, civis e políticos, seguidos dos direitos econômicos, sociais e culturais. Em vez disso, buscar conferir os processos ou as dimensões, designadas num cotidiano de afirmação e de reconhecimento, do qual emergem de modo indivisível, interdependente e integralizados os direitos humanos, manifestados ontologicamente na realidade instituinte e deontologicamente, abrigados num plano de garantias institucionalizado. De outra parte, rastrear a emergência dos direitos humanos como projeto de sociedade. Vale dizer, na consideração de que não se realizam enquanto expectativas de indivíduos, senão em perspectiva de coletividade, como tarefa cuja concretização se dá em ação de conjunto. Assim sendo, partimos do debate conceitual dos direitos humanos, para esboçar o panorama do cenário internacional e de sua emergência histórica, no mundo e no Brasil. Para, desse modo, articular o seu percurso no contexto da conquista da democracia, assim designada enquanto protagonismo de movimentos sociais, ao mesmo tempo sujeitos de afirmação e de aquisicão dos direitos humanos. Em relevo, pois, a historicidade latino-americana para acentuar a singularidade da questão pós-colonial forte na caracterização de um modo de desenvolvimento que abra ensejo para um constitucionalismo "Achado na Rua". Problematiza-se, em conseqüência, os modos de conhecer e de realizar os direitos humanos, em razão das lutas para o seu reconhecimento, a partir das quais se constituem como núcleo da expansão política da justiça e condicão de legitimação das formas de articulação do poder e de distribuição equitativa dos bens e valores sociamente produzidos". Em suma, compreender os direitos humanos dentro de “um programa que dá conteúdo ao protagonismo humanista, conquanto orienta projetos de vida e percursos emancipatórios que levam à formulação de projetos de sociedade para instaurar espaços recriados pelas lutas sociais pela dignidade”. Eis uma agenda que poderá ser seguida em novas aberturas editoriais do projeto Jornal Estado de Direito, que a criativa e instigante condução de Carmela Grune saberá oferecer no futuro imediato. Conte comigo. * Artigo sobre o livro Para um Debate Teórico-Conceitual e Político sobre os Direitos Humanos (livro editado por Editora D'Plácido, de Belo Horizonte, autores Antonio Escrivão Filho e José Geraldo de Sousa Junior). A publicação saiu na última edição impressa do Jornal Estado de Direito, n. 50, ano X ISSN 22362584,pág. 10. O Jornal é dirigido por Carmela Grune

segunda-feira, 12 de setembro de 2016

Sobre uma opção lyricamente crítica: algumas reflexões sobre perspectivas e metodologias de conhecimento do direito processual penal e da execução penal

Por Soraia da Rosa Mendes

Publicação original de: http://emporiododireito.com.br/sobre-uma-opcao-lyricamente-critica-algumas-reflexoes-sobre-perspectivas-e-metodologias-de-conhecimento-do-direito-processual-penal-e-da-execucao-penal-por-soraia-da-rosa-mendes/

Há quase quarenta anos Roberto Lyra Filho (1980) nos alertava que “o direito que se ensina errado” – constatação que dá título a um de seus mais primorosos textos – poderia entender-se em dois sentidos: o primeiro, como o ensino do direito em forma errada, correspondente a um vício de metodologia; e o segundo, como uma errada concepção do direito que se ensina, correspondente a uma visão incorreta dos conteúdos que se pretende ministrar. Tal como afirmava Lyra Filho essas duas dimensões permanecem vinculadas, uma vez que não se pode ensinar bem o direito errado, e o direito que se entende mal, determina, com essa distorção, os defeitos de pedagogia.
Não se trata aqui, mesmo porque o tempo, a ocasião e o espaço não permitiriam, de desenvolver, como merecido, a densidade que encerra o direito na concepção lyriana. Contudo, no que toca ao direito processual penal e à execução penal, quer parecer absolutamente apropriado constatar, com Lyra Filho, que há “um equívoco generalizado e estrutural na própria concepção do direito que se ensina”[1].
Explico.
Tal como afirmado por Baratta em “La Vida y el Laboratorio del Derecho”, o direito, como um conjunto de ciência e técnica é uma das linguagens especializadas com que se realiza uma construção particular do mundo. Sendo as atividades por ele compreendidas, em suas diferentes áreas, a organização institucional,  a distribuição de recursos e a repressão dos conflitos.[2]
Contudo, o mundo jurídico ergue-se sobre um elevado grau de artificialidade determinado pelas circunstâncias de que: um, o direito reconstrói a sociedade na medida em que constrói sobre uma realidade que já é produto de construção social na linguagem comum;  e, dois, que o mundo jurídico é construído como uma estrutura normativa na qual o comportamento dos sujeitos são qualificados deonticamente (isto é,  a partir de um conjunto de regras éticas específicas).
O direito não tem por objeto imediato as ações, mas programas e modelos de ação de modo que pode ser considerado com um laboratório no qual o mundo do ser é transformado em um mundo do dever ser. A relação de abstração na qual o direito se encontra em relação ao real é frequentemente interpretada como a distância entre o abstrato e o concreto.
O concreto é tomado como o vivido, isto é, as situações irrepetíveis da existência, e com isso se estabelece a distância entre o drama existencial que os sujeitos vivem, ou tenham vivido, em uma situação real da vida, e sua representação no “teatro do Direito”. Uma distância que, como destaca Baratta, se evidencia particularmente no processo.
A finalidade característica do processo penal é decidir se subsistem as condições previstas pelo direito para dispor de uma intervenção de tipo repressivo sobre um conflito. E a da execução a de concretizar as disposições da sentença ou decisão criminal e proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e do internado.
Valendo-me da certeira constatação de Lopes Jr[3], e pedindo licença para amplia-la no que toca com a execução penal, digo também que processo e a execução sofrem de uma certa forma de autismo. Um “autismo jurídico” visível por sua capacidade de desconectar-se do mundo e mergulhar em suas categorias mágicas.
Situações conflitivas concretas encontram, ancorando-me em Baratta, no processo penal e na execução um laboratório de transformação teatral no qual elas são transcritas em um roteiro prévio e os atores comprometidos em papeis estandardizados. O drama da vida é substituído por uma liturgia na qual os atores originais são substituídos e representados por profissionais do rito.
Daí porque falar-se tanto nos dias atuais do papel completamente secundário da vítima no processo penal, e, quanto ao/à acusado/a,  da distância que pode existir desde o ponto de vista temporal, entre o “autor” implicado no conflito real e o “réu”  ou “condenado” no papel que o processo lhe designa.
No laboratório do Direito, segue Baratta, o comportamento individual, ao contrário de ser considerado uma variável dependente (de modo que somente é possível compreende-lo partindo da situação, e não o contrário), se apresenta como uma variável independente em relação à situação. De maneira que a determinação da responsabilidade está subordinada a essa independência e a seu grau.
A análise da situação, na lógica do processo de verificação da responsabilidade ou da execução da sentença, limita-se a uma construção abstrata que a separa do contexto social e torna impossível, ou de toda forma irrelevante, o conhecimento das raízes do conflito ou ambiente real no qual seres humanos jogados ao bater das portas e os cadeados fechados.
Refletir sobre perspectivas e metodologias de conhecimento do direito processual penal e da execução penal parte do reconhecimento desta artificialidade que determina, ou melhor dizendo, domina o funcionamento do sistema penal desde dogmas como a “busca da verdade real”, de caráter eminentemente inquisitorial, ou a tão alardeada “ressocialização”.
Esquece-se, ou propositadamente deixa-se de lado, no ensino do processo penal e da execução penal  que seus fins devem ser o de limitar o poder punitivo do Estado e garantir os direitos do polo mais fraco, que são o réu ou a ré (no processo de cognição) e o condenado ou a condenada (no processo de execução).
Para evitar que a construção artificial da realidade no processo penal tenha ainda maiores e piores consequências sobre a realidade, isto é, sobre a existência do indivíduo e sobre a sociedade, ou, ao menos, para limitar as consequências negativas, a única possibilidade é, segundo Baratta, que os juristas implicados no drama processual adquiram e desenvolvam uma consciência adequada sobre a distância que separa o artefato jurídico da realidade. O que pressupõe uma participação pessoal dos atores e das atrizes, segundo as respectivas possibilidades de elaboração e de participação no outro grande laboratório da realidade social:  aquele em que se constrói o saber social.[4]
Desta tese derivam duas consequências importantes relacionadas à preparação e a experiência prática dos atores e das atrizes profissionais, dos/as juristas diretamente implicados no processo penal; mas também, em geral, dos que são indiretamente implicados por estarem comprometidos com a construção doutrinária.  Eis o ponto em que o ensino do direito processual penal e da execução penal, em uma autoanálise necessária, devem assumir sua parcela e responsabilidade com “o direito que se ensina errado” e com, como dizia Lyra, “com a produção de office-boys engalanados de um só legislador que representa a ordem dos interesses estabelecidos”[5].
Para tanto é preciso descortinar a ainda existente importação acrítica de conceitos e categorias provenientes do processo civil, como muito bem já denunciado por Lopes Jr. (2016), Duclerc (2015)e Badaró (2015); afirmar especificidades do processo penal, como o fazem Divan (2015) e Moura (2001) em relação, v.g., à justa causa; assim como voltar-se para a ensino jurídico nas ciências criminais (aqui em especial relevo ao processo e à execução) desde uma “opção crítica” que, como afirma Baratta, é uma atitude que permite viver a experiência no interior do sistema de justiça penal sendo consciente de que seus instrumentos são necessários para limitar os efeitos negativos e os custos sociais do próprio sistema[6].
Esta “opção crítica” contrapõe-se a uma “opção ideológica” na medida em que esta última refere-se à atitude de quem pretende poder interpretar “objetivamente” a realidade para além do sistema, usando os códigos próprios deste. Como diz Baratta, permanecer em um concepção ontológica da responsabilidade e da culpabilidade, como se conflitos e situações socialmente negativas pudessem ser explicadas na realidade partindo dos atos pessoais, é a maneira como uma boa parte dos juristas, de modo altamente generalizado no senso comum, segue dando legitimidade à pena-sofrimento.
Um avanço até mudanças mais profundas do sistema de justiça penal pode se dar com a difusão da “opção crítica” entre os/as juristas e a opinião pública, em um progresso na formação da consciência profissional. O que, em relação ao processo penal e à execução penal, se trata menos de melhoramentos possíveis e necessários, do que de uma transformação do sentido no qual o dramas no processo e no cárcere são vividos na percepção e  na experiência dos atores implicados.
Importante ressaltar que não se trata de desprezar os instrumentos do processo penal e da execução, pelo contrário, trata-se de aplica-los, mas nos marcos de um sistema acusatório, e de uma perspectiva de redução de danos que tem a virtude de conter, em vez de ampliar, a desigualdade de poder entre as partes que intervêm no processo penal e o sofrimento de quem cumpre a pena.
O modelo de transformação do processo desde o seu interior proposto por Baratta, e que me parece sob as mesmas premissas aplicável à execução, se baseia no reconhecimento do caráter artificial do mundo do direito, e, ao mesmo tempo, na participação cidadã dos atores e do público no trabalho de reforma dos instrumentos da justiça em perspectivas de um processo mais justo em relação aos direitos dos imputados e das vítimas.
O desenvolvimento cultural e político que deve conduzir a um grau civilizatório mais elevado no processo é representado, neste modelo, nem tanto pela redução da distância comunicativa e existencial entre os atores e as atrizes dos dramas processual e da condição de “interno”, encerrados nos próprios papéis, mas, sim, pelo novo sentido que o drama adquire para cada um deles e delas, se lhes forem asseguradas as condições para ver, antes da realidade social através de instrumentos da justiça, instrumentos da justiça através da realidade social.[7]
Abrindo aqui um necessário parêntesis, sob um perspectiva epistemológica feminista, o que propõe Baratta deve significar uma forma de compreender o processo (e a execução) desde as experiências vividas pelas mulheres na condição de vítimas, rés ou condenadas.[8] O que significa, na linguagem de Baratta, que vida entraria no processo através da ironia, ou seja, pelo viver, vendo-se viver.
Segundo Baratta, o rito processual, que de outra maneira constitui o cenário da conservação e do consenso em relação ao status quo social, se transformaria assim no teatro  de uma crítica da realidade, um lugar de emancipação.
Fora da escola da ciência existem outras não menos importantes, com as quais também os/as juristas podem aprender muito: a sabedoria popular. Com isso Baratta nos diz que a ironia não precisa ser inventada. Ela já existe e é praticada fora da cultura “oficial” em uma tradição que tem como protagonista as classes populares, os pobres e os marginalizados que têm sido sempre a clientela privilegiada do sistema de justiça penal.
A cultura popular esta cheia de exemplos da sábia ironia com a qual as classes desfavorecidas, os processados e condenados que delas fazem parte, suas famílias, sua vizinhança, vivem sua própria inclusão histórica no sistema de justiça penal, sua presença privilegiada nos julgamentos e nas cadeias.
Uma história da justiça penal desde baixo, a história depositada na concepção popular e não contada nos documentos do saber oficial, com os que em grande parte se formam os juristas, pode ser uma extraordinária fonte de conhecimentos e de consciência profissional para os/as operadores da justiça, como em geral para todos os cidadãos e as cidadãs, que se sentem representados e protegidos pela justiça penal.
Por outro lado, como alerta Baratta, algumas vezes no processo penal encontram-se como imputados também representantes dos grupos socialmente poderosos pertencentes a organizações criminosas ou responsáveis por crimes de colarinho branco.
Mesmo em relação a estes, que excepcionalmente são alvos do sistema, como diz Baratta, a experiência do processo é importante e instrutiva na medida em que, antes de questionar os recursos materiais do sistema de justiça penal, é necessário restituir aos conflitos desta natureza suas dimensões reais. O que significa também ampliar a frente da luta contra a criminalidade organizada como a frente de uma luta política que interessa a toda a sociedade civil mediante o fomento a um processo de tomada de consciência e de ação de que sejam protagonistas todas as forças democráticas e não somente os órgãos da justiça penal.[9]
De tudo o até aqui exposto é possível afirmar que a “opção crítica” corresponde a uma necessária mudança de foco a partir do reconhecimento de que, de fato, no processo penal e na execução, o direito que se ensina errado corresponde a uma errada concepção do direito que se ensina, e consequentemente de uma visão incorreta dos conteúdos que se pretende ministrar.
A perspectiva é, portanto, de formação de um/a novo/a jurista, capaz de tomar o comportamento humano como uma variável dependente em um cenário menos artificial, ou seja, que se deixe interpelar pela vida concreta.
A pergunta que resta é como formar esse/a novo/a jurista. E com ela voltamos novamente a Lyra Filho e ao primeiro sentido do direito que se ensina errado como o ensino do direito em forma errada, correspondente a um vício de metodologia.
Um primeiro e necessário reconhecimento, sob o prisma metodológico, é o de que nenhum aluno e aluna é um quadro em branco. Há uma historicidade individual, familiar e social a ser considerada. Em segundo lugar de que são arcaicas as metodologias de mera transferência de informações, de necessidade de acúmulo e armazenamento, verticalmente direcionadas (“professor-aluno”), sem possiblidade de questionamentos no plano horizontal (“aluno-aluno”) e sem abertura contributiva (“aluno-professor”), o que dificulta a transformação da informação em significado, afastando as possibilidades de apropriação, assimilação e incorporação do conhecimento, produzindo desinteresse na aprendizagem.[10]
O que se apresenta como desafio é caminhar em direção ao compartilhamento das responsabilidades professor-aluno, tendo o professor como um auxiliar no desenvolvimento cognitivo e crítico, criador de  possibilidades cognitivas à autoaprendizagem. Além disso, na superação da redução metodológica a aulas expositivas e, no caminho do que Baratta falava, buscar compreender a realidade que circunda o processo penal e, digo eu agora, principalmente, a execução penal.
Como já disse Giacomolli a construção de um Direito Processual Democrático passa pelo reconhecimento de sua autonomia, não só no plano da normatividade ordinária, mas também disciplinar, científico e dogmático.[11] Digo eu, então, com Lyra Filho e Baratta, que tal construção depende (e muito) do pouso da aeronave que nos transporta a todos e todas para o planeta onde vivem Caio, Tício e Mévio para um outro real, onde existe vida em cada folha do processo, um rosto atrás das grades em cada requerimento de remição, progressão, prisão domiciliar…

Notas e Referências:
[1] LYRA FILHO, Roberto. O Direito que se Ensina Errado: sobre a reforma do ensino jurídico. Brasília: Centro Acadêmico de Direito da UnB, 1980. Pp. 06.
[2] BARATTA, Alessandro. La Vida y el Laboratorio del Derecho. In: Criminología y Sistema Penal: compilación in memoriam. Montevideo-Buenos Aires: Editorial BdeF, 2006. Pp. 31-56.
[3] LOPES JR. Aury. Direito Processual Penal. São Paulo: Saraiva, 2016.
[4] BARATTA… p. 43.
[5] LYRA FILHO… p. 28.
[6] BARATTA… p. 44.
[7] Idem… p. 46.
[8] MENDES, Soraia da Rosa. Criminologia Feminista: novos paradigmas. São Paulo: Saraiva, 2014.
[9] idem…p. 50.
[10] GIACOMOLLI, Nereu José. Ensino e Metodologia do Direito Processual Penal. In: KHALED JR. Salah (coord.). Sistema Penal e Poder Punitivo: estudos em homenagem ao Prof. Aury Lopes Jr. Florianópolis: Empório do Direito, 2015. Pp. 398
[11] Idem… p. 404.
Soraia da Rosa Mendes.
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Soraia da Rosa Mendes é professora e advogada, mestre em Ciência Política pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, e doutora em Direito pela Universidade de Brasília – UnB.
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