terça-feira, 22 de outubro de 2013

CONFERÊNCIA: DIREITOS HUMANOS EM PERSPECTIVA CRÍTICA

Conferencista
David Sanches Rubio
Prof. Titular de Filosofia do Direito da Universidade de Sevilha

Debatedores
Antônio Alberto Machado
Prof. Livre-Docente da Unesp/Comissão de Altos Estudos de Direitos Humanos da SRJ/MJ
César Augusto Baldi
Prof. pesquisador do NEP/Ceam
Assessor da Procuradoria-Geral da República
Dia: 06 de novembro de 2013
Horário: 19h

Auditório externo da FIOCRUZ
Campus Darcy Ribeiro/Universidade de Brasília

UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA
Centro de Estudos Avançados Multidisciplinares/Ceam
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS E CIDADANIA
PPGDH
Campus Universitário Darcy Ribeiro
ICC Sul, subsolo, módulo 8
Tel: 3107 6745 / 3107 6744
www.ppgdh.unb.br | ppgdh@unb.br

domingo, 20 de outubro de 2013

Impressões do Japão 3ª. Carta de Nagoya



                                                  Diego Nardi

Vivemos em um mundo separado por muros. Dimensão concreta da exclusão, o muro é a condição da emergência e do avanço de discursos de ódio que, para além dos partidos de extrema direita, parecem povoar o imaginário daqueles/as que almejam segurança.

Separam-se casas e ruas. Separam-se bairros e escolas. Separam-se centro e periferia. Separa-se a cidade e separam-se as cidades. Separam-se estados, países, regiões e continentes. Muros, milhares deles, todos os dias erguidos na concretude do espaço habitado ou nos discursos de deslegitimação de subjetividades outras fundadas em uma não identidade com nossa tradição e que resiste (ou tenta resistir) a ela. Muros erguidos pelo silêncio. E por trás dos muros que ajudam a construir, pessoas buscando o conforto e a segurança que o convívio com o estranho, o estrangeiro, lhe priva pela insistente recusa em/incapacidade de confiar na precedência da solidariedade humana, como diz Bauman. Desamparados/as, construímos distâncias intransponíveis entre.

E o desejo inscrito nos muros é o de afastar o mal-estar causado pela presença do estrangeiro.

Ser estrangeiro é ser um não pertencente. O estrangeiro traz em si a marca do estranhamento que faz dele sujeito e ao qual é sujeitado. Em seu movimento, o estrangeiro se fixa, ainda que precariamente, em espaços aos quais não pertence diretamente, e que lhe privam da rede de referências que constituem seu orientar no mundo. Longe do conforto e proteção da morada, o estrangeiro passa a caminhar nesses espaços desconhecidos e, aos poucos, preenche as distâncias com significados. 

A cidade para o estrangeiro não se apresenta como uma totalidade ou com a referencialidade com a qual se apresenta a um local. Cada nova rua integra-se ao que antes era vivido com um todo. O estrangeiro vaga pela cidade, estranhando-a. Mas a cidade não é um puro espaço vazio: ela é o lugar habitado por aqueles/as com os/as quais ela não compartilha a mesma rede de referenciais.  Diferentes identidades, diferentes usos do espaço urbano.

Percorrer a cidade é sujeitar-se a encontros, encruzilhadas, cruzamentos. Um profundo mal estar. O não pertencente, o estrangeiro, é o inesperado, a irrupção do estranho, daquele diante do qual não se sabe o que falar, como se portar, afinal, deve-se ou não se deve tocar, olhar, sorrir, cumprimentar? Ao passo que o estrangeiro mesmo, deslocado pelo não pertencimento e privado da rede de referenciais comum aos nativos, vê-se desorientado e, também, estranho.

Ser estrangeiro é, atualmente, ser desconfiado. É nele que exorcizamos esse mal-estar com o qual não sabemos lidar, consequência do fato de ser o estrangeiro dono de uma opacidade perturbadora, cuja “presença em nosso campo de ação sempre causa desconforto e transforma em árdua empresa a previsão dos efeitos de uma ação, suas possibilidades de sucesso e insucesso”.

Esse mesmo estrangeiro que foi figura central das primeiras experiências urbanas da baixa idade média, e cuja própria condição, muitas vezes, conferia-lhe o respeito necessário para que os destinos de uma cidade lhe fossem confiados, vê-se agora acuado em guetos e cada vez mais impossibilitado de convivência comum nos espaços onde se fixa: sobrepõem-se cidades, trajetórias que muitas vezes se cruzam, mas nunca se encontram.

Viver dentro de muros, pertencendo a um “ambiente uniforme – em companhia de outros ‘como nós’, com os quais é possível ‘se socializar’ superficialmente, sem correr o risco de ser mal-entedido e sem precisar enfrentar a amolação de ter de traduzir um mundo de significados em outro” (BAUMAN, Confiança e Medo na Cidade) nos priva das capacidades “necessárias para lidar com a diferença” (idem).

Recusamos o mal-entendido e o mal-estar que com ele vem. Não sabemos lidar com distâncias culturais, não sabemos traduzir mundos sem calá-los, não permitimos aos outros mundos a palavra. Identificamos nós mesmos o estrangeiro e, nessa divisão, erguemos nossos muros. 

A derrubada dos muros passa, talvez, pela aceitação do mal-entendido como uma dimensão indispensável das relações sociais. Ao invés da recusa, voltemo-nos a incorporação do mal-entendido como uma possibilidade verdadeira de diálogo, pois é a partir dele que contextos referenciais distintos entram em contato e se diferenciam por que falam ao invés de serem falados, abrindo a possibilidade de uma tradução que seja capaz de devolver a fala cujas representações tentam roubar.

Para Boaventura, a tradução “consiste no trabalho de interpretações entre duas ou mais culturas (...) com vista a identificar preocupações ou aspirações semelhantes entre elas e as diferentes respostas que lhes dão”. A tradução é, sobretudo, uma capacidade, entendida não como uma habilidade inata, mas, antes, como uma conquista realizada pela disposição em viver junto, em não recusar a diferença pelo mal-estar que ela gera diante da opacidade que se traduz na possibilidade do mal-entendido. Inexistindo a disposição política pelo viver junto sem supressão das diferenças, a tradução é uma impossibilidade. Dito isso, fundamental é nunca perder de vista a dimensão política da tradução. Afinal, o mal-entendido nada mais é que o resultado do choque entre distintas perspectivas, distintos lugares de fala, distintas referências sociais, e, sobretudo – em um mundo pós-colonial – o choque entre perspectivas marcadas por relações desiguais de poder. Dentro de uma perspectiva pós-colonial, ao se buscar desconstruir os lugares privilegiados, as distintas perspectivas devem permanecer, desestabilizando narrativas totalizantes e evidenciando as contradições que marcam as identidades opressoras. É justamente a permanência e a relação entre diferentes perspectivas  - situação que emerge a partir do mal entendido – que a tradução busca negociar.

A tarefa política da tradução é não apenas permitir que as vozes subalternas resistam à tradução perversa da qual são alvo, mas, sobretudo, através da resistência a essas traduções, possibilitar que a auto-tradução seja possível. Além disso, é fundamental permitir que o acerto acerca das intepretações e dos significados que surgem a partir do esforço compartilhado de tradução sejam negociados a partir de lugares não privilegiados. Aqui não se trata do tradutor. Ele deve sair de cena para que haja a possibilidade da construção política conjunta a partir do mal-entendido. Só há tradução sem tradutor.

A tradução é nada mais que esse esforço em possibilitar que o político surja não como exercício do poder, mas como uma possibilidade real de desconstruir os limites que separam o externo e o interno de uma narrativa que pretende centralizar em si seu fundamento ao impor limites que, todavia, no momento mesmo em que são fixados, já se desestabilizam e fazem de sua pretensão um projeto falho. À tradução, cabe romper com os limites das cadeias e contextos pré-determinados, permitindo cadeias de significações infinitas que se formem a partir dos usos das palavras dentro de contextos compartilhados. Com isso, supera-se princípios de classificação asfixiantes, onde o mal-entendido que emerge da opacidade (o qual se manifesta, sobretudo, na linguagem) possa dar espaço a novas formas de contar histórias (subtraídas).

Talvez, o que a tentativa de tradução nos revela é que aceitar o mal entendido para superá-lo requeira, de fato, a construção conjunta de um sistema de referência totalmente novo, pois, somente assim, poderemos nos defrontar coletivamente com “a difícil aprendizagem de nomear o mundo” da qual já falava Paulo Freire.

No entanto, suspeito que o mal entendido é insuperável: é ele o próprio movimento de superação que nos permitirá construir consensos sem os quais viver junto é uma real impossibilidade, sem os quais não nos será permitido ser estrangeiro diante um dos outros e, apesar disso, pertencermos a uma comunidade. Em outras palavras, manter o mal-entendido como possibilidade de negociação de sentidos, mas uma possibilidade despojada de um mal-estar que nos prende dentro de tantos muros.

A tradução, quando empoderadora, é, simplesmente, uma tarefa revolucionária.

sexta-feira, 11 de outubro de 2013

Próximo encontro e novidades do blog


O próximo encontro do Diálogos Lyrianos está muito especial, pois iremos assistir ao vídeo com a última conferência proferida pelo Prof. Roberto Lyra Filho. Não percam!
Quando? Dia 10 de novembro, às 16h.
Onde? Na Faculdade de Direito da UnB.

Ainda, temos novidades no blog. Na página "publicações" está disponível o trabalho feito por estudantes do grupo diálogos lyrianos para o Memorial de candidatura ao título de doutor honoris causa do professor Boaventura de Sousa Santos. O texto foi disponibilizado pelo próprio professor em sua página pessoal no site do Centro de Estudos Sociais (CES) de Coimbra:
Memorial de candidatura de Boaventura de Sousa Santos ao título de Doutor Honoris Causa pela Universidade de Brasília - Nair Heloisa Bicalho de Sousa (coord.)
http://www.boaventuradesousasantos.pt/media/Memorial_Nair%20Heloisa%20Bicalho%20de%20Sousa_29%20Outubro%202012.pdf

E não deixem de visualizar a página de fotos!!

quarta-feira, 9 de outubro de 2013

Justiça de São Paulo nega Reintegração de Posse Requerida pela USP para Desocupação da Reitoria

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
COMARCA DE SÃO PAULO
12ª VARA DE FAZENDA PÚBLICA
Viaduto Paulina, 80, 9º andar - sala 907, Centro - CEP 01501-020, Fone:
3242-2333r2037, São Paulo-SP - E-mail: sp12faz@tjsp.jus.br
DECISÃO
1005270-72.2013.8.26.0053 - Reintegração / Manutenção de Posse
Requerente Universidade de São Paulo - USP
Requerido Sindicato dos Trabalhadores da Universidade de São Paulo - SINTUSP e
outros
Em 9 de outubro de 2013 ,
Eu, Adriano Marcos Laroca,faço estes autos conclusos ao(à)
MM. Juiz(a) de Direito: Adriano Marcos Laroca
Vistos.
Em resumo, a USP pede liminar de
reintegração na posse do prédio de sua administração central ocupado
desde 1o de outubro deste ano por estudantes como protesto em virtude
da ausência de debate democrático pela Reitoria em relação a diversas
propostas, notadamente a de democratização das eleições para a
Reitoria, isto é, eleição do Reitor diretamente pelos estudantes,
professores e servidores.
Segundo os estudantes disseram em audiência
de conciliação, o estopim para a ocupação acima teria sido a omissão da
Reitoria em responder ao pedido (formulado em 19 de setembro) de
abertura a todos os estudantes da reunião do Conselho Universitário,
realizado no dia 1o de outubro, e o impedimento efetivo de participação
dos estudantes, professores e servidores no referido ato. Alegou-se,
ainda, que alguns conselheiros teriam sido impedidos inclusive de
ingressarem no local de reunião, deixando, assim, de participarem da
votação.
Na audiência de conciliação, designada por
este juízo, houve a formulação de uma proposta intermediária às
apresentadas inicialmente pelas partes para a desocupação, consistente
no início do diálogo da Reitoria com as entidades dos estudantes,
professores e servidores concomitantemente com a desocupação do
prédio. A Reitoria insistiu que a desocupação precedesse o início da
negociação, muito embora sequer tenha sinalizado firmemente com umadata para tanto.
Nesse contexto, para a concessão da liminar
pretendida que, pelo clima de acirramento com a Reitoria, ensejaria uma
desocupação involuntária, isto é, com o uso da forca policial contra
estudantes universitários, é de se ponderar se os custos à imagem da
própria USP e à integridade física dos estudantes da imediata
reintegração na posse são maiores do que os relativos ao seu
funcionamento parcial e ao seu patrimônio material (aqui, de concreto,
há apenas notícia de danos na porta de entrada da administração
central).
Certamente, é muito mais prejudicial à
imagem da USP, sendo a universidade mais importante da América
Latina, a desocupação de estudantes de um de seus prédios com o uso
da tropa de choque, sem contar possíveis danos à integridade física dos
estudantes, ratificando, mais uma vez, a tradição marcadamente
autoritária da sociedade brasileira e de suas instituições, que, não
reconhecendo conflitos sociais e de interesses, ao invés de resolvê-los
pelo debate democrático, lançam mão da repressão ou da
desmoralização do interlocutor. Aqui, não se olvide que sequer escapa
desse "pensamento único", infelizmente, a maioria da mídia e da própria
sociedade, amalgamada, por longos anos, nessa tradição de pensamento
autoritário.
Essa ponderação ganha ainda mais
razoabilidade, diante do contexto fático citado acima, de ausência total
de disposição política da Reitoria de iniciar um debate democrático com
os estudantes, professores e servidores a respeito de diversos temas
sensíveis e relevantes à melhoria da própria qualidade da universidade.
Um deles, sem dúvida, é o de eleição direta para Reitor. O próprio
Poder Judiciário do Estado de São Paulo sofre as agruras de normas
editadas em regime de exceção, absolutamente antidemocráticas, para a
eleição de sua cúpula administrativa.
De outro lado, cabe outra ponderação. A
ocupação de bem público (no caso de uso especial, poderia ser de uso
comum, por exemplo, uma praça ou rua), como forma de lutademocrática (artigo 5º XVI da CF), para deixar de ter legitimidade,
precisa causar mais ônus do que benefícios à universidade e, em última
instancia, à sociedade.
Outrossim, frise-se que nenhuma luta social
que não cause qualquer transtorno, alteração da normalidade, não tem
forca de pressão e, portanto, sequer poderia se caracterizar como tal.
No caso, considerando o principal objetivo da
pauta de reivindicações dos estudantes, professores e servidores, que é a
democratização da gestão da USP - por sinal, prevista na LDBEN-,
indiscutivelmente, eventual beneficio decorrente da ocupação, como
forma de pressão, é muito superior à interdição parcial de
funcionamento administrativo da USP e aos danos de pequena monta ao
seu patrimônio, pelo que consta dos autos.
Desta forma, - como pareceu ter ficado claro
na audiência -, havendo ainda a possibilidade de retomada do prédio
sem o uso da força policial, bastando a cessação da intransigência da
Reitoria em dialogar, de forma democrática, com os estudantes, e,
ainda, considerando, como dito acima, que, nesse momento, a
desocupação involuntária, violenta, causaria mais danos à USP e aos
seus estudantes do que a decorrente da própria ocupação, indefiro, por
ora, a liminar de reintegração de posse.
Ademais, anote-se que a Reitoria, ao invés da
abertura de diálogo com os estudantes para a imediata retomada do
prédio e da normalidade de funcionamento administrativo da
universidade, ingressou com a presente ação que, pelo contexto, ela
própria sabe, poderá culminar na desocupação violenta, com maiores
prejuízos à imagem de uma instituição acadêmica da relevância da USP
e aos estudantes do que os até então causados. Na realidade, pode-se
dizer que a Reitoria, sem iniciar qualquer diálogo com os estudantes, ao
judicializar tal ocupação política, fez um opção clara pelo uso da força,
ao invés, do debate democrático. Não se pode nem alegar que os
estudantes ao ocuparem o prédio também assim agiram, pois, como
vimos, aparentemente, foi a ausência de diálogo o motivo
preponderante da ocupação, medida custosa à USP e aos estudantes,porém, ainda assim, em menor grau do que a manutenção de normas
eletivas de cunho autoritário, a meu ver.
Por fim, ouso dizer que o Poder Judiciário não
pode mais, simplesmente, absorver conflitos negados pela postura
antidemocrática dos demais poderes, sob o manto protetor de qualquer
instituto jurídico -, no caso, o da posse -, sem o risco de ele próprio
praticar o mesmo autoritarismo (repressão), os quais, na maioria das
vezes, de modo irresponsável, são lhe transferidos pelos
administradores de plantão.
No mais, aguarde-se a vinda das contestações.
Int.
São Paulo, 9 de outubro de 2013.
Adriano Marcos Laroca
Juiz(a) de Direito
DATA
Em _____ de ________ de 2.0____.
recebi estes autos em cartório
com o r. Despacho supra.
Eu, __________________, escr. subs.
CERTIDÃO
Certifico que os autos foram encaminhados
para a Imprensa em ____/_____/_____
Eu, _________________, certiquei
Se impresso, para conferência acesse o site https://esaj.tjsp.jus.br/esaj, informe o processo 1005270-72.2013.8.26.0053 e o código 580FA4.
Este documento foi assinado digitalmente por ADRIANO MARCOS LAROCA

O Direito está nas Ruas, nas Leis ou nas Consciências?

Lênio Streck

Da voz das ruas à consciência e assim por diante: as falsas “ditricotomias”
Durante o affair “Embargos Infringentes”, forjou-se uma falsa “ditricotomia”: ouvir a voz das ruas ou a voz da lei (ou a consciência individual, do tipo “faço o que acho o certo”). Nada mais ficcional do que isso. Além do fato de que os ministros do STF por vezes sustentam uma tese e, em outras, a tese inversa. Veja-se, nesse sentido, o voto do ministro Roberto Barroso no MS 32.326 (caso Donadon), em que apelou textualmente, como motivo para não chancelar a existência de um Deputado presidiário, cumprindo pena de mais de 13 anos, em regime inicial fechado: “A indignação cívica, a perplexidade jurídica, o abalo às instituições e o constrangimento que tal situação gera para os Poderes constituídos legitimam a atuação imediata do Judiciário”.
Dias depois, ao aceitar os Embargos Infringentes, disse o contrário: “A verdade não tem dono. A única coisa que um juiz pode fazer, em meio ao vendaval, é ser leal a si mesmo e ao Direito tal como ele o compreende. À sua consciência.” Ou seja: antes, a indignação cívica é fundamento; logo depois, não mais o é.
Só por aí já poderia desenvolver páginas e páginas. Veja-se que o ministro Celso de Mello, por exemplo, para sustentar seu voto de desempate e, com isso, “anunciar” a vitória da lei sobre a voz das ruas, disse que o STF deve ficar imune às pressões das ruas e ater-se apenas à tecnicidade da lei. OK, mas, o que é isto, a tecnicidade da lei? A lei tem vida própria? O Direito é feito de “normas gerais” que contém de antemão todas as respostas?
Vários artigos foram publicados nas redes sociais, contendo argumentos com perguntas do estilo “o STF deve julgar pela consciência, pelas ruas ou pela lei?”. Por que essa “ditricotomia” (ou contraposição) é falsa? O professor Marcelo Cattoni, da UFMG, e eu vimos discutindo isso há muito tempo. Com efeito.
As oposições “voz da lei versus voz das ruas” ou “voz da consciência versus voz das ruas”, ou ainda, “voz da lei versus voz da consciência”, são reducionistas e fragilizam o Direito. É como discutir se a legitimidade vem do pluralismo das ruas ou simplesmente do direito posto pelo parlamento (ou pelo STF, no seu Regimento Interno) ou pelas consciências dos intérpretes autênticos (ou inautênticos). Com efeito, se é certo que o Direito não deve ser reduzido à vontade não-mediada institucionalmente de maiorias e/ou minorias conjunturais, por outro não pode ser reduzido à mera estatalidade político-burocrática, muito menos àquilo que dizem que ele é (Realismo Jurídico). Afinal, as decisões estatais no Estado Democrático de Direito só são válidas se garantirem suas pretensões democrático-constitucionais.
É claro que todo o Direito é público, não resta dúvida quanto a isso. Mas o público não se reduz ao estatal, no Estado Democrático de Direito, e está numa relação pública de complementaridade e interdependência entre público e privado.
Assim é que a coerência normativa exigida pela integridade do/no direito é de princípios (exigências do hoje), e não meramente de regras (convenções do passado). Disso se pode dizer que, se o Direito não nascer na(s) rua(s), se a legalidade não nascer também das reinvindicações populares, a partir de demandas sociais diversas, e não se sustentar com base em razões que sejam capazes de mobilizar os debates públicos, pela atuação da sociedade civil e dos setores organizados da sociedade, e assim, sem uma perspectiva generalizada, universalizada, instaurada pelas lutas por reconhecimento e por inclusão social e econômica, não ganhar os fóruns oficiais do Estado, não ganhar o centro do sistema político, e não se traduzir em decisões participadas, como falar em legitimidade democrática?
Dito de outro modo: é na mediação discursiva entre a informalidade e a formalidade, garantida num nível institucional pelos processos deliberativos constitucional e democraticamente institucionalizados, legislativos, administrativos e jurisdicionais, que o poder político/jurídico é gerado comunicativamente e a legitimidade é gerada através da legalidade...
Portanto, já de pronto afasto essa “ditricotomia”, pela incindibilidade entre direito e fatos e entre interpretação e aplicação. Mas, quero avançar. E enfrentar outra questão que corre paralela.
Legalistas versus pragmatistas?
Leio em O Globo artigo de Eduardo Jordão e Diego Werneck Arguelles, intitulado O STF observado. O artigo é interessante, porque critica o modo como as votações são conduzidas, como, por exemplo, ocorre a incidência da pressão da opinião pública. Os articulistas mostram a instabilidade dos compromissos dos membros do STF, verbis: “Legalistas convictos buscam soluções muito além do texto da lei. Históricos pragmáticos, orgulhosos de sua flexibilidade e bom senso, tratam as palavras da lei como se delas não pudessem se desvencilhar”.
Tenho “batido” nessa tecla de há muito. Tenho denunciado essas “idas e vindas” nas posições dos ministros (e não só deles). Por vezes, a letra da lei... em outras, os limites semânticos são implodidos... Em todos os meus livros denuncio essa problemática. Mas não se trata apenas de opor, como de certo modo fizeram os dois articulistas, “legalismo versus pragmatismo”, até porque não há dados consistentes acerca de quem são os “legalistas” e quem seriam os “pragmatistas”. Isso seria simplificar a discussão. Seguramente, há munição para os dois lados, afinal, o decisionismo é um animal camaleônico e imprevisível. Ele usa o Anel de Giges (quando quer, desaparece sem deixar rastros). É o predador implacável da integridade e coerência do Direito. E sem integridade e coerência dos intérpretes, de nada serve a Constituição. Talvez fosse isso que os articulistas quisessem dizer. O que deve ser frisado é que há algo mais profundo e que esconde essas falsas “ditricotomias” “consciência versus voz das ruas versus lei.
Refiro-me à ausência da discussão acerca de uma teoria da decisão. Ou seja, para além do problema de “como se interpreta”, que por si já é um problema (basta ver o uso abundante da metodologia de Savigny misturada com componentes da jurisprudência dos valores e dos interesses), tem-se a questão de “como se decide”. Dessa arte, quero registrar, de novo, que toda essa problemática da fragmentação das decisões — e, portanto, da falta de coerencia e integridade detectável nessas idas e vindas entre “legalismos e pragmatismos” — advém do fato de que recepcionamos equivocadamente (no mínimo) cinco teses ou posturas, conforme explitei na coluna passada (clique aqui para ler).
Mas é a quinta recepção que me parece a mais perigosa, porque demonstra uma algaravia mais explícita, uma espécie de “flambagem transteorética”. Refiro-me à mera tentativa de superação do tal “legalismo” exatamente por posturas pragmáticas ou proto-pragmáticas, algumas delas envernizadas sob o rótulo de neoconstitucionalismo, em que simplesmente se (re)coloca a moral no direito a partir dos princípios entendidos como...valores. Bingo. E o resultado é desastroso, ou seja, na medida em que a moral é contingente, cada juiz ou membro de tribunal “repõe” a moral no Direito a partir de seus pressupostos pessoais (donde a minha crítica à questão da “consciência”...!). Despiciendo lembrar que há centenas de dissertações, teses e livros que caem nessa armadilha.
Veja-se que para além da operacionalidade stricto sensu, a doutrina indica “o caminho” para a interpretação, colocando a consciência ou a convicção pessoal como norteadores do juiz, perfectibilizando essa “metodologia” de vários modos. Ou seja, criou-se uma falácia naturalizada, pela qual é “normal” que o judiciário decida conforme o que cada membro pensa a respeito do direito... E isso “aparecerá” de várias maneiras, como na direta aposta na: a) interpretação como ato de vontade do juiz ou no adágio “sentença como sentire”; b) interpretação como fruto da subjetividade judicial; c) interpretação como produto da consciência do julgador; d) crença de que o juiz deve fazer a “ponderação de valores” a partir de seus “valores”; e) razoabilidade e/ou proporcionalidade como ato voluntarista do julgador; f) crença de que “os casos difíceis se resolvem discricionariamente”; g) cisão estrutural entre regras e princípios, em que estes proporciona(ria)m uma “abertura se sentido” que deverá ser preenchida e/ou produzida pelo intérprete.
Sigo, então. Por vezes, parece — e isso me preocupa sobremodo — que pesquisadores do Direito resvalam na aceitação-institucionalização da “vontade” como fundamento da decisão (por exemplo, quando se coloca frente a frente “legalismo e pragmatismo”, já se está, inexoravelmente, no olho do furacão). Algo do tipo “já-que-os-ministros-decidem-como-querem, segundo-e-seguindo-suas-ideologias-e/ou-preferencias-pessoais-ou-as-respectivas-consciências (seja lá o que isso quer dizer)”, temos (nós, a doutrina) que estudar essas suas preferencias para argumentarmos estrategicamente... Ou, ainda, “devemos nos limitar a produzir as melhores condições para a livre emanação da vontade do intérprete, ou entender os momentos inoportunos para sua manifestação...”. Assim, se o juiz ou ministro gosta de estrogonofe, devemos fazer de tudo para que a ele seja servido esse prato no dia do julgamento. Se ele torce para o Flamengo, não devemos pedir liminar no dia seguinte à demissão do Mano Menezes... Peço que me incluam fora dessa. Se a aplicação do Direito é um ato de vontade, ele não é mais Direito. É um jogo de poder. E nesse banquete, a choldra fica de fora. Só participam os do andar de cima, os que tem acesso à katchanga (real). Como somos paradoxais no Brasil, pois não? Falamos tanto em democracia e, no entanto, ao fim e ao cabo, jogamos tudo nos braços da moral, da política e da economia. Do Direito, nada resta. Aliás, para quem não entendeu isso ainda: quem sustenta que a interpretação jurídica é um ato de vontade ou coisa do tipo “a decisão está na consciência do intérprete”, está dando um tiro no pé... a não ser que o defensor da ideia tenha o poder de decidir. Se, por exemplo, um advogado pensa assim, a pergunta que deve ser feita ao causídico é: para que você serve, afinal? O mesmo se deve perguntar a quem escreve ou tem pretensões doutrinárias... Afinal, se tudo se resolve na consciência ou na vontade do sujeito-intérprete, tudo o que você fizer será supérfluo. Peço perdão pela minha rudeza. Não quero retirar a ilusão de tanta gente...
Sigo. E o faço para dizer que, pensar que a decisão judicial é (ou não passa de) um ato de vontade (de poder), é, sem tirar nem por, dar razão à Kelsen (na parte da aplicação do direito, ou seja, no “andar de baixo” de sua teoria — peço, encarecidamente, que os leitores leiam as poucas páginas do famoso 8º capítulo da Teoria Pura do Direito). E é também dar razão a juristas como Richard Posner, um pragmati(ci)sta da cepa, que odeia princípios e acha que a autonomia do Direito não serve para nada. Só que isso transforma o Direito em uma mera racionalidade instrumental, algo à disposição do intérprete. Mais do que isso, trata-se da derrota da teoria do direito e a vitória da retórica (ou da mera retórica). O direito se transforma em um jogo de cartas marcadas, como já denunciava Warat há décadas.
Decisão é, mesmo, um ato de vontade?
Vou tentar mostrar isso de outro modo. Há algum tempo, fiz um debate com o penalista da escola crítica do Direito Penal brasileiro, o estimado Paulo Queiroz. Ele havia publicado um artigo (O que é direito? — clique aqui para ler) que me assustou sobremodo, em que dizia: sempre que condenamos ou absolvemos, fazemo-lo porque queremos fazê-lo, de sorte que, nesse sentido, a condenação ou a absolvição não são atos de verdade, mas atos de vontade”.
E disse mais o penalista baiano: “parece evidente que, ordinariamente, por mais que tenhamos motivos, legais ou não, para condenar, condenamos porque queremos condenar e porque julgamos importante fazê-lo; inversamente: por mais que tenhamos motivos, legais ou não, para absolver, absolvemos porque queremos absolver e julgamos importante fazê-lo”.
Veja-se: embora substancialmente a contribuição crítica de Queiroz seja inegável, neste ponto corre o risco de provocar retrocessos democráticos nas manifestações processuais de Promotores, Juízes e Ministros do STF. No livro O Que é isto – decido conforme minha consciência, rebato essa tese de Queiroz, que, aliás, não difere daquilo que o ministro Marco Aurélio tem dito acerca do interpretação do Direito (a de que a interpretação é um ato de vontade — por exemplo AI 252.347 e AI 218.668, ou seja, nem mais, nem menos do que diz Kelsen no 8º Capitulo de sua TPD).
Como contraponto, sustento que acreditar que a decisão judicial é produto de um ato de vontade (de poder) nos conduz inexoravelmente a um fatalismo. Ou seja, tudo depende(ria) da vontade pessoal (algo do tipo “se-o-juiz-quer-fazer,-faz; se-não-quer, não-faz...!). Logo, a própria democracia não depende(ria) de nada para além do querer de alguém...!
Eis o meu repto, meio solitário, bem sei. Tudo o que venho escrevendo serve para dizer: “Fujamos disso”! Aliás, a hermenêutica surgiu exatamente para superar o “assujeitamento” que o sujeito faz do objeto (aliás, isso é o que é a filosofia da consciência... – ou a sua vulgata voluntarista!). Toda a minha aula de terça-feira à noite foi sobre isso: sobre o paradoxo que representa o Direito. Se se achar que a decisão é um ato de vontade de poder, então não deveríamos apostar no Direito. Deveríamos apostar na política, na sociologia, nas estratégias, na guerra, em qualquer coisa. Ora, o Direito foi feito justamente para se opor e controlar o poder, a política, etc. Se ele for um instrumento de poder, pessoal ou coletivo, ele não é Direito... Ele é arbítrio. E arbítrio é o contrário de Direito. Por isso, ser jurista é ser otimista. Meu amigo Paulo Queiroz e os que pensam como ele (por exemplo, o ministro Marco Aurélio), são pessimistas. Fatalistas. Kelsen também foi um pessimista. Por isso ele relegou a aplicação do direito a um ato de segundo nível, a mera “política jurídica”. Não penso que deva ser assim. Ou sejamos todos políticos. Azar será daqueles que não tem poder... Se me entendem o que quero dizer!
Por que o Direito é, hoje, a soma de todos os nossos medos?
Ao longo dos anos, minha preocupação tem sido exatamente com o debate contemporâneo “democracia-constitucionalismo”. São compatíveis? Orgulhosamente, digo: Sim! Porque sou um otimista. Mas disso exsurge um dilema: para impedir que a jurisdição constitucional, pelo qual se controla a constitucionalidade, seja transformada em uma judiciariocracia, é fundamental que controlemos as decisões judiciais. Isso implica abandonar as teses que sustentam o poder discricionário (que não passa de um ato de vontade). Democracia e discricionariedade são incompatíveis. Daí que é espantoso — mas muito espantoso — que os projetos dos Códigos Processuais mantenham esses anacronismos (como, por exemplo, a livre apreciação da prova). É espantoso que se queira commonlizar o direito brasileiro sem uma adequada teoria que trate da decisão judicial.
Para ser mais claro e simples: de que adianta (ou de que adiantou) colocar na Constituição (e na legislação) as conquistas de todos os matizes se, no momento da concretização, dependemos da vontade individual ou de uma dada vontade individual (ou do que diz a consciência)?
Pergunto: tem sentido o país parar e ficar em suspenso esperando que um ministro desempate uma votação e não sabermos o que ele irá dizer? Suspense!
Pergunto: que Direito é esse que não nos fornece o mínimo de previsibilidade? Quer dizer que, se estivéssemos discutindo o aborto e o placar estivesse em 5x5, teríamos que ficar torcendo — dependendo de que lado estivéssemos — pelas crenças pessoais de sua excelência? Ou torcer para que seu almoço ou seu dia tenham sido do seu agrado? Torcer pela bondade dos bons?
Demo-cracia é isto? Mas, então, o que é isto, a democracia?
PS: se me perguntarem o que é isto, a dogmática jurídica dominante, respondo, em uma linha: é a soma de todos os nossos medos!
Felicidades. E boa sorte. De novo!